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Pryscylla Cordeiro Rodrigues Santirocchi
Pryscylla Cordeiro Rodrigues Santirocchi A Congregação da Missão no Ceará Oitocentista Durante a segunda metade do século XIX, os padres lazaristas, pertencentes à Congregação da Missão, deixaram a Europa para dispersar-se pelo mundo, esta foi uma das congregações religiosas que mais contribuíram para a mundialização do catolicismo. Nessa época, várias regiões brasileiras receberam esses religiosos, que trouxeram ao país a sua cultura congregacional, atuando em seminários, colégios, hospitais, asilos e realizando missões populares. A província do Ceará foi um dos locais no qual essa instituição se instalou em 1864, após dois anos de negociações entre o bispo D. Luís Antônio dos Santos e o Superior Geral Jean-Baptiste Étienne. A Congregação da Missão desempenhou um papel fundamental para a reforma da Igreja cearense, pois atuou no seminário Episcopal do Ceará (Seminário da Prainha) e realizou missões para as populações pobres dos sertões. O primeiro reitor do Seminário da Prainha, foi o padre Pierre-Auguste Chevalier (1831-1901), que esteve a frente daquela instituição por 27 anos. Nesse período, o corpo docente do seminário foi composto por diversos lazaristas vindos da Europa, de outras regiões do Brasil e por ex-alunos do seminário. Cerca de 250 estudantes do norte e do nordeste estudaram no Seminário da Prainha. Ao analisar as Regras do Seminário da Prainha e o Livro do Conselho do Seminário (1864-1870), percebi que os principais pontos de investimento para a formação do clero cearense foram: realização de retiros espirituais, celibato, festas religiosas, uso da batina, incentivo aos sacramentos, obediência hierárquica, vida santa, abandono das funções civis e políticas. Os seminaristas que desobedecessem o regulamento eram passíveis de punição ou até expulsão [1]. As missões lazaristas, por sua vez, foram iniciadas no Ceará em 1870. Os missionários que atuaram nelas foram os padres Guillaume Van de Sandt, José Sena de Freitas e Antoine Azémar. Eles percorreram aquela província de norte a sul, ao longo de sete anos de missões. Necessitaram adaptar-se aos costumes, clima, à língua, à geografia, à alimentação, etc. Realizaram não só pregações e sacramentos, mas também obras sociais, como a construção de poços artesianos, cemitérios e casas. As ações missionárias lazaristas foram fundamentais para o fortalecimento do catolicismo entre as populações do interior cearense e no auxílio material que necessitavam. As missões eram iniciadas sempre com os sermões e ocorriam da seguinte forma: pela manhã, pregavam “sobre os mandamentos de Deus e da Igreja e sobre os sacramentos; à noite, sobre as verdades eternas”. Assim, os sermões matinais eram mais “leves” e tinha a intenção catequizar aquelas pessoas, por conta da necessidade de instrução do povo sobre itens básicos dessa religião [2]. Em 1871, ergueram “um galpão colocado em frente à capela da aldeia” [...] abriram “um cemitério de 40 metros de comprimento, com mais de vinte de largura, que deixamos terminado” [3]. Na aldeia de Mecejana, cavaram “um poço de oito metros”, para aplacar a sede da população, com mais de 30 pessoas trabalhando, inclusive “as figuras mais proeminentes do lugar” [4]. Assim, a intenção desse texto foi a de apresentar e divulgar de forma breve, alguns resultados das pesquisas que realizei na graduação e no mestrado em História, sobre a Congregação da Missão e sua presença no Ceará Oitocentista. Atualmente, no doutorado em História, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), busco pensar o processo de expansão da Congregação da Missão no Brasil, a partir dos diálogos entre a Casa Mãe em Paris e os missionários que atuaram nas províncias de Minas Gerais, Bahia e Ceará, durante o superiorato do padre Jean-Baptiste Étienne (1843-1874). Notas [1] Álbum Histórico do Seminário Episcopal do Ceará (1914) - Biblioteca Pública Meneses Pimentel (BPMP). Fortaleza, CE. Livro do Conselho do Seminário da Prainha (1864-1870) - Centro de Psicologia da Religião (CPR-Juazeiro do NorteCE)   [2] Annales de la Congregation de la Mission, v. 37, 1872, p. 500. Disponível em: https://via.library.depaul.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1070&context=annales. Acesso em: 07/09/2022   [3] Annales de la Congregation de la Mission, v. 37, 1872, p. 507 e 508. Disponível em: https://via.library.depaul.edu/cgi/ viewcontent.cgi?article=1070&context=annales. Acesso em: 07/09/2022   [4] Annales de la Congregation de la Mission, v. 37, 1872, p. 514. Disponível em: https://via.library.depaul.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1070&context=annales. Acesso em: 07/09/2022 Sobre a autora Pryscylla Cordeiro Rodrigues Santirocchi é doutoranda em História, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).  
Pe. Erik de Carvalho Gonçalves, CM
Pe. Erik de Carvalho Gonçalves, CM 31 de outubro, um dia abençoado... Este é um dia de algumas comemorações, embora apenas uma seja a mais conhecida, seja pelos filmes, seja também pela quantidade de festas celebradas a partir desse tema, o halloween, ou, o dia das bruxas, mais comum a nós. Para nós brasileiros, o dia 31 é o dia do Saci Pererê, em contraposição ao importado dia das bruxas, personagem folclórico que tem origem no sul do país entre os índios guarani. Popularizado principalmente por Monteiro Lobato na obra Sítio do pica-pau-amarelo, o Saci era um menino preto de uma perna só, com um gorro vermelho e um cachimbo, notório por suas travessuras e por proteger a floresta. Contudo, o presente texto quer apresentar uma marca ainda mais significativa deste dia para nós cristãos. Este é o Dia Nacional da Proclamação do Evangelho, desde 2016, instituído pela Lei 13.246/16. A partir da nossa fé, cremos que todas as coisas servem a Deus, assim, proponho uma leitura de fé das outras comemorações mencionadas acima, como forma, em última instância, de serviço Àquele que conduz todas as coisas. Se, de algum modo, o dia 31 de outubro nos remete à feitiçaria, é importante entender que o mundo da feitiçaria, é o mundo onde as palavras tem poder de fazer acontecer o que elas significam, segundo Rubem Alves, em seu livro Lições de Feitiçaria (2003). Vejamos se na nossa fé também não é assim: “No princípio, Deus criou o céu e a terra. Deus disse: “Haja luz!”, e houve luz” (Gn 1,1;3); e ainda, o Evangelho nos ensina que “tudo foi feito por meio da Palavra, e sem ela nada foi feito de tudo o que foi feito” (Jo 1,3) e “a Palavra se fez carne e veio morar entre nós” (Jo 1,14). Jesus Cristo é a Palavra de Deus e por ele, nós podemos contemplar a Glória do nosso Deus, cheio de graça e de verdade. O Papa Bento XVI, na Exortação Apostólica pós Sinodal Verbum Domini, nos recorda que “a Palavra do Senhor permanece eternamente” e “esta é a Palavra do Evangelho que vos foi anunciada” (1Pd 1,25). Então, conseguimos entender como a Palavra tem poder no meio de nós e qual o tamanho da nossa responsabilidade com o que falamos, pois, para nós que temos fé, “toda palavra deve ser boa, capaz de fazer bem a quem as ouve” (Ef 4,29). No mesmo dia 31, ao ser comemorado o Saci Pererê, recordamos as travessuras e as alegrias da nossa “meninice”. Proponho uma leitura de fé a partir da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, do Papa Francisco, com o tema da alegria como marca essencial do anúncio do Evangelho. A Palavra de Deus nos enche de alegria quando, verdadeiramente, a escutamos, porque nos recria e nos salva, nos encaminhando para um outro modo de vida, a vida no Espírito. Olhemos como Maria se modifica inteiramente após a Palavra dita pelo anjo Gabriel: “Alegra-te, cheia de Graça! O Senhor está contigo” (Lc 1,28). Ou ainda, como a alegria de Maria é transmitida pela sua boca ao saudar Isabel, que ao escutá-la, até mesmo o menino, ainda no ventre de sua mãe, saltou de alegria (Lc 1,41). E, para os nossos dias, marcado pela angústia, insegurança e violência, como é significativo escutar da boca de Jesus Ressuscitado “vós ficareis tristes, mas a vossa tristeza se transformará em alegria”. E Jesus, comparando as nossas tristezas com as dores que mulher sente no parto, diz que, do mesmo modo, “agora nós sentimos tristeza, mas Ele nos verá de novo, e o nosso coração se alegrará, e ninguém poderá tirar a nossa alegria” (Jo 16,21-22). Contemplemos esse trecho da Palavra e nos deixemos envolver pela alegria do Evangelho proclamado pela boca de Jesus, alegria que vem acompanhada de esperança com a força de Salvação (Rm 8,24). Neste dia 31, por fim, depois das fortes emoções que vivemos, nos empenhemos em curar as feridas uns dos outros deixando sair de nossa boca o Evangelho capaz de tudo transformar, com a alegria e a força que nos vem pelo Anúncio da Palavra. Honremos este dia ensinando as pessoas a observarem tudo o que Jesus nos ensinou, pois Ele está no meio de nós até o fim dos tempos (Mt 28,20).   31 de outubro de 2022, Dia Nacional da Proclamação do Evangelho.  
Pe. Eli Chaves, CM
Pe. Eli Chaves, CM Crescer no compromisso missionário junto às juventudes Cresce, cada vez mais, no interior de toda a Família Vicentina a consciência missionária de que, no seguimento de Jesus evangelizador dos pobres, precisamos escutar os apelos dos jovens, sobretudo os mais carentes e negados em sua esperança de vida digna, conhecê-los, amá-los, servi-los e despertá-los para o seguimento de Jesus. No Brasil, segundo o Censo de 2010, os jovens compunham um quarto da população: 51,3 milhões de jovens, de 15 a 29 anos, sendo 84,8% vivendo nas cidades e 15,2% no campo. A pesquisa da Fundação Abrinq, de 2018, afirma que a pobreza atinge 17,3 milhões de crianças e jovens brasileiros; dos quais 5,8 milhões de jovens vivem em situação de extrema pobreza; em sua grande maioria, são vítimas da violência, negros e residentes em regiões periféricas das grandes cidades. Este cenário não pode escapar ao olhar missionário vicentino. Uma realidade complexa, plural e cheia de luzes e sombras, daí a necessidade de falar “juventudes”, como forma mais consistente para caracterizar o que ocorre nesta fase. Os jovens têm suas feridas, incertezas e problemas próprios, também são diferentes, inovadores, criativos e podem ser uma presença viva e transformadora para o presente e futuro, se tiverem as condições dignas e apropriadas para desenvolver seu potencial, enfrentar seus desafios e para tomar suas decisões. As juventudes são lugar teológico onde também irrompe a voz de Deus como fonte de anúncio e profecia para os sinais que apontam novos tempos. O Sínodo dos Bispos de 2018 afirma: “Precisamos criar espaços onde ressoe a voz dos jovens” (n. 35-38). “Exorto as comunidades a realizar com respeito e seriedade um exame de sua própria realidade juvenil mais próxima, para poder discernir os caminhos pastorais mais adequados” (n 103). Somos chamados a trabalhar para que o carisma vicentino se faça mais presença atuante e servidora junto às juventudes, especialmente as que vivem em situações de pobreza e vulnerabilidade. Nas suas variadas formas de expressão, o carisma vicentino deve se atualizar e atingir os jovens, que devem ser portadores, protagonistas e continuadores do carisma deixado por São Vicente e também devem ser beneficiados pela caridade vicentina. O carisma vicentino nos impele a aprofundarmo-nos no encontro com as juventudes, de modo criativo e na abertura às exigências bem próprias desta missão: - Aproximar-nos dos jovens, conhecê-los em seu próprio universo e criar relações de proximidade, amizade e solidariedade. Este conhecimento requer abertura corajosa para abraçar, amar e servir as juventudes em espírito fraterno e colaborativo. - Deixar-nos tocar e transformar-nos pela novidade que os jovens trazem. Entre os jovens a vida emerge teimosa, cheia de feridas e potencialidades, cheia de vitalidade e esperança... Abrir-se às juventudes transforma as pessoas, tira a mesmice da vida, abre o discípulo missionário à ação do Espírito que faz novas todas as coisas. - Partilhar com as juventudes o carisma vicentino, que tem grande e atual potencial evangélico de atração junto aos jovens. As juventudes têm sonhos, são idealistas, carecem de ideais duradouros e consistentes. É fundamental partilhar mais o carisma com ações de divulgação e envolvimento vicentino, mas sobretudo com o testemunho de vida. - Agir decididamente em favor dos jovens e com os jovens. Impelidos pela caridade, pela força do carisma vicentino, as juventudes são um convite à promoção das mesmas em qualidade de vida e em dignidade, ao estilo de São Vicente, amando-as afetiva e efetivamente, agindo com elas, num cuidado que passe pelo material, pelo afetivo e pelo espiritual. Estamos diante de um grande e fantástico desafio! Jesus, na proclamação do Reino, viu a multidão cansada e abatida, como ovelha sem pastor. Teve compaixão dela e apelou para a necessidade de novos trabalhadores e discípulos. No meio da multidão, Jesus viu adolescentes e jovens sedentos e carentes, sonhadores e desejosos de vida nova. São precisamente os jovens que podem ajudar-nos a manter sempre jovem o carisma vicentino, não deixando que ele fique esclerosado no passado, imóvel e sem o sal profético da caridade evangélica!
Pe. Erik de Carvalho Gonçalves, CM
Pe. Erik de Carvalho Gonçalves, CM Viver é muito mais... A paz de Cristo! Me dirijo especialmente às pessoas que se sentem machucadas e doloridas por tanta gritaria e agressões nesses últimos dias. Venho recordar a você que nada vale mais que a tua paz, talvez pouquíssimas coisas, mas, certamente, a campanha partidária não. De um modo geral, os posicionamentos te classificam de burro por não ter esta ou aquela posição, de católico apenas se for nessa ou naquela direção, de honesto se escolher este ou aquele candidato. Asseguro a vocês, em nome da fé que professo, que o Caminho, a Verdade e a Vida é apenas Jesus Cristo (Jo 14,6), Palavra viva do Pai (Jo 1,1) que se manifesta em todas as consciências, como nos recorda o Papa São João Paulo II na sua encíclica Veritatis Splendor (1993). É apenas na obediência a esta Palavra que caminhamos para a salvação (1Pd 1,22), conquistada por graça e mérito de Nosso Senhor Jesus Cristo (Ef 2,8). Uma só coisa é necessária (Lc 10,42), ouvir a Palavra e a colocar em prática (Lc 11,28). Faça o bem, não faça o mal e, sobretudo, se afaste dele, buscando viver a partilha (Ef 4,28-32) e acolhendo os pobres que um dia nos precederão no Reino dos Céus (Lc 16,19-31). A sua paz vale muito, pois é pela Graça do Ressuscitado que ela nos vem (Lc 24,36); não a despreze, mas procure, a todo custo, fazê-la acontecer. Toda gritaria, ofensas, discussões e violências não são dos filhos da luz, vem das trevas (Ef 5,9). Se te machucam é porque querem te confundir pela dor, confusa em sua raiz porque é má. Respire e deixe bilhar em você a força do Espírito Santo (Ef 4,30) que habita em todos os que procuram a Deus de coração sincero e foge dessas trincheiras, pois você é uma pessoa de Deus (1Tm 6,11-16). Neste processo eleitoral, se deixe iluminar pela luz da Palavra e sua consciência será guiada pelo Espírito de Deus, ore mais com a sua Bíblia. Você não vai errar. Sê forte e corajoso para cumprir a vontade de Deus (Js 1,7), o nosso oponente não é o nosso irmão, mas o mal que tem ganhado força na medida em que ofendemos e brigamos para impor ao outro o nosso modo de pensar (2Tm 3,1-9); ele é livre pela vontade de Deus (Gl 5,1) e o voto é secreto e um direito de cada cidadão, deixe que ele decida. Seremos salvos pela fé em Jesus Cristo (At 15,11) e não por causa da escolha deste ou daquele candidato, disso nós somos testemunhas, o Espírito Santo e nós (At 15,28-29). A paz esteja convosco!
Pe. Alexandre Nahass Franco
Pe. Alexandre Nahass Franco Aquarius O filme Aquarius, roteiro e direção de Kleber Mendonça Filho, estreou nos cinemas sob o impacto da grande polêmica no festival de Cannes. Em maio de 2016, o diretor e o elenco aproveitaram a visibilidade do carpete vermelho para mostrar ao mundo que consideravam o processo de “impeachment” da presidente Dilma Rousseff, que estava em curso no Brasil, um golpe de estado. A manifestação, amplamente divulgada na imprensa e principalmente nas redes sociais, repercutiu diretamente na quantidade e especificidade do público nas salas de cinema. Desde sua estreia, que ocorreu simultaneamente ao afastamento definitivo da presidente, o filme se tornou um símbolo de resistência para uns e de oportunismo para outros, independentemente de seu enredo. O resultado desta polêmica foram salas de cinema lotadas de partidários da teoria do golpe e boicote por parte dos que apoiaram o processo de “impeachment”. Como o bom ser humano cordial, o público brasileiro foi ou não foi ao cinema assistir Aquarius movido pelo coração. Em outubro do ano de 2016 comemorou-se os oitenta anos da publicação da primeira edição do livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e o conceito do homem cordial, dominado pelas emoções e originário da família patriarcal de herança rural,e que se mostra ainda hoje presente, contrariando a expectativa do próprio autor, de que a cordialidade seria gradativamente extinta, possibilitando a transformação da sociedade brasileira. O filme Aquarius justamente narra a luta de Clara, personagem interpretada brilhantemente por Sônia Braga, que resiste às investidas de uma construtora interessada em demolir o pequeno edifício em que vive, para construir no local um grande empreendimento imobiliário. Antes de prosseguir, adianta-se aqui que as descrições e argumentação a seguir revelam parte da trama, portanto só deve enfrentar os próximos parágrafos o leitor que já assistiu ao filme ou aquele que não se incomoda com “spoilers”. Desta vez, peço desculpa ao prezado (a) leitor (a). Clara é uma jornalista aposentada, viúva, mãe de três adultos e vive sozinha em frente à praia de Boa Viagem (Recife-PE), em apartamento dos anos 1950 que é palco e testemunha de sua vida. A construtora, que já adquiriu todos os outros apartamentos do prédio, faz de tudo para conseguir convencer Clara a vender o imóvel para viabilizar o início das obras. Para além do debate acerca das cidades brasileiras, que são cruelmente desenhadas pelo poder do mercado imobiliário, o filme retrata em cada personagem, em cada diálogo e em cada cena, a psicologia social da sociedade brasileira, tão bem diagnosticada por Sérgio Buarque de Holanda. A primeira conversa entre Clara e os representantes da construtora está carregada de simbologia. Já no toque da campainha do apartamento, as presenças do dono da construtora e de seu neto revelam a reprodução dos círculos familiares em ambientes empresariais. A cordialidade se apresenta novamente no diálogo que se segue, quando os empreendedores, ignorando o ritualismo social inerentes às relações institucionais e comerciais, se apresentam de forma afável e cortês como membros da família Bonfim, tratam a interlocutora pelo primeiro nome, pedem cafezinho, tentam estabelecer uma relação de intimidade para alcançar o único objetivo da visita: Convencer Clara a vender seu apartamento. Diante da proprietária refratária, os empreendedores partem para métodos de convencimento invasivos. Da afabilidade ao constrangimento, manifestações subjetivas e personalizadas, os empresários não destinam à moradora resistente o relacionamento impessoal e objetivo esperado em uma barganha comercial. A definição do conceito homem cordial trabalhada por Sérgio Buarque de Holanda sofreu substanciais alterações entre a primeira e a segunda edição do livro – de 1936 e 1948, respectivamente – devido ao polêmico debate público que o autor teve com o poeta Cassiano Ricardo, que questionava o conceito de cordialidade, interpretando-o como uma técnica de bondade. Esta visão otimista e equivocada do conceito ainda é comum, muito embora a partir da segunda edição de Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda deixe claro que a cordialidade tem tanto a ver com a bondade quanto com a inimizade, sendo o homem cordial dominado pelo coração tanto na afabilidade quanto na violência. Responsável pelo empreendimento, as ações de Diego Bonfim (neto de Geraldo Bonfim, dono da construtora) estão impregnadas da cordialidade enraizada na sociedade brasileira. No decorrer da trama, Clara se encontra com o jovem empreendedor nas dependências do prédio e questiona seus métodos de intimidação; dentre eles realização de orgias, cultos religiosos e queima de objetos nas dependências do edifício, e que chegam à uma ação extrema que se revela no fim do filme. O jovem empreendedor, mantendo o comportamento de aparência afetiva, agora escandalosamente dissimulada, demonstra preocupação com a integridade física da moradora, que vive sozinha em um prédio vazio, e diz reconhecer os motivos do apreço de Clara por seu apartamento, uma vez que a conquista do imóvel, em localização privilegiada, não deveria ter sido fácil para uma pessoa de pele com tom escuro. Neste momento, com a ameaça implícita e o racismo explícito, o filme denuncia a persistência nefasta da herança aristocrática de origem rural, baseada no trabalho do escravo africano implantado no Brasil durante a colonização portuguesa. A grande iluminação do filme, que o faz dar um mergulho em profundidade nas raízes do Brasil, é não escamotear o enraizamento da heroína da trama na classe dominante opressora, originária na velha ordem colonial e patriarcal. Clara não escapa de seu papel social; vive confortavelmente no melhor endereço do Recife graças à renda oriunda do aluguel de quatro imóveis herdados de seu marido, que por sua vez os herdou dos pais. Clara nada tranquilamente no mar revolto de Boa Viagem, pois é especialmente protegida por Roberval, salva-vidas da praia, com quem mantém uma clássica relação de cordialidade, onde não faltam o flerte e uma leve tensão sexual. Clara também pode fazer sua ginástica na praia e escutar seus discos de vinil sem pressa, ostentando sua intelectualidade dos privilegiados, pois tem uma funcionária doméstica para limpar sua sujeira e para; com direito ao característico emprego do diminutivo na linguagem; prepara-lhe um “franguinho” e uma saladinha para o almoço. A cordialidade dá o contorno da relação entre Clara e Ladjane, a funcionária; ela é “quase da família”. Patroa liberal, moderna, praticamente uma “amiga”, Clara participa da festa de aniversário de sua funcionária na laje de sua casa em alvenaria incrustrada na “Brasília Teimosa”, favela urbanizada símbolo da luta dos movimentos de moradia do Nordeste e que se localiza a poucos metros da praia de Boa Viagem. A proximidade extrema dos “contrários” que vive a sociedade cordial brasileira (que jamais deveria existir) apresenta-se no filme de Kleber Machado: Nas relações entre Clara e a família Bonfim, entre Clara e sua funcionária Ladjane, entre a praia de Boa Viagem e a comunidade Brasília Teimosa. Uma sociedade que se aferra a valores arcaicos e que se exprime nos extremos das relações afetuosas, oscilando entre a intimidade e a opressão, sem deixar de passar pelas situações de nepotismo, corrupção e monopólio. De forma organicamente articulada ao roteiro, a relação cordial; onde o convívio é ditado por uma ética de fundo emotivo que nega o ritualismo social abstrato das sociedades modernas; vai ser manejada pelo diretor para apaziguar a última peripécia do filme. Fazendo uso do “favor”, manifestação típica das relações baseadas nos laços afetivo. Clara vai obter de seu amigo executivo, da família poderosa Cavalcanti, controladora da mídia local, uma informação confidencial que lhe permitirá reverter a disputa em seu benefício. À ameaça destrutiva de Diego Bonfim e sua corporação antiética, Clara reage com equivalente ameaça de aniquilamento familiar. A peça chave que resolve os problemas do âmbito socioeconômico está dentro da mesma lógica de ausência de civilidade. Assim, por detrás do desfecho aparentemente feliz de Aquarius, com a vitória do oprimido sobre o opressor, se esconde a triste realidade da sociedade brasileira, onde o desfecho positivo está muito longe de se concretizar. Ao invés de termos alcançado o que Sérgio Buarque de Holanda prognosticou como “Nossa revolução”, a extinção total de nossas raízes oligárquicas e de suas consequências éticas e sociais, propiciando a emergência das camadas oprimidas da população;  o que se vê na trama inventada e encenada por Kleber Mendonça é uma metáfora da história brasileira atual, com a manutenção e, mais recentemente, o agravamento do sistema arcaico de dominação. Triste... Mas que acende cada vez o caráter Profético em favor dos oprimidos!
Rachel de Queiroz
Rachel de Queiroz O Santo Vicente Trezentos anos atrás, em 27 de setembro de 1660, morria, em Paris, um ancião. Camponês de nascimento, pastor na sua Infância, prisioneiro de piratas e cativo de um alquimista árabe nos seus vinte anos, padre, postulante em Roma, confidente de S. Francisco de Sales e Santa Joana de Chantal, discípulo do Cardeal de Bérulle, preceptor daquele que foi depois o demoníaco e aventureiro Cardeal de Retz, esmoler da Rainha Margot, confessor "In extremis" de Luiz XIII, diretor espiritual de Ana d'Áustria (diz-se que foi ele o celebrante do falado casamento secreto da Rainha com Mazarino), esmoler-geral  das galeras do Rei, intermediário de paz nas lutas da Fronda, fundador das congregações dos Lazaristas e das Irmãs de Caridade - chamou-se, em vida, Vincent-de-Paul. É o nosso São Vicente de Paulo. Mas, nos altares onde subiu, não é representado junto a reis nem rainhas - mas como um padre velho que abriga sob a capa duas crianças desvalidas. Pois o que fez um santo do camponês de-Paul, não foi a convivência dos grandes - foi a sua heróica virtude da caridade. Naquela França terrivelmente convulsionada pela ambição dos príncipes e pelas guerras de religião, o jovem Vicente de Paulo achou o seu campo de batalha. Grandes eram a miséria, o sofrimento, a ignorância do povo. Essa ignorância, especialmente em matéria de fé, foi o que primeiro impressionou o Padre de-Paul. Era ele então preceptor na casa nobre de Gondi, quando iniciou uma espécie nova de missões - que se poderiam chamar de missões suburbanas. Ensino de catecismo, prédicas singelas - e dessas pequenas missões nasceu a grande congregação missionária dos Lazaristas, que se espalhou mais tarde pelo mundo todo. Depois o cura de-Paul voltou os seus olhos para os problemas de mendicância e para os enfermos desamparados. Inventou então as sociedades das Senhoras de Caridade - damas da sociedade, fidalgas e burguesas (entre elas Maria de Gonzaga que depois foi Rainha da Polônia), que deveriam pessoalmente ir levar recursos e assistência aos necessitados. Quase todas as grandes damas do tempo formaram ao seu lado; mas apesar de tão altas protetoras, cujos recursos materiais e políticos garantiam a extensão e sobrevivência da obra, o santo verificou que a caridade das duquesas princesas padecia de um vício básico: o próprio fato de continuarem as Senhoras de Caridade a serem grandes damas. Chocou-o profundamente saber, por exemplo, que as ilustres congregadas, nas suas visitas aos pobres, não se baixavam a levar pessoalmente as esmolas de vitualhas e roupas: mandavam em seu lugar as criadas. E S. Vicente não queria uma caridade por procuração, mas caridade direta, de mão para mão, uma caridade corpo-a-corpo, se o ouso dizer. A ferida que se lava e se cura, a cama suja que se troca, a fome a que se acode cozinhando na própria cabana do pobrezinho, a sopa e o mingau. Foi dessa necessidade que nasceu a grande revolução vicentina. Um novo tipo de comunidade religiosa, cuja direção foi entregue à famosa “Mlle Le Gras" ou seja, a nossa Luísa de Marillac. Até então a vocação religiosa feminina só conhecia um caminho: a contemplação e o claustro. S Vicente descobriu uma fórmula inédita: nada de freiras emparedadas em conventos, cuidando apenas da sua alma. As suas seriam militantes, praticando a caridade com as próprias mãos. “… que elas não tenham ordinariamente por mosteiro senão as casas dos doentes; por cela, um quarto de aluguel; por capela, a igreja da paróquia; por claustro, as ruas da cidade e as salas dos hospitais; por clausura, a obediência; por grades, o temor de Deus; por véu, a santa modéstia.” É essa a regra básica das Irmãs de Caridade, ou filhas de S. Vicente. Donzelas de virtude intocada, criadas na abastança, fidalgas, burguesas e filhas do povo - em toda parte seriam recrutadas. S. Vicente lhes acenava com uma vocação diferente, que na época quase chegou a causar escândalo. Não as vestia de freiras, e o traje que ainda hoje usam as Irmãs de Caridade, é a roupa comum às mulheres do povo naquele tempo: por sobre o camisolão de linho branco, saia e casaco de lã grosseira, um grande avental; à cabeça a touca engomada, como abrigo e como recato. Há, na santidade de Vicente de Paulo um elemento que o aproxima especialmente de nós, no nosso século tumultuoso. É a sua condição de ativista, de homem atuante, de operário de Deus, que enfrenta o mal pegando-o pelos chifres, em vez de apenas o exorcizar. Com a sua energia de camponês, o seu bom senso popular, fez da caridade uma tarefa do corpo, além de uma exaltação da alma. S. Vicente é um santo que a gente entende, e, como o entende, ama-o melhor que aos outros, os que sobem às altas esferas da doutrina e do misticismo. S. Vicente, contemporâneo de Richelieu e de Luiz XIV, soube ensinar a um mundo ofuscado por esses dois que foram o alfa e o omega do Grande Século, que além da grandeza política, além do orgulho nacional, além do poder e da pompa do Rei, existe uma glória maior, mais duradoura, a glória humilde de servir, de enxugar lágrimas e sarar dores. Trezentos anos se passaram. De Richelieu e Luiz, o Sol, que resta? Pedras mortas, páginas de livros. Mas a obra de Vicente de Paulo está aí, viva, palpitante, eterna, maior ainda que em vida do santo, multiplicada muitas vezes. Não há lugar perdido no Mundo, na Europa, na Ásia, na África, na América ou na Oceania, que não apareça nos mapas da caridade como parte de uma província Vicentina. Hospitais, orfanatos, escolas, asilos - qualquer forma de caridade elas revestem. E já temos como certo, quando começarem as viagens interplanetárias, assim que se criarem as primeiras colônias terrestres em Marte, na Lua, na Alfa do Centauro - , onde quer que se fixe o homem pelos céus além, logo há de aparecer por lá uma corneta branca de Irmã de Caridade, a fundar um hospital para aborígines siderais, a alimentar e assistir orfãozinhos e desvalidos do planeta novo… * Texto publicado originalmente na edição de 24 de setembro de 1960, na revista semanal O Cruzeiro, para a qual a autora Rachel de Queiroz escreveu ao longo de 30 anos, na ocasião do tricentésimo aniversário de morte de São Vicente de Paulo. ** Sobre a autora: Rachel de Queiroz nasceu em 1910 e faleceu em 2003. Natural de Fortaleza-CE, foi tradutora, romancista, escritora, jornalista, cronista e dramaturga. Vencedora do prêmio Camões de literatura, foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras.
Pe. Guillermo Campuzano, CM
Pe. Guillermo Campuzano, CM O Futuro da Congregação da Missão no caminho com São Vicente de Paulo, rumo ao 5º Centenário A Congregação da Missão está vivendo "uma travessia decisiva na sua história. Perpassa o limiar de uma trilha tênue, que se entrelaça entre o Velho e o Novo; vive uma gestação, e geme na dor de um parto difícil, que dificulta a aventurar-se à uma nova perspectiva, lidando assim com um horizonte distante e nublado". A Assembleia Geral de 2022 realiza-se num momento em que o fruto que precisa ser gestado e parece ser maior do que a nossa capacidade de nos comprometermos com a novidade. Há muitas coisas que nos paralisam e é por isso que o nosso olhar se torna confiante à providência de Deus.   Creio que se estivéssemos entrevistando o Vicente de Paulo do século XVII, ele nos diria que o futuro da Congregação da Missão depende da livre iniciativa da Providência de Deus, que é quem pode dar-lhe o seu futuro, como o quis dar em seu começo. Esta é uma obra de Deus, e não dos homens.   “Ó Salvador! Eu nunca pensei sobre isso. Deus é quem fez tudo. Os homens não tiveram parte alguma. Quanto a mim, quando penso na forma como Deus quis dar origem à Companhia na sua Igreja, confesso que não sei que parte tive nela, e parece-me que é um sonho tudo o que vejo. Tudo isso não é humano, mas de Deus!” SVP XI, 326   A Congregação da Missão hoje é uma argila frágil nas mãos de quem pode refazê-la. O essencial para nós é sempre recriar nossa identidade na manufatura diária da Missão. A reinterpretação de nossa identidade e missão (hermenêutica do carisma) deve ser feita a partir do contexto cultural e estrutural de nosso tempo e no seio das transformações da Igreja propostas por Francisco, sempre seguindo o espírito próprio expresso nas constituições. No contexto desta assembléia e do nosso momento histórico, temos mais perguntas do que respostas: Aonde nos chama Deus hoje? Que fronteiras devemos cruzar? Que paredes precisam ser derrubadas? Onde está Deus, para nós, em tudo o que está acontecendo conosco? Qual é a direção de nossa história comum? Entrar no V centenário da Congregação da Missão nos é apresentado como uma oportunidade para discernir e intuir para onde o Espírito está conduzindo a humanidade, a Igreja, a Congregação da Missão.   Renovemos nossa Confiança com a convicção de que "a confiança do coração terá a última palavra" No contexto desta Assembleia Geral, gostaria de convidá-los a confirmar que a Congregação da Missão e seu Carisma – que compartilha com toda a Família Vicentina – não estão acabados e que sua criatividade não está esgotada... no entanto é urgente que renovemos – em nós mesmos – os modos de vivê-la. Devemos trazer novas formas de viver o Carisma; as alternativas/possibilidades que o Espírito está suscitando nos levarão a lugares insuspeitos onde novos sinais imprevisíveis do Reino germinarão entre nós. Que nos próximos anos despertemos uma enorme peregrinação de confiança em toda a nossa Congregação... que esta confiança do coração tenha uma força irreprimível de revitalização que nos lança a um futuro cheio de esperança. O voto de estabilidade afirma que não damos espaço ao fatalismo ou à resignação.   Pois eu sei muito bem os planos que tenho para vocês, diz o Senhor, planos de bem-estar e não de calamidade, para lhes dar um futuro cheio de esperança. Jeremias 29,11   Possibilidades do nosso Discipulado Missionário   Nossa confiança é baseada em um conhecimento comum claramente expresso em nossas constituições. Por vocação, estamos interessados na pessoa de Jesus e no reinocentrismo que foi o motor de sua existência terrena.   1. Jesus é a chave a partir da qual Deus se aproxima de nós hoje, tal como fez na vida de São Vicente.   2. A partir da existência de Jesus, Deus nos aproxima de si mesmo e nos compromete com o Reino que foi a Missão confiada ao Filho, uma missão que só é realizada pelo trabalho do Espírito. Estamos, por nossa vocação, incorporados à Missio Dei.   Seguir Jesus (fim da Congregação da Missão) é uma expressão à qual o Evangelho de Marcos dá um duplo propósito, explicando a vocação da igreja primitiva: "para que estivessem com ele", proximidade místico-relacional, e "enviar-lhes proclamar”, compromisso profético-missionário (Mc 3,14). Os evangelhos também insistem na metáfora do “caminho comum” - sinodalidade - como exigência do seguimento de Jesus (Mc 1,2;8,29). Os textos expressam sumariamente o envolvimento de toda a vida pessoal, relacional e funcional no exercício do discipulado. Este discipulado deve se expressar misticamente, profeticamente, comunitariamente e missionariamente para que seja uma experiência de desenvolvimento integral capaz de humanizar a pessoa. A humanização do missionário vicentino, como a de todo batizado, acontece no seguimento de Jesus em comunidade, este é seu horizonte e seu espaço vital.   O anúncio explícito do Evangelho (evangelização) deve acontecer hoje através da encarnação dos valores do Reino em todas as culturas, para favorecer e tornar explícito o diálogo inter-religioso em favor da paz, da justiça, da dignidade da vida e da liberdade, em favor do único essencial: o Reino.   Congregação da missão: carisma-história   A Congregação da Missão não é um fim, mas um meio. A sua revitalização e o seu futuro têm a ver com o FIM (C1) que lhe dá a sua existência e a sua razão de ser. O FIM, realizado na história, é o único dinamismo capaz de revitalizá-lo continuamente e lançá-lo para um futuro na novidade do Espírito que "faz tudo novo" (Ap 21,5).   A relevância, a vitalidade, a atualidade, o futuro da CM se dá pela sua relação com o binômio carisma-história. A vitalidade do carisma vicentino não é exclusiva da Congregação da Missão, pois, sendo um dom do Espírito, o comunica e o mantém vivo onde quer (Família Vicentina). A vitalidade, atualidade e pertinência do carisma se dão pela sua relação permanente com o Reino ao qual pertence. (Cf. AG 98).   O horizonte no Carisma Vicentino aponta o caminho para o futuro da CM: O Reino de Deus e Sua Justiça   O Carisma Vicentino está impregnado da novidade própria do Espírito, contém uma força batismal (místico-profética-comunal) de implantação incontrolável da justiça social e ambiental como expressão da chegada do Reino. Relaciona-se com todos os outros carismas por seu ponto de partida – O Espírito – e ponto de chegada – O Reino –, e se nutre de uma leitura específica da Palavra de Deus – História e Escritura – como a entendia São Vicente. O carisma não foi plenamente expresso na vida de Vicente porque sua plena expressão só acontece no continuum da história. Por pertencer ao Reino, o carisma é um dom universal, transcultural e transreligioso.   "Que felicidade, meus irmãos... Dar a conhecer Deus aos pobres, anunciar Jesus Cristo, dizer-lhes que o reino dos céus está próximo e que este reino é para os pobres" SVP XI, 387. Ed. Espanhol. Conf 195   Um 'festival das incertezas': insustentabilidade dos modelos atuais   O contexto histórico é um agente essencial para a transformação e revitalização do carisma e, portanto, do futuro da CM:   1. Vivemos uma crise da civilização humana: nossa civilização esgotou sua energia interna, chegou a um ponto de morte e toda a vida está em risco. A história de hoje pode ser lida a partir de duas chaves emergentes: A chave da EQUIDADE (chave antropológica) e a chave ECOLÓGICA: A VIDA como escopo e conteúdo de tudo e o cuidado da vida vulnerável como compromisso único de uma humanidade na qual ninguém é excluído.   2. Vivemos uma profunda crise da civilização cristã e, dentro dela, do modelo eclesial católico. O modelo foi rompido em sua contradição mais profunda - o progressivo distanciamento do Evangelho e de sua proposta na vida, palavras e ações de Jesus (cf. Rm 1,16). As três chaves para esse distanciamento do evangelho são as mesmas que Jesus combateu abertamente no judaísmo religioso e na sociedade de seu tempo: Poder-Dinheiro-Abuso. Essas chaves estão expressas no aparato clerical que Francisco insiste que devemos desmantelar para aproximar o ministério ordenado da prática e do ensino de Jesus.   3. Vivemos uma profunda crise nos muitos modelos de Vida Consagrada (VC). Ancorado no inverno eclesial, VC está sendo ameaçado pelo desencanto, corrupção na gestão dos bens, conflito, doença, idolatria da imagem, individualismo radical, consumo acrítico de bens desnecessários, busca de si mesmo, vida dupla na conduta sexual. Todas essas coisas e outras que em muitos contextos se tornaram cotidianas. Isso também está acontecendo entre nós. Há três chaves importantes para abordar esta crise da Vida Consagrada que nos afeta diretamente:   a) O desaparecimento progressivo da VC nas sociedades do norte devido ao secularismo radical, envelhecimento, saídas, falta de vocações, aposentadoria precoce, funcionalismo ministerial.   b) Africanização e asianização da Igreja e da Vida Consagrada. O catolicismo está crescendo anualmente a uma taxa de 4% na África e 3% na Ásia. As Congregações presentes nestes continentes experimentam semelhante crescimento e transformação no corpo cultural de seus institutos. Essa realidade está começando a se tornar evidente também entre nós.   Há duas chaves geopolíticas e econômicas que são fundamentais nessas transformações:   . Pan-africanismo e Renascimento da África rumo à autonomia, pós-colonialismo, independência (auto-sustentabilidade) (Ver modelo para África 2063). Como os conflitos de identidades nacionais serão resolvidos em sociedades multitribais?   . A virada da economia mundial para o poder global de fato da China. A progressiva emergência do Império Chinês baseia-se no domínio da economia global, na posse da terra e no acesso irrestrito aos recursos naturais através do investimento em infraestrutura e bens de consumo nas economias pobres.   c) Há hoje longas sombras que pairam sobre a Igreja e a Vida Consagrada na América Latina. Após a pandemia, um secularismo da cavalaria está se tornando evidente. Os abusos estão sendo descobertos em poucos anos em todas as igrejas do continente e do Caribe. Uma transição religiosa do catolicismo para os movimentos pentecostais também é uma transição maciça para espiritualidades não-teístas e ateísmo absoluto. O chamado continente mais católico vive uma das desigualdades mais escandalosas do mundo inteiro e fenômenos extremamente preocupantes de violência e instabilidade política em um continente com um extraordinário potencial humano, cultural e de recursos.   d) Reestruturação da Vida Consagrada: A Vida Consagrada, em todo o mundo, está passando por um processo de profunda revisão e ressignificação que está produzindo, como consequência, uma reestruturação de dois modelos de governança, gestão econômica e articulação social, cultural e pastoral.   A Congregação da Missão é hoje também um Campo Missionário:   Padre Luis Vela disse, na década de 1980, que a CM era um campo missionário. Ele identificou dois grandes males: a dispersão (fuga da solidão) e o isolamento (fuga da intimidade).   Nestes contextos de discernimento comum, estamos descobrindo e aceitando a verdade de nos vermos e nos sentirmos como um campo missionário no qual são chamados novos líderes, que sejam curadores, inteligentes e visionários. Se queremos nos revitalizar, devemos abordar, sem medo, as nossas próprias incertezas.   Em nossas reuniões, sempre ouvimos como a vida clama dentro de nossas comunidades; Se ouvirmos esse clamor e respondermos a ele, conseguiremos uma ressignificação/revitalização de nossa teologia e de nossa práxis, de nossa vida e missão. Com toda a Igreja, a Congregação É HOJE UM CAMPO MISSIONÁRIO, neste campo missionário é urgente a REFORMA e a ressignificação/revitalização! Como ouvir os apelos da vida lá fora se não queremos ou temos medo de ouvi-los dentro? Nosso gemido comum é a voz do Espírito dentro de nós: “O Espírito geme dentro de nós” (Rm 8:26). Este Espírito geme em nossa inconsistência, em nossa doença, em nossos rompimentos. "O Senhor Deus ouviu os seus gemidos e viu a sua opressão e desceu para os libertar" (Cf. Êxodo 3, 1-20   A Revitalização para o futuro (autopoiese) da CM não é uma fuga ao "festival das incertezas" da história:   A ambiguidade nos confunde, a vulnerabilidade nos aterroriza, a incerteza nos assusta e nossa tentação é sempre fugir. Meus Irmãos, nesta hora da nossa história, não podemos fugir! Devemos nos colocar no nosso aqui e agora com grande verdade e profunda confiança.   . A fuga ao passado: Do ponto em que chegamos VAMOS EM FRENTE... (Filipenses 3, 16). A revitalização/caminho para o futuro não acontece através de uma dinâmica restauracionista: o restauracionismo dogmático, litúrgico-espiritual, moral, jurídico ou pastoral está se tornando visível em todos os lugares... No espírito original como escreveu São Vicente nas Regras Comuns, isso não é nosso Lugar, colocar. Assim o entendem as Constituições no número 2 que nos convidam a ABRIR NOVOS CAMINHOS. Novidade, inovação e criatividade é uma dinâmica interna típica do nosso carisma “ao infinito”. Nosso Carisma é um CARISMA FONTE – gerador de novidade – e não um CARISMA ESPELHO, medroso que foge para o passado.   . A fuga para o futuro: a fuga para o futuro é uma espécie de ilusão coletiva típica da humanidade virtual que não resiste ao peso angustiante do presente. O MC não pode se tornar a Ilha da Fantasia... nossos projetos devem ser todos financeiramente e estruturalmente auto-sustentáveis, replicáveis, feitos em colaboração, permeados pelo próprio espírito do fundador, que é um realismo prático capaz de fazer avançar a obra de Deus afetivamente e efetivamente. Não podemos viver da imaginação de projetos inviáveis, a revitalização não acontece através da construção física de grandes edifícios ou da criação de estruturas insustentáveis.   . Há uma terceira fuga determinada por uma certa maneira de se situar no presente: o pacto de não agressão com o presente faz com que muitos de nós, individual e coletivamente, nos conformamos com a cultura consumindo-a e sendo consumidos por ela. Não geramos mais cultura, dirá o documento de Aparecida, referindo-se ao cristianismo moderno. Não podemos concordar ingenuamente com um presente que sufoca o cerne dos valores que dão sentido às nossas vidas. Há na existência de Jesus, assim como em Vicente, uma presença na história que resiste à cultura do mundo (Jo 17, 15-16) e que gera um novo modo de ser, viver, pensar. É por isso que nossas constituições se apressam em citar Evagelii Nuntiandi 23 que define o reino de Deus como 'um novo mundo, um novo estado de coisas, um novo modo de ser, um novo modo de viver em comunidade...' (C11). Este Reino foi inaugurado pelo evangelho e esse é o nosso objetivo exclusivo.   Do nosso presente ambíguo para um futuro bem orientado a partir de nossa CONFIANÇA PASCAL: Nosso Profetismo   • Um futuro que não teme a morte, mas a representa a partir da carismática arte de morrer: morrer para formas ineficientes de missão, para estruturas ultrapassadas, para comportamentos assimiliados e distantes do evangelho e das Constituições, para as lideranças desintegradas e incongruentes, para todas as formas e conteúdos que sufocam o dinamismo do Espírito entre nós.   • Um futuro baseado na capacidade de se fazer novo –ressuscitar- permanentemente: caminhemos para a redefinição (transfiguração-ressurreição) da CM que traz como consequência sua reestruturação e reconfiguração.   • E um futuro bem orientado: liderança curativa-inteligente-visionária...   Nossa revitalização se dará no vínculo entre uma profunda experiência espiritual-contemplativa da Palavra de Deus no texto e na vida e uma abertura criativa ao mundo, porque assim nasceu o carisma no coração de São Vicente. Hoje somos novamente convidados à FIDELIDADE CRIATIVA (VC 37) para sermos uma Congregação com raízes e asas.   O PROFETISMO (revitalização) do CM tem a ver com sua maneira de se situar no presente, por isso hoje nos perguntamos: Onde estão os profetas de hoje, aqueles missionários que dão testemunho e nos desafiam a partir coerência de suas vidas? Esses missionários fazem resistência à cultura do mundo a partir da conquista permanente da integridade e da conduta ética. Suas palavras e ações são contraculturais e exigem que assumamos um novo estilo de vida capaz de denunciar a desigualdade, a injustiça estrutural, a violação dos direitos da pessoa e da terra, a exclusão e o racismo.   Hoje não podemos ser apenas uma força de trabalho a mais nas esferas social, política ou econômica. Nossa missão é ser vanguarda profética na história. O Carisma Vicentino é pró-cultural. Está presente nas encruzilhadas da história como agente de transformação que impulsiona a humanidade e a Terra na direção do Reino de Deus. A Congregação da Missão faz parte de uma corrente profética global que percorre toda a história. Hoje somos chamados a recuperar nossa origem profética mais primitiva, firmando compromisso com o trabalho junto a VIDA vulnerabilizada. Este compromisso deve ser expresso a partir da profecia da proposta, da colaboração, da superação do isolamento, do reencantamento carismático, de ser sinais de novidade, de comunidades reconciliadas e missionárias, de uma disponibilidade radical para a vivência do carisma,  e de tentar repetidamente, sem desistir, seguir os passos dos que receberam a primeira intuição do Espírito: Vicente e Luísa.   Dinâmicas e critérios de revitalização   Quem o fará? Disponibilidade para a revitalização   Dinâmicas:   A revitalização da CM não se dará por decreto, nem por grandes documentos e reflexões teológicas ou espirituais, nem por ritos muito solenes ou atos muito piedosos, muito menos pela construção de monumentos ou imagens comemorativas do fundador . Esta revitalização só é possível: de baixo para cima a partir de uma atenção intencional às pessoas e comunidades locais. Essas pessoas e comunidades são o lugar privilegiado e real do mais precioso. de dentro para fora como fruto de uma convicção e de uma decisão profunda e como um dinamismo de metanoia que transforma tudo mantendo a raiz. e da vida (experiência) que depois pode virar texto. Renovemos nossas vidas para que um dia tenhamos algo a contribuir para a renovação das constituições.   Critérios:   1. Voltar o olhar para dentro, para fazer uma introspecção completa e honesta da vida, das estruturas, do carisma e das suas possibilidades para o futuro. A partir da dor que essa experiência produz, honar as verdades descobertas, negócios inacabados e realidades não integradas, e então preparar-se para olhar para fora, com uma nova paixão.   2. Jogar fora as autodefesas - pessoais e institucionais - que mantêm nossas estruturas envelhecidas protegidas e as verdades dolorosas que elas escondem. Dar nomes às nossas feridas, nossas realidades quebradas e nossas necessidades de cura;   3. Viver nossas vidas de forma relacional e ética. A tarefa mais difícil da revitalização é desaprender tudo o que não contribui para a realização do sentido escolhido para a vida e tudo o que é contrário ao FIM da CM, ao qual fomos chamados. Esta é uma tarefa de todos, nos múltiplos contextos em que vivemos.   4. Parar de culpar os outros por nossa realidade e assumir a responsabilidade por nossa própria transformação comprometendo-nos a novos comportamentos que ajudem a olhar com esperança o neste presente, que é a única coisa que modestamente controlamos;   5. Identificar a resistência à mudança incorporada em pessoas e grupos específicos. Determinar as verdadeiras razões ocultas dessas resistências; estar ciente dos esquemas mentais, econômicos e morais.   6. Atenção crítica à tirania do nosso EU que se expressa na primazia da aparência e da acomodação. Na minha opinião, isto é um núcleo vital para compreender muitas das coisas que nos acontecem.   7. Valer dos referenciais vivos do carisma, aqueles missionários que, de maneira natural e sem afetação, encarnaram o carisma em suas vidas e se tornaram referências comuns nas comunidades e províncias.   8. Deixar-se formar, evangelizar e transformar pelo testemunho e impacto espiritual de nossos irmãos e irmãs da Família Vicentina, eles nos amam e nos ajudam com o amor familiar.   Vamos tentar mudar antes que o declínio se torne irreversível. Se formos ousarmos nessa busca sincera em todos os níveis dentro da CM, a partir da escuta recíproca, do caminhar juntos, do estudo compartilhado, da busca do consenso sobre o que é essencial e do discernimento compassivo – encontrar o sentido de nossa própria realidade individual, comunitária, institucional - estaremos prontos para tomar decisões proféticas que tornem Deus presente entre nós e que projetem nosso futuro (modelo do processo sinodal).   Pistas no evangelho para um roteiro de nossa revitalização com vistas ao futuro da Congregação da Missão:   Devemos traçar um roteiro que nos leve na direção de um futuro desejado. Caso contrário, o futuro indesejado se imporá à nossa inércia. Podemos aproveitar esta nova oportunidade para traçar um caminho de esperança ao longo do qual caminharemos juntos em direção aos nossos horizontes de novidade. Podemos projetar e nos comprometer com uma agenda transformadora para todos, na qual o MC se torne novo a cada dia. Assim poderemos responder com novas ações ao pessimismo institucional e identificar alguns eixos formadores que nos ajudem a revitalizar-nos enquanto nos comprometemos com a busca responsável do nosso futuro comum. Quero propor alguns eixos que, a meu ver, nos ajudarão na revitalização e na busca responsável do nosso futuro comum para que o CM se comprometa com todas as suas forças e recursos na diaconia da justiça social e ambiental, na diaconia do reino de Deus e sua justiça (Mateus 6, 33). 1. O movimento para a VIDA como âmbito e conteúdo de tudo: Palco de uma paixão radical pela VIDA, à maneira de Jesus. “Eu vim para que tenham vida, VIDA em abundância” (Jo 10,10) O movimento em direção à VIDA que exige a leitura orante da vida em oposição ao estudo orante do Evangelho nos dará a possibilidade de dar um conteúdo mais que intelectual aos processos de formação no MC e compreender tudo o que vivemos a partir desta bela leitura chave. Além disso, nos forçará a direcionar todo o carisma na direção dos gritos de vida em todos os cantos da terra. O cuidado da vida vulnerável e injustiçada é a forma mais real de reinterpretar o significado do conceito de pobre como opção prioritária do carisma.   . A vida existe em movimento para – ser para – (itinerância interna e externa) e por isso nunca acaba.   . A vida só existe interconectada – ser com – (o movimento INTER é o movimento da vida). A vida que se isola ou se isola perece.   . A vida está situada culturalmente, geograficamente e historicamente (estar lá). A situação determina o modo de vida e gera uma extraordinária diversidade.   . A vida só existe quando explode de dentro – movimento germinativo – (o retorno à interioridade).   . A vida está sempre em tensão, nesta tensão a vida se desenvolve.   . Podemos desenvolver uma espiritualidade de maravilha diante do mistério, beleza e bondade da vida.   . Atenção prioritária à vida vulnerável e injusta como um lugar adequado de carisma.   HOJE eu lhe dei a escolha entre a vida e a morte... Escolha a vida para você e para aqueles que você ama viver. (Dt 30,19)   Pergunte à terra (vida) e ela lhe dirá tudo (Jó 12, 8)   2. Movimento em direção à essencialidade: Etapa dos diálogos de essencialidade. Acorde você que dorme (Efésios 5, 14)   Os diálogos de essencialidade serão uma resposta afetiva e eficaz à crise profunda e generalizada de uma história que geme de dores de parto (Cf. Rm 8, 22-39). Reconhecemos que os modelos atuais são insustentáveis e, nesse sentido, o caráter global do chamado profético de Francisco em Laudato Si, A Querida Amazônia e Fratelli Tutti.   . Como descoberta de que somos portadores de apenas uma parte da semente da VIDA. Esta semente de vida foi confiada a todos os povos da terra: de todos os sexos, classes, raças, culturas, religiões, nações, línguas... Ap. 7,9   . Como possibilidade de adesão a uma megatendência profética na história que busca cuidar e preservar a vida. É nesta Megatendência que se faz presente o sopro de Deus (seu Espírito) que renova a face da terra (Salmo 104)   . Como resposta concreta ao dano moral que a humanidade está causando à toda a vida em nosso planeta.   Esse movimento em direção à essencialidade exige que:   . Reconheçamos que o essencial, quando passa pelo coração humano, torna-se vulnerável (Salmo 8, 3-4)   . Não tenhamos tempo para o absurdo, nem para nossas constantes reclamações e demandas e que haja cada vez mais pessoas dispostas a uma disponibilidade radical baseada no DOM que nos fundou, nos anima e nos renova constantemente (Mc 6, 30-44). )   . Assumamos o discernimento, a conversão (pastoral, ecológica, relacional, sinodal) e a formação como estilo de vida e não como momentos específicos (Mc 1, 15)   . Recupere e cure todos os tecidos que garantem que a vida em sua plenitude seja sustentável, começando por nós.   3. Movimento para a possibilidade de ser signo-parábola-metáfora credível: Palco do testemunho e referentes vivos (teologia encarnada) (Marcos 8, 11-13)   A perda de nossa credibilidade pessoal e institucional só pode ser restaurada a partir de um novo comportamento. Este não é o momento para defesas ou desculpas. Este é o momento de testemunhar na incorporação dos valores do reino, em nossas vidas pessoais e em nossas comunidades locais. Só assim nossa vida se tornará uma boa notícia para a vida vulnerável.   . Movimento em direção à densidade (significado-simbolismo) de nossa presença mais do que sua extensão numérica, histórica ou geográfica (Mateus 13, 55-57)   . A partir de Jesus caminhamos para "o valor do pequeno, do pequeno, do anónimo, do gradual e do silêncio". Espiritualidade da minoridade... (Lc 4, 16-21)   . A resistência profética à cultura do individualismo radical, do consumismo acrítico, da idolatria da imagem/aparência e da vida dupla como comportamento cotidiano (Mateus 6, 24-34)   . Ser uma vanguarda profética e não apenas uma força de trabalho... nosso jeito de ser humano é nossa única possibilidade profética - profecia em uma situação e profecia que oferece alternativas. A profecia da 'palavra única' é uma profecia cansada, desgastada.   . A conquista contínua do comportamento ético que revela que somos seres inteiros e integrados e como lugar de revelação do que acreditamos e amamos, com todas as forças da vida.   . Movimento de e para a FORÇA do Amor... do primeiro amor ao último amor passando/parando/no amor de hoje... VOCÊ AMOU? O amor sobreviveu em sua vida?   Jesus, olhando para Pedro, perguntou-lhe: Pedro, você me ama? (João 21, 15-19)   3. Movimento para a centralidade da relacionalidade a partir da chave da EQUIDADE (igual-diferente): Etapa da construção urgente da equidade social e equidade eclesial nas novas racionalidades humanizadoras ‘Fazei isto (comunhão) em MEMÓRIA de mim’ (Lc 22, 19)   A criação tem a marca de Deus e esta marca é relacional. a vida existe interconectada. O seguimento de Jesus, a partir do ícone trinitário, só acontece em comunidade e por isso esta linha está claramente expressa no pensamento de São Vicente e nas constituições que nos regem (C. 19-27). No evangelho há uma proposta relacional e tudo no evangelho é julgado por essa proposta. Isso se expressa na ética do samaritano, que é a resposta de Jesus a quem quer salvar a vida. Por isso a espiritualidade vicentina também é samaritana.   . No cristianismo, esse movimento é o único capaz de gerar uma FÉ que possa tornar cotidianamente a essência relacional do DEUS de Jesus na história. Este dinamismo marca o nosso retorno contínuo à Trindade como o LINK que gera e sustenta a vida.   . A partir deste movimento poderemos contribuir para o diálogo gerador de novidade sobre a dignidade relacional da pessoa humana - a partir da chave da diversidade - e para a reinterpretação ecológica dos direitos humanos e da dignidade de toda a vida.   . A história da comunhão no MC como condição essencial e baluarte da história mística e profética. "Que eles sejam Um como você, eu sou UM, para que o mundo creia" João 17, 21-26   4.Movimento para o futuro de um Carisma que é FONTE e não simplesmente espelho: Palco do reencantamento carismático e da disponibilidade para vivê-lo o tempo todo de nossas vidas (voto de estabilidade).   Alguns de nós perceberam dúvidas e questionamentos na CM sobre processos que usamos concretamente para a reinterpretação de nosso carisma neste século que está acontecendo. Esses processos estão sendo assimilados por outras congregações religiosas nas quais veem aqui uma oportunidade de revitalização e reinterpretação. Nossas dúvidas vêm do cansaço, da insistência, mas não podem ser um obstáculo para seguir em frente. Destaco alguns dos elementos que na minha opinião são urgentes e necessários para nos entendermos hoje:    ANEXO FINAL:   Prioridades que surgiram nesta assembleia: urgências de sempre   Farei apenas alguns esclarecimentos sobre as prioridades habituais dentro do nosso carisma.   1. A Vocacionalização da Cultura Congregacional   . Cada um é responsável pela própria vocação – processo de santidade pessoal e nas comunidades locais.   . Somos responsáveis pelas vocações de nossos coirmãos - processo de cuidado comum.   . O verdadeiro tesouro de uma comunidade, seu recurso mais importante, são seus membros individual e coletivamente – o valor da pessoa, sua história e sua dignidade.   . A atração vocacional é exercida pela comunidade sã, reconciliada, apaixonada, acolhedora, livre, sempre se fazendo. A comunidade vocacional é aquela que não se faz porque se faz todos os dias na dinâmica pascal e na sua experiência mística, profético-missionária e comunitária.   2. A Ética do Cuidado e Prevenção na Congregação da Missão   A situação criada pelos abusos sexuais, de poder, econômicos e de manipulação de consciência exige que nós, como Igreja, entremos em um processo de conversão e reforma, que deve começar com a reivindicação das vítimas. “Nos últimos tempos, é tempo de escuta e discernimento para chegar às raízes que permitiram que tais atrocidades ocorressem e se perpetuassem, e assim encontrar soluções para o escândalo dos abusos não apenas com estratégias de contenção -essenciais mas insuficientes-, mas com todas as medidas para poder enfrentar o problema em sua complexidade” (Carta do Papa Francisco ao Povo de Deus Peregrino do Chile, nº 3).   É urgente que todas as províncias comecem ou terminem a consolidação de protocolos de prevenção, atenção, reparação e proteção de crianças e adultos em situação de vulnerabilidade. Continuar os esforços para consolidar ambientes de proteção nas comunidades, igrejas, escolas, casas de formação. Sem assumir nada devemos juntar a atenção, a denúncia (o silêncio é cúmplice) e a reparação. Este deve ser um elemento essencial da própria formação dos nossos e da formação do clero.   3. A formação como processo integrador da vida   Compreender que existe apenas uma Formação e que a divisão entre formação inicial e permanente só existe por razões práticas. A apreensão do carisma leva uma vida inteira e essa é a tarefa da formação. A formação não pode e não deve ser dividida. Quem entra na CM deve saber desde o início que aqui a FORMAÇÃO é uma dimensão essencial do estilo de vida e uma exigência da vocação e missão própria da comunidade. A formação é tão importante como rezar, como viver em comunidade, como ação missionária. A formação é essencial à nossa identidade (Cf. C. 77). A formação NUNCA TERMINA e fazer da formação uma CONVICÇÃO da vida pessoal é uma exigência do carisma.   Todo treinamento é para APRENDER o CARISMA e ser Apreendido por ele, para reorientar nossa existência como aconteceu com São Vicente. Para que o carisma (opção fundamental) consiga integrar todas as dimensões da vida do missionário. O carisma é aquele fundamental ao qual Deus em seu mistério nos associa. Não encontramos o carisma, o carisma nos encontrou em um dia de graça excepcional. Este carisma deve encarnar-se na vida passo a passo, até que se possa dizer de um missionário vicentino que ele é o carisma, no seu modo de ser e agir, no modo como reza, se relaciona, pensa e até no modo de lidar seus sentimentos e sua energia afetiva e sexual. As virtudes fazem sentido hoje porque são valores do Reino que Vicente encontrou na vida de Jesus. Os conselhos evangélicos são um meio para a Missão. seguimos Jesus, casto, pobre e obediente, dedicando toda a nossa vida a continuar a sua missão no mundo (Missio Dei).   4. LIDERANÇA que canaliza o futuro desejado a partir da reconstrução comum do sentido da nossa vida a partir da chave do multiculturalismo (diversidade) Cure indivíduos e comunidades usando a experiência humana de Jesus:   . O poder da Palavra: uma liderança que ouve e não se cala   . O Poder da Ação: Agir em Pessoa   . O poder da Comunidade: caminhar, avançar, tornar-se, curar juntos   . O poder da intervenção oportuna e sem demora: fornecendo soluções intermediárias quando a hora da resolução final ainda não chegou . Liderança integral e integradora: o poder da esperança... Nunca desista e seja empenhados em fazer atos extraordinários em favor da vida: milagres!   5. A Eclesialidade do Carisma Vicentino e sua contribuição para a formação de clérigos e leigos no contexto do processo sinodal.   . Superar o clericalismo: "complexo do escolhido e patologia do poder clerical" (Francisco dezembro 2014) dentro do CM assumindo formas ministeriais mais próximas da prática de Jesus   . Discernir nossa presença nos seminários (conteúdos, metodologias, liturgia, ação pastoral) desta iniciativa papal que se fundamenta na teologia do Concílio.   . Forma de amizade, testemunho, convite, admoestação fraterna, acompanhamento espiritual e colaboração em todas as Igrejas particulares onde estamos presentes.   Conclusão   Meus irmãos, cabe a nós manter viva a História do carisma entre nós para manter viva a razão de nossa existência. A origem histórica do MC é a experiência espiritual de Vicente de Paulo, não como fuga, mas como busca da vontade de Deus que reorienta sua humanidade, da contemplação da Palavra (texto e contexto histórico) que dinamiza sua ação , da mística que se torna comunidade e compromisso profético com a história. Vamos sair, vamos sair, sem demora, com pressa e sem medo, da intimidade itinerante e da comunhão missionária (cf. EG 23). rumo ao futuro que Deus preparou para nós, um futuro cheio de esperança.  
Pe. Eli Chaves, CM
Pe. Eli Chaves, CM Em tempos de Assembleia Geral... Os tempos mudam... Antigas e novas pobrezas continuam a nos desafiar... e a Congregação da Missão é chamada a continuar sua caminhada missionária, buscando se renovar, discernir e responder aos apelos de Deus, na busca de fidelidade e fecundidade em sua missão de evangelização e formação em favor dos mais pobres!   De 27 de junho a 15 de julho, em Roma, a Congregação da Missão realiza sua 43ª Assembleia Geral. Com objetivo de “Revitalizar nossa identidade ao início do quinto centenário da Congregação da Missão”, a Assembleia tem a difícil tarefa de ajudar os mais de 3.000 missionários da Congregação da Missão, presentes em realidades diversas de 96 diferentes países, a construírem uma identidade aberta, dialogal e interativa, a partir dos eixos de sua vocação: a centralidade de Cristo evangelizador dos pobres; a destinação aos pobres; a vida e serviço comunitário na evangelização dos mais necessitados e na formação do clero e leigos na e para a caridade missionária.   A identidade de uma congregação é a manifestação visível e histórica do que a constitui essencialmente. A identidade nasce, se desenvolve e se transforma dentro do caminhar histórico de vivência do carisma, processando-o na saudável tensão entre a fidelidade à herança carismática recebida de seu fundador e a criatividade na ação de assimilação e enfrentamento dos desafios históricos.   Na atual Assembleia, a Congregação da Missão continua o esforço que vem desenvolvendo em suas últimas assembleias. Com toda a Vida Consagrada, participa do movimento, que surgiu desde a realização do Concílio Vaticano II, de profundo e sofrido processo de redescobrimento e renovação de sua identidade. Todo este processo acontece na interação dos apelos e valores evangélicos e a escuta e acolhida da urgência dos tempos e dos apelos que vêm do mundo dos pobres.   Como todo processo, esse caminho significa desconstrução de uma determinada identidade que já não responde às novas realidades vividas e a necessidade de, simultaneamente, ensaiar a construção de uma nova compreensão e novas formas de vida e ação missionária. Todo este propósito constitui uma tarefa que necessita ser bem conduzida e levada adiante com o devido vigor, para não cair nos perigos e armadilhas que podem pôr em risco o processo de revitalização identitária, minando seus fundamentos e estreitando seus horizontes.   Nestes tempos em que toda a Igreja é convidada a colocar-se em saída, num caminhar sinodal de conversão missionária, possa a 43ª Assembleia Geral ajudar a Congregação da Missão a melhor dialogar com os pobres, escutar mais seus clamores e discernir caminhos novos de missão e caridade, com um estilo de vida e trabalho renovado, mais solidário com os gritos dos sofridos e necessitados e impregnado da alegria e força do Espírito do Senhor que nos envia a evangelizar os pobres!...
Mariano Pereira Lopes
Mariano Pereira Lopes Identidade Vicentina Minha identidade vicentina fundamenta-se, sem dúvida, em minha origem de uma família cristã, católica, pais religiosos, atentos sempre às necessidades, não apenas dos filhos e de pessoas mais próximas, mas de um sem número de pessoas mais distantes de nossa família. O espírito caritativo de meus pais foi sempre uma marca na educação de seus sete filhos.   Meu vínculo com a Família Vicentina inicia-se com a chegada ao Caraça, em janeiro de 1957. Em seis anos de estudos no Caraça, pude desenvolver não apenas habilidades intelectuais, ano a ano, no curso de Humanidades, mas também valores espirituais, na empatia perfeita com uma vida de oração e inserção no ritmo diário e constante de ações formativas, inerentes ao processo de vida de um aspirante ao sacerdócio. Meu primeiro contato com São Vicente foi a leitura do livro “O pastorzinho de Pouy”, pequena biografia do Santo Fundador da Congregação. Todo o contexto formativo no Caraça me fez conhecer e assimilar cada vez mais o espírito e os valores vicentinos. Após os seis anos de Caraça, a ida para o Seminário Interno, em Petrópolis, me fez avançar na construção de minha identidade vicentina, posto que o Seminário Interno ou Noviciado era um tempo específico de dois anos para estudo e vivência dos valores vicentinos, visando à admissão próxima aos quadros da Congregação da Missão, por meio dos primeiros votos temporários. Foi um tempo feliz, de amadurecimento espiritual, crescimento na vida de oração e inserção na vida comunitária. Relembro cada momento como base de uma espiritualidade cristã e vicentina que vi crescer nos quatro anos seguintes, em que ainda estive ligado à Congregação e me fazem progredir espiritualmente vida afora, na manutenção de uma fé cristã madura e consistente.   Após o segundo ano de teologia, em 1968, desligueime da Congregação. Bem formado, entretanto, nas trilhas de São Vicente de Paulo, jamais me afastei de sua espiritualidade, participando de momentos celebrativos da Congregação, da pastoral catequética na paróquia São José do Calafate, e, há 10 anos, convivendo com os seminaristas nas casas de formação, ministrando aulas de Língua Portuguesa.   Desde 2006, represento a AEALAC – Associação dos ex-alunos dos Lazaristas e Amigos do Caraça -, como seu presidente, no Conselho de Coordenação da Família Vicentina, Regional de Belo Horizonte, fator que me identifica e faz crescer sempre mais na espiritualidade de São Vicente de Paulo.   Finalmente, em dezembro de 2017, exatamente no dia em que se fazia, na Igreja, a abertura do Ano do Laicato, recebi, por meio da Província Brasileira da Congregação da Missão, um diploma, a mim concedido pelo Superior Geral da Congregação, incluindo-me “entre os membros da Família Espiritual Vicentina, participante dos méritos de todas as preces, bênçãos, obras caritativas e apostólicas nela existentes.” Tal insígnia se deve, de acordo com a justificativa existente no diploma, ao reconhecimento e gratidão do Superior Geral, em nome da Congregação, “aos amigos que, com seus gestos e suas obras, tornaram-se beneméritos da Comunidade dos Missionários de São Vicente de Paulo.”   A afiliação à Congregação da Missão, além de grande emoção e alegria, constituiu forte motivo para o aprofundamento de minha identidade vicentina e da vivência da espiritualidade e virtudes do Grande Santo. Confesso, hoje, minha gratidão a Deus e à Congregação da Missão pela oportunidade de vivenciar um conjunto de valores que formam o legado da espiritualidade de São Vicente de Paulo.
Pe. Jan Trzop, CM
Pe. Jan Trzop, CM Carta da Ucrânia sobre a situação dos membros da Congregação da Missão Sniatyn, Ucrânia, 4 de março de 2022.   Saudações e bênçãos!   Gostaria de escrever algumas palavras sobre a situação em nossa Vice-província de São Cirilo e São Metódio, da Ucrânia, a partir de hoje, ou seja, sexta-feira, 4 de março de 2022. Muitos de vocês estão escrevendo e telefonando. Obrigado por sua lembrança, oração e solidariedade. Obrigado por seu apoio e vontade de mostrar apoio a nós, aqui na Ucrânia, e aos refugiados que chegam à Polônia. Gostaria de dizer que estou em contato permanente com a administração da Província da Polônia.   Sobre a situação em nossas comunidades na Vice-província: o pior está acontecendo em Kharkiv. O bairro (onde se encontram a igreja e nossa casa) foi completamente destruído por bombardeios e fogo de artilharia. Graças a Deus, nossa igreja e nossa casa ainda estão intactas até agora. Desde o início da guerra, os sacerdotes e os paroquianos estão se abrigando no porão de nossa casa. Cerca de 160 pessoas foram abrigadas ali, sob um bombardeio contínuo. Muitas casas ao redor da igreja foram completamente demolidas. Nossos padres da província da Nigéria e da Índia partiram no início dos combates.   Ontem, 3 de março de 2022, o Pe. Y. S., e os demais paroquianos que se abrigam em nossa casa deixaram Kharkiv. Eles estão indo para o oeste da Ucrânia. Muitos deles estão se dirigindo para nossas casas em Sniatyn e Storozhynets, e outros para Perechyn em Transcarpathia. É impossível permanecer mais tempo em Kharkiv. A cidade está sendo gravemente devastada. Os amigos que ficaram e não têm chance de evacuar de Kharkiv estão extremamente exaustos e assustados. Eles estão perdendo as esperanças.   Odessa. Os padres V. N. e A. T. permaneceram lá. Os centros de reabilitação da “Comunidade em Diálogo” (para dependentes de drogas) que administramos, em Buldynka, para homens, e em Wizyrka, para mulheres, foram evacuados para Sniatyn. Alguns dos beneficiários voltaram para casa. Outros se alistaram no Exército. Doze pessoas ficaram lá e estão engajadas no serviço voluntário, distribuindo ajuda humanitária na Ucrânia ocidental para Odessa e ajudando a levar as pessoas para a fronteira. V. N. CM também é responsável pela recepção e distribuição da ajuda humanitária organizada pelo ramo vicentino Depaul International. Algumas doações, coordenadas pela DePaul Eslováquia, chegaram nestes dias. Um transporte similar organizado pela província italiana da Congregação da Missão está a caminho e já saiu de Roma. O padre A. está na aldeia de Fontanka. Ele fica com os paroquianos e cuida de todos os nossos projetos. Em Buldynka, há alguns moradores que cuidam da fazenda. O posto avançado da Depaul Ucrânia em Odessa, onde cuidam dos desabrigados, continua seu trabalho, servindo refeições, tratando os feridos e abrigando os desabrigados.   Kiev, onde se encontra a casa provincial “Dom de Deus”, o seminário e a sede de outras organizações pertencentes à Família Vicentina, está sob fogo permanente. A cidade está sob ameaça de cerco. O padre M. T. permanece em nossa casa em Kiev. Há também outras pessoas ligadas à nossa comunidade e às atividades da Família Vicentina que encontraram refúgio na casa. A vizinhança é permanentemente ameaçada e destruída. O Padre O. S., deficiente e cadeirante, foi levado para Storozhynets, para a casa de sua família, onde mora a mãe dele. Nosso seminarista P. M. o transportou e permaneceu em Storozhynets, ajudando os padres da paróquia e ajudando a cuidar do Padre O. O Padre J. M. deixou Kiev para a Ucrânia ocidental.   Nossas casas no oeste da Ucrânia tornaram-se centros de acolhimento para refugiados do leste e do centro do país. As pessoas estão constantemente em movimento e em busca de refúgio.   Os padres V. Z., J. V. e S. P. ficam na casa em Storozhynets. Eles acolhem os refugiados com a “sopa dos pobres”, que eles montaram para este fim. Eles fornecem aos paroquianos o cuidado pastoral e material, de acordo com suas necessidades.   Perechyn. Estão lá os padres V. K., T. W. e Y. H. Como em Storozhynets, eles estão envolvidos no acolhimento dos refugiados e no cuidado pastoral e humanitário aos paroquianos.   Dovhom é uma paróquia em Transcarpathia, que o bispo local confiou temporariamente aos nossos cuidados devido à falta de padres. O padre A. J. está ali estacionado. A situação é semelhante à de Perechyn e Storozhynets.   Lviv – nosso Provincial, Pe. L. K., está lá. Ele está envolvido com o Comitê de Emergência da Arquidiocese de Lviv e Cáritas na organização de toda a ajuda humanitária em toda a Ucrânia.   Os padres J. T. e S. I. estão em Sniatyn. Aqui também acolhemos refugiados em nossa casa. A instituição “Comunidade em Diálogo”, evacuada de Odessa, está sob nossos cuidados. Nós também cuidamos de nossos paroquianos.   Como em todas as nossas casas, nossos sentidos estão abertos às necessidades. Na medida do possível, tentamos apoiar, ajudar, organizar qualquer tipo de assistência. Naturalmente, em todas as nossas casas não nos limitamos a ajudar nossos paroquianos. Cooperamos com instituições eclesiásticas, estatais e militares em termos de segurança e assistência.   Pedimos suas orações,   Fraternalmente,Padre Jan Trzop, CM.   * Publicado originalmente em famvin.og
Pe. John E. Rybolt, CM
Pe. John E. Rybolt, CM As Assembleias Gerais da Congregação da Missão: história e resultados 1. Introdução   A autoridade suprema na Congregação, a Assembléia Geral, tem sido crucial para seu desenvolvimento e direção. Em seus quase quatro séculos de existência, a Congregação realizou quarenta e um desses encontros, sendo o primeiro, em 1661. O próprio Vicente, no entanto, realizou assembléias preliminares em 1642 e 1651, principalmente para desenvolver as regras e constituições da nascente Congregação. Além do mais, enfrentando questões específicas da comunidade, os delegados devem considerar a dependência da comunidade com relação às autoridades da Igreja, bem como sua posição em relação à política do mundo, em geral. Para interpretar os resultados das assembléias, portanto, deve-se estudar a história do mundo, bem como a experiência e a lei da Igreja.   As assembléias trataram de muitas questões a serem apresentadas aqui. O foco deste estudo, no entanto, é em assembléias notáveis por seu impacto de longo prazo na vida vicentina.   2. Primeiros desenvolvimentos   São Vicente baseou muito de seu pensamento sobre regras e procedimentos dos jesuítas. Nas Regras Comuns, ele adotou algumas de suas práticas, e no Codex Sarzana, o texto mais antigo sobre assembléias, às vezes empregava a linguagem jesuíta latina. O termo latino para assembléia, “congregatio” (1), conflitava com o nome da comunidade, Congregatio Missionis, provavelmente por isso o termo vicentino tornou-se “conventus”. O termo francês, “assemblée”, tornou-se, por sua vez, o padrão para várias línguas europeias. Muitas das questões que o fundador incluiu no esboço inicial das Constituições continuam a ser prática vicentina. A lista a seguir cita as Constituições de 1668, às vezes chamadas de “Magnae Constitutiones” (2). São Vicente os desenvolveu, mas não os completou na época de sua morte.   A assembleia geral é superior ao superior geral (C 1668, cap. I, §2), embora ele possa convocar uma assembleia geral (C 1668, cap. I, §5). A sua tarefa é manter a fidelidade da Congregação ao seu carisma e regras, e manter eleições (a partir de novo superior geral [C 1668, caps. III, VI]). Considera propostas (postulados) das províncias (C 1668, cap. VI) e emite decretos legislação (C 1668, cap. I, §7) (3). A assembleia elege quatro assistentes para o superior geral (C 1668, cap. II, §1), bem como o seu admonitor (C 1668, cap. IX). O texto prevê o governo entre a morte de um superior geral e a próxima assembléia geral (C 1668, cap. IV) e a eventual substituição de um superior geral. Este texto também trata da condução de uma assembléia geral (como ordem vocacional entre delegados, votantes, o secretário) e prevê a admissão de delegados, seus suplentes e suas ausências (C 1668, cap. IX).   Além disso, o fundador previa dois tipos de assembleia geral. O primeiro e mais importante era a realizada para a eleição de um superior geral após a morte ou substituição do anterior. A segunda trata dos negócios da Congregação durante a vida de um superior geral (C 1668, cap. XII); estes deveriam ser realizados a cada doze anos, a menos que uma eleição para um superior geral ocorresse dentro desse período (C 1668, cap. XI, §8).   O trabalho das assembleias passadas assemelha-se aos procedimentos das assembleias mais recentes, desde a publicação das Constituições de 1984. Alguns assuntos mudaram, mas três deles são dignos de nota:   a. A abertura, fechamento e transferência de casas anteriormente exigiam a ação de uma Assembleia Geral (C. 1668, cap. I, §3), ou, quando necessário, a aprovação por escrito das províncias europeias (sem dúvida, para facilitar a comunicação rápida). Os delegados quase sempre apoiavam o superior geral, neste tipo de questão.   b. O sistema de votação foi delineado naquele de acordo com o sistema de eleição papal: a forma da cédula, o uso de urna para receber as cédulas, um juramento individual antes de votar enquanto se ajoelha diante de uma mesa que sustenta um crucifixo e a urna. Finalmente, as cédulas eram queimadas (C. 1668, cap. 7).   c. O superior geral propôs candidatos a vigário geral e superior geral, embora os delegados fossem deixados livres para fazerem as próprias escolhas (C. 1668, cap. 3, §1-5).   As mesmas primeiras constituições previam a realização de assembléias provinciais para preparar a assembleia geral (C. 1668, caps. 5, 10). Dois pontos chamam a atenção: quem pode ser delegado e como conduzir a assembléia. Muitas questões daquelas primeiras constituições continuam a fazer parte da prática vicentina atual.   As Constituições de 1668 também deram continuidade à decisão do Santo de realizar assembléias sexenais. Seu objetivo era ter uma pequena e breve reunião, pelo menos seis anos após uma assembléia geral, para discutir a saúde da Congregação. Esta reunião determinaria se uma assembléia geral deveria ser realizada com o propósito de considerar os principais problemas que enfrenta, como conflitos entre províncias ou abusos que demandavam soluções (C 1668, cap. 2, § 5; cap. 11). Quinze delas foram realizadas, entre 1679 e 1939. Elas tiveram duração de, em média, cinco dias, com cerca de vinte e dois coirmãos presentes. Nenhuma delas exigiu a realização de uma assembleia geral (4). Como eram basicamente inúteis, a Congregação eliminou-as em 1954 de suas constituições revisadas.   Os principais resultados das assembléias gerais envolveram principalmente as eleições dos superiores gerais e seus assistentes (que não tinham mandato), e vários decretos baseados em postulados apresentados pelo superior geral ou províncias. Ao lidar com os postulados, muitas assembléias foram deferidas ao julgamento do superior geral e seu conselho. Eles, então, emitiram respostas (responsa) a províncias individuais ou grupos de províncias, mas estas não tinham força de lei para toda a Congregação, pois eram principalmente esclarecimentos sobre pontos de regra ou procedimento. Os decretos das assembleias, inclusive as respostas, formaram a base para a jurisprudência, nossa jurisprudência (5).   3. Antes da Revolução Francesa   Entre a assembléia geral de 1661 e a de 1788, a Congregação teve dezesseis assembleias gerais e sete assembleias sexenais. As assembléias gerais duravam em média dezessete dias, com cerca de trinta membros (passando de dezenove, em 1661, para trinta e cinco, em 1788). Tudo aconteceu em St. Lazare, em Paris. Embora muitas questões possam parecer triviais para as gerações posteriores, algumas foram tão importantes que definem e regulamentam a Congregação da Missão até hoje. A grande questão da primeira assembleia, em 1661, foi a eleição do sucessor ao fundador. René Alméras, CM, amigo confidente de São Vicente e vigário geral da Congregação, tornou-se superior geral. O único outro negócio da assembléia era a eleição dos assistentes e do admoestador.   A segunda assembléia, ocorreu em 1668. Era uma assembléia geral convocada para os negócios da Congregação, principalmente as Constituições, ainda inacabadas. As discussões encheram um espantoso quarenta e nove dias no calor do verão (15 de julho a 1 de setembro), uma duração superada apenas pelo cinquenta e quatro dias passados em 1980, também no calor do verão (16 de junho a 8 de agosto). O importante resultado da assembleia de 1668 foram as constituições oficiais, que orientaram a Congregação até 1954 (6).   Ainda no século XVII, a assembleia de 1697 abriu uma questão que levaria gerações resolver e quase causou um cisma na Congregação. Basicamente, a provável eleição como superior general de um cidadão não francês, Maurice Faure, natural de Savoy, chamou a atenção de Louis XIV. Ele vetou, negando assim implicitamente o cargo a italianos, poloneses e todos os outros, exceto franceses. confrades. A questão básica dizia respeito à natureza da Congregação: era francesa, desde que seu fundador era francês e começou na França, ou não. Em caso afirmativo, que relação tinham as províncias não francesas para isso? A questão era tão complexa que foi encaminhada ao papa, mas a resolução foi insatisfatório. A rigor, o assunto continuou a incomodar a Congregação até a eleição do primeiro superior geral não francês, William Slattery, (embora ele tenha cidadania), e a transferência do generalato para Roma, solução que os italianos e outros vinham propondo há séculos (7).   Desde as Constituições de 1668, outra preocupação era o “espírito primitivo” (“spiritus Instituti”, 1668; “primitivus spiritus”, 1673; “spiritus primigenius”, 1736). Enquanto certas práticas foram introduzidas ou abandonadas ao longo dos séculos, o sentido geral de ser fiel ao espírito do fundador permaneceu. As perguntas surgem regularmente nas assembleias sobre este assunto e, felizmente, assim, uma vez que discuti-los permite que a Congregação reflita sobre seu caráter e propósito na Igreja. Uma preocupação relacionada foi o significado das Regras Comuns, entendidas como um guia básico para a vida vicentina. As Constituições de 1954 (art. 219) exigiam “estima e veneração” por eles como modelo de perfeição, mas não os considerou obrigatórios, sob pena de pecado (8). As constituições posteriores adotou essa perspectiva.   O jansenismo, assunto sobre o qual Vicente se posicionou firmemente, voltou de outras formas após sua morte. Foi particularmente evidente em uma luta para promover sua canonização: os jansenistas tinham seus próprios candidato. As assembléias gerais de 1717 e 1724 tiveram que lidar com a questão relacionada daqueles confrades que apoiaram muitos bispos franceses em uma luta com a Santa Sé, conforme codificado no constituição papal Unigenitus (1713). Os bispos que apoiavam o Cardeal Noailles de Paris recusaram-se aceitar Unigenitus, na medida em que parecia pisotear as auto-descritas “liberdades galicanas”. O papa, por outro lado, insistiu em sua autoridade para forçar o partido de bispos de Noailles a aceitá-lo. A neutralidade da Congregação ajudou-a a sobreviver a esta série de conflitos, embora alguns confrades, incluindo Padre e Himbert (primeiro assistente da Congregação), foram expulsos por defender o cardeal posição neste conflito.   4. Da restauração a 1919   Neste período de mais de um século, a Congregação realizou doze assembleias gerais. A participação no início era pequena (apenas vinte), mas aumentou para sessenta em 1861 e atingiu noventa e cinco em 1919. Sua duração média, no entanto, permaneceu bastante estável em apenas onze dias. Esses totais são um importante indicador da recuperação vicentina. (Durante o mesmo período, seis assembléias foram realizadas.) Sob Napoleão, a Congregação iniciou uma lenta restauração na França. Como era impossível, tanto legal quanto logisticamente, para realizar uma assembléia até 1829, o papa nomeou uma série de vigários gerais para governar a comunidade: franceses para a França e italianos em outros lugares. Dominique Salhorgne foi o primeiro superior geral eleito neste período (o papa nomeou seu antecessor, Pierre Dewailly), mas o idoso Salhorgne renunciou depois de apenas seis anos. Em 1835, Jean-Baptiste Nozo, o candidato da ala conservadora da assembléia, o sucedeu, mas ele se aposentou em 1841. Jean-Baptiste Etienne, muitas vezes referido como o “segundo fundador” da Congregação, assumiu cargo na assembléia de 1843 e presidiu as assembléias gerais de 1849, 1861 e 1867, e nas assembléias sexenais de 1855 e 1873. Embora seu impacto tenha sido proeminente durante sua vida, os delegados nas assembléias posteriores começaram a desconsiderar sua importância, negligenciando sua convocação muitas vezes repetida para, entre outras coisas, manter estrita uniformidade e obediência a todas as regras e práticas que o próprio Etienne restaurou ou originou. Essas assembléias, portanto, eram menos importantes do que em épocas anteriores.   O mesmo não se pode dizer do longo generalato de Antoine Fiat, após os quatro anos escritório de Eugene Boré. Fiat, eleito em 1878, presidiu, como Etienne, três assembleias gerais: 1890, 1902 e 1914, quando renunciou por motivos de saúde. Ele também realizou três sexennials assembléias: 1884, 1896 e 1908. Além das eleições de seus assistentes, essas seis assembléias limitaram-se principalmente a esclarecimentos sobre pontos da norma. No entanto, eles fizeram pelo menos três decisões importantes. Primeiro, a assembléia de 1890 deu seu total apoio à fundação apostólica escolas, uma inovação na Congregação. Em segundo lugar, a assembléia de 1902 teve que lidar com o espectro do Modernismo, particularmente agudo para os vicentinos, dado o grande número de confrades ensinando seminários maiores e menores. Foi um período de grande luta, pois alguns confrades foram impedidos de ensinar, como Guillaume Pouget, ou expulsos, como Vincenzo Ermoni. Terceiro, todos os assembléias tiveram que lidar com ameaças à existência da Congregação, já que os confrades franceses foram expulsos do seminário e das escolas. Um grande número partiu para missões estrangeiras, como em China e América Latina.   Após décadas de crescimento numérico e estagnação apostólica, os delegados da Assembleia de 1919 a assembléia geral enfrentaram vários problemas importantes. Surpreendentemente, os noventa e cinco delegados lidaram com eles em apenas treze dias. Muitas das questões tratavam do recém-publicado Código de Direito Canônico: se os vicentinos são religiosos; se não, o que isso significa na prática (decretos 560-70). Outro tratou com o número e nacionalidade dos assistentes do superior geral (decreto 572).   Durante este século, muitos outros assuntos foram apresentados aos delegados: os direitos dos não-europeus províncias; filiação dos bispos vicentinos na Congregação; o estabelecimento do apostolado vicariatos como províncias vicentinas; a expulsão ou repressão civil de províncias e seu impacto na vida vicentina (como na Alemanha, México e Portugal); e votos temporários.   As questões menores eram basicamente sobre pontos de regra, como uniformidade: roupas, horários, práticas comunitárias e finanças.   5. Século XX, 1919 a 1980   A Congregação passou por muitas mudanças durante este período. Para lidar com eles, oito assembléias gerais e duas assembléias sexenais aconteceram. As mudanças mais visíveis foram a expansão, tanto da sua duração (de 12 dias em 1931 para 54 em 1980), como em número de delegados (de 112 em 1931 para 161 em 1969).   O mundo também estava mudando. Movimentos sociais (descolonização, revoluções, regimes totalitaristas) e várias guerras, especialmente a Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial, trouxeram enormes desafios para os vicentinos. Vinte e uma novas províncias ou vice-províncias surgiram, e outros cresceram em tamanho. Novas missões foram fundadas como consequência. Ao mesmo tempo, duas províncias foram suprimidas (Irã e Argélia). Novas obras surgiram ao lado das tradicionais: universidades, novos estilos de missões (missões de tenda, Forains du Bon Dieu na França; missões motorizadas nos Estados Unidos) e produções de rádio e televisão, para citar apenas algumas.   Ao mesmo tempo, a Congregação continuou o demorado estudo de sua identidade vis-à-vis o Código de Direito Canônico, conforme exigido pela Igreja. A assembléia geral de 1931, em particular, estabeleceu a base para mais adaptações, mas levaria mais duas décadas até que as Constituições aparecessem. Mesmo após sua publicação, em 1954, inúmeras questões permaneceram, e estas precisariam ser revisadas à luz do Concílio Vaticano II.   Para realizar esta revisão, a Igreja instruiu cada congregação a dar uma nova olhada nas Constituições existentes e retornar às fontes básicas da comunidade. Os delegados na Assembleia Geral de 1963 legislou algumas adaptações hesitantes em relação às mudanças litúrgicas e ao cotidiano da comunidade e suas orações (decreto #51). Após a conclusão do concílio, pelo contrário, os coirmãos passaram a ação com longos e complexos estudos e análises da vida vicentina. Estes culminaram na assembléias de 1968-1969 e 1980.   A primeira foi uma assembléia geral extraordinária de dois anos, e a segunda chegou a um acordo sobre constituições revisadas. Estes foram publicados, após mais revisões e aprovações do Vaticano, em 1984. Este novo documento resolveu muitos assuntos importantes que agitavam a Congregação desde seus primeiros dias: eleições, mandatos (9), identidade francesa ou internacional, centralização vs. descentralização, o vigário geral e as relações entre as províncias, bem como com o centro, agora se mudou para Roma. A assembléia de 1974 compôs a seção jurídica sobre governo da comunidade; com poucas modificações, passou a fazer parte das constituições de 1980.   6. História recente, 1980 a 2016   Após a aprovação das constituições pela Santa Sé, o que restava a ser feito? Esta questão surgiu durante o planejamento da assembléia de 1986 (10). Além de eleger o superior geral (na verdade, reelegendo Richard McCullen) e elegendo o vigário-geral e assistentes, os delegados decidiram analisar as respostas das províncias e dos indivíduos sobre três pontos: evangelização do pobres, comunidade para a missão e formação para a missão. Dessa discussão surgiu uma plano, as Linhas de Ação, para orientar os rumos da comunidade para os próximos seis anos (11). A assembléia também deu início a outra inovação: um documento final endereçado pela assembléia à Congregação. Anteriormente, o superior geral normalmente comunicava o trabalho de uma assembleia. Apesar desta nova procedimento, a elaboração do documento final nesta e nas próximas assembleias mostrou-se extremamente trabalhoso, contencioso e demorado. A experiência mostra, é preciso admitir, que os esforços sérios dos delegados despertaram pouco interesse, com impacto limitado nas províncias.   A assembléia de 1992 discutiu, mas não resolveu, duas outras questões: o estabelecimento de um programa de formação permanente (CIF) e novas missões internacionais. Ambos começaram logo após a conjunto.   As relações da Congregação com outros grupos, a Família Vicentina, também tomaram forma em estes anos. Isso culminou na assembléia de 1998, que dedicou uma semana inteira para aprender sobre e refletindo sobre vários grupos cuja liderança foi convidada a participar como observadores (12).   Durante este período, duas outras estruturas se desenvolveram. Uma, iniciada em 1971 pela CLAPVI, na América Latina, eram as conferências de visitantes ou províncias. Esses grupos regionais reuniram-se durante a assembléias, como em 2004, para traçar suas próprias linhas de ação ou planos (13) locais para os próximos seis anos, dentro do contexto de um plano de toda a Congregação. Uma segunda estrutura, datada de 1983, era uma encontro dos visitantes entre assembléias gerais (14). Embora sem força legislativa, essas reuniões se assemelham, em alguns aspectos, às assembléias sexenais. Seu objetivo é revisar o estado de a Congregação e começar a planejar a próxima assembléia geral.   As assembléias pós-constituição também tiveram que enfrentar o declínio de membros em muitas províncias. Esta realidade contrastava fortemente com os apelos enérgicos e esperançosos das assembleias para a renovação e renovação, como se não existisse nenhum problema nas províncias envelhecidas, numerosas saídas e poucos vocações. Um dos resultados das mudanças nos membros foi o movimento em direção à fusão ou “reconfiguração” das províncias, envolvendo em última análise a supressão das províncias e a estabelecimento de novos (15).   A assembleia de 2010 foi realizada em Paris, a primeira desde 1955. A Assembleia Geral de 2016 aconteceu em Chicago, a primeira na história da Congregação a ser realizada fora da Europa. Reunindo-se na Universidade DePaul, 114 delegados compareceram. Um foco chave da assembléia foi a solidariedade entre as províncias, incentivando a colaboração e a internacionalidade nas diferentes conferências de visitantes e globalmente. As missões internacionais e a formação interprovincial foram dois caminhos concretos em que a assembléia apoiou esta colaboração contínua. Note-se que a Assembleia A noção de colaboração naturalmente incluía a Família Vicentina em seu escopo.   7. Conclusão   A importância das assembleias gerais não deve ser minimizada. Sua mais importante responsabilidade é eleger o superior geral, o vigário geral e os assistentes. As questões (postulados) apresentadas por membros individuais e por províncias nas assembléias foram cruciais para a direção de toda a Congregação da Missão. Mesmo que apenas uma pequena percentagem dos coirmãos assistam às assembleias gerais como delegados, cada membro tem uma responsabilidade para sua agenda e procedimentos.   Chegando a hora das assembleias domésticas e provinciais, cada coirmão deve, com a sua melhor capacidade, levar a sério sua responsabilidade pessoal e comunitária de guiar toda a Congregação. Algumas perguntas, como as seguintes, podem ajudar nessa preparação:   – Estou levando a sério minha responsabilidade de ajudar a guiar a Congregação, participando ativamente nas deliberações das nossas assembleias?   – Que ajuda posso oferecer à Congregação em geral, na resolução de suas principais preocupações?   – Onde percebo que o Espírito Santo esteja guiando a Congregação da Missão, neste momento?   – Se eleito como delegado à assembleia provincial ou geral, o que posso fazer para me preparar para esta responsabilidade?   Notas   1. Codex Sarzana, John E. Rybolt, trans., ed., Vincentiana 35: 3-4 (1991): 307-406.   2. Collectio Bullarum, Constitutionum ac Decretorum quæ Congregationis Administrationem espectador. Morre em 2 de fevereiro Anno Domini 1847 [Paris], 263 páginas.   3. As Constituições de 1668 especificam ordenanças, respostas (responsa), regras de ofício, decretos, catálogos de províncias e casas juntamente com seus rendimentos, listas de membros (incluindo aqueles que deixaram ou foram dispensados), e uma necrologia.   4. O superior geral e seu conselho também poderiam propor que uma assembléia geral pudesse substituir uma assembléia sexenal; este foi o caso de 1668, 1692, 1849, 1867 e 1955.   5. Estes estão contidos na Collectio completa Decretorum Conventuum Generalium Congregationis Missionis (Paris, 1882).   6. Uma seleção de vinte dos artigos mais importantes foi feita e apresentada a Clemente X, que aprovaram o texto (com pequenas alterações) em 1670. Eles foram chamados de “Constitutiones seleciona.”   7. Para a história, ver LUIGI MEZZADRI - FRANCESA ONNIS, et al., The Vicentinos. Um general História da Congregação da Missão (Hyde Park, NY, 2013), 2: 3-36. A história de outros assembléias encontra-se em vários volumes de Os Vicentinos.   8. Assembléia Geral 32, 1955, decreto 18 (“Collectio completa Decretorum Conventuum Generalium Congregationis Missionis. Nova series post approbationem Constitutionum”, p. 6).   9. Esta assembléia solicitou a renúncia de William Slattery e especificou que, posteriormente, o superior geral teria um mandato.   10. Ver Vincentiana 30: 5-6 (1986) para os documentos. Com agradecimentos a Robert Maloney seu observações e sugestões sobre este estudo.   11. Ver Vincentiana 36: 4-5 (1992).   12. Ver Vincentiana 42: 4-5 (1998).   13. Ver Vincentiana 48: 4-5 (2004); sobre as conferências dos visitantes, ver JOSÉ MARÍA NIETO, “As Conferências dos Visitantes”, Vincentiana 46: 3 (2002): 232-239.   14. “Rencontre des visiteurs, Bogotá, 10-25 janvier 1983”, Vincentiana 27 (1983): 89-217.   15. Entre os primeiros estudos está THOMAS MCKENNA, “Reorganização das Províncias”, Vicentina 46: 3 (2002): 239-246.   *Artigo original publicado em cmglobal.org livre tradução para o português brasileiro, por Sacha Leite.      
Pe. Vinícius Augusto Ribeiro Teixeira, CM
Pe. Vinícius Augusto Ribeiro Teixeira, CM São Vicente de Paulo e a atualidade de sua herança espiritual Se quisermos traduzir em linguagem atual os traços mais marcantes do perfil de São Vicente de Paulo poderíamos recorrer a três elementos que definem sua personalidade: seu coração inquieto, sua paixão por Jesus Cristo e sua dedicação aos pobres. Vicente de Paulo viveu na virada dos séculos XVI e XVII, em uma época de instabilidades e transformações tanto na sociedade quanto na Igreja, um tempo de conflitos políticos e religiosos, de crescimento da miséria e de intentos reformistas. Desde cedo, revelou-se um jovem irrequieto, desejoso de descobrir o sentido mais profundo de sua existência e dos acontecimentos da história. Deixou seu núcleo familiar para estudar e, assim, demarcar seu espaço e construir seu futuro. Decidiu-se pela promissora carreira sacerdotal. Com o correr do tempo, enfrentando desenganos e desventuras, deu-se conta de que o sacerdócio não podia reduzir-se a um mesquinho meio de vida. Por trás de sua escolha, havia um chamado, uma iniciativa que não era sua, um apelo que o interpelava desde o mais íntimo, convidando-o a mudar de perspectiva e a assumir sua vocação como uma generosa entrega de vida. Continuou buscando o caminho pelo qual poderia responder a esse chamado. Deixando-se orientar por homens de elevada estatura espiritual e sólida fibra moral, começa a descobrir que não poderia viver com sentido, esperança e tenacidade a não ser centrando toda sua existência em Jesus Cristo, encontrando na humanidade do Filho de Deus o referencial seguro e a inspiração permanente de sua própria humanidade. Intui, então, que isso equivalia a não ceder à tentação de viver para si, dando voltas ao redor de seus interesses e conveniências.   Cativado por Cristo, Vicente se redescobre profundamente amado por Deus, cuja vontade procurará conhecer e realizar em seu dia a dia, em uma atitude de confiança e disponibilidade. Seu percurso existencial comprova o que afirmou o Papa Francisco: “Quando estamos diante de opções e contradições, perguntar-nos qual é a vontade de Deus ajuda a abrir-nos a possibilidades inesperadas” (Soñemos juntos, p. 22). E assim é. Ao mesmo tempo, o ainda jovem Padre Vicente desperta para o sofrimento e o abandono dos mais pobres, cuja dignidade não medirá esforços para defender e promover, saindo ao passo das mais variadas e gritantes indigências de seu tempo, movido por aquela caridade compassiva e ativa que contemplava em sua meditação da vida e da missão de Jesus Cristo, enviado pelo Pai para evangelizar os pobres (cf. Lc 4,18). Com efeito, essa é a faceta do mistério da encarnação do Filho de Deus que passará a ser o âmago do itinerário de Vicente de Paulo.   É interessante notar como, na trajetória de São Vicente, os três elementos acima mencionados se fundem no dinamismo de uma mesma experiência espiritual: sua busca inquieta o leva a amadurecer como homem, a firmar-se como seguidor convicto e apaixonado de Jesus Cristo e a dedicar-se com generosidade e criatividade crescentes aos menores dos irmãos (cf. Mt 25,40). E tudo isso, em processo constante de aprimoramento humano, espiritual e missionário, sem jamais separar essas três dimensões. No ocaso de sua fecunda existência, poderá dizer a seus Padres e Irmãos: “Em que consiste nossa perfeição? Em fazer bem todas as ações: 1º como homens dotados de razão, em conviver bem com o próximo e lhe garantir a justiça; 2º como cristãos, em praticar as virtudes de que Nosso Senhor nos deu exemplo; 3º como missionários, em realizar bem as obras que ele fez, e no mesmo espírito, enquanto nos permitir nossa fraqueza, bem conhecida por Deus” (SV XII, 77-78).   Nas palavras de Vicente de Paulo, vemos, portanto, o espelho de sua vida, do homem íntegro e bom, do cristão identificado com seu Mestre e Senhor, do missionário consistente, ardoroso e entusiasta que ele foi. Acrisolado por suas vivências, deixando-se alcançar por Jesus Cristo, Vicente se une ao Deus que o escolheu para sinalizar a força invencível de sua predileção pelos pobres, abrasado por um amor que se manifesta mais em obras do que em palavras, avançando sempre mais na direção da meta (cf. Fl 3,12-14). Certa vez, recordou a um amigo: “No caminho de Deus, não avançar é retroceder, já que o homem não pode permanecer sempre no mesmo estado e os que foram chamados devem prosseguir de virtude em virtude” (SV II, 129). Seu processo de conversão contínua o demonstrar com maestria. Assim, São Vicente se nos afigura como um protótipo do que o ser humano pode chegar a ser quando, seguindo sua vocação, mergulha no mistério de Deus, sem jamais fechar os olhos para a realidade que o circunda.   O itinerário percorrido por Vicente de Paulo recorda-nos aquilo que o Papa Francisco escreveu especialmente aos jovens: “É possível passar a própria juventude distraído, flutuando à superfície da vida, dormindo, incapaz de cultivar relações profundas e entrar no coração da vida; deste modo, porém, prepara-se um futuro pobre, sem substância. Ou, pelo contrário, pode-se gastar a juventude cultivando coisas nobres e grandes e, assim, preparar um futuro cheio de vida e riqueza interior” (Christus vivit, n. 19).   De fato, quanto mais profundos somos na assimilação dos ideais, valores e atitudes que enobrecem nosso viver, quanto mais buscamos o que é verdadeiro, bom e belo, mais nos humanizamos, mais qualificamos nossas intenções, relações e ações. E, quanto mais nos enraizamos na fé, quanto mais centramos nossa existência em Jesus Cristo, vivendo para Deus e para os outros, mais nos sentimos impulsionados a encarnar o amor em toda sua riqueza e extensão, produzindo frutos abundantes na prática da compaixão e do cuidado, na atenção aos que mais sofrem e necessitam de proximidade e de ajuda, na construção de um mundo mais fraterno e solidário, anunciando o Evangelho com a vida e contrapondo-nos a tudo o que lhe é contrário. O momento atual – de crise e corrupção, de pandemia e indiferença, de solidão e desolação, de dor e morte, de negação das evidências e banalização do inaceitável, de necropolítica e desmonte da democracia, de recrudescimento da pobreza e depredação da Casa Comum – constitui-se numa hora propícia para pôr em marcha o que significa ser humano, ser cristão e ser missionário à luz do exemplo de São Vicente de Paulo.   Não há a menor dúvida de que São Vicente de Paulo foi um homem de intensa e extensa atividade. Suas ações, empreendidas com discernimento e determinação, tiveram um largo alcance eclesial e social naquele contexto convulsivo da França do século XVII. Não houve drama, sofrimento ou carência que não tenha reverberado em seu coração iluminado pela fé e abrasado pela caridade. É certo, ademais, que o santo da caridade e da missão não realizou nada sozinho. Não se vê em sua conduta nenhuma sombra de autoprojeção egocêntrica ou de heroísmo narcísico. Não era partidário do “complexo adamita” (de Adão), aquele de quem pensa que tudo começa em si. Importava-lhe tão somente evangelizar e servir, no fiel seguimento de Jesus Cristo, tendo diante dos olhos as indigências e padecimentos humanos que se lhe apareciam cada vez mais contundentes. Para sair ao encontro dessas realidades, convoca outras pessoas atraídas pelo mesmo ideal. A partir de 1617, constitui as Confrarias da Caridade, reunindo mulheres e homens. Oito anos depois, em 1625, concebe a Congregação da Missão, formada por Padres e Irmãos. Mais tarde, no ano de 1633, juntamente com a grande mulher que foi Santa Luisa de Marillac, funda a Companhia das Filhas da Caridade. O traço de união entre suas fundações era precisamente uma experiência de fé que se desdobrava no zelo evangelizador e na gratuidade do serviço aos mais necessitados, sofridos e esquecidos.   Em estreita colaboração com aqueles que o Senhor acrescentava às fileiras da Caridade e da Missão, Vicente de Paulo colocou em marcha inúmeras iniciativas e compromissos, dos quais citamos apenas alguns: as missões nos povoados rurais, o cuidado dos enfermos nos hospitais e em seus domicílios, a atenção aos refugiados e às vítimas das guerras, o socorro às regiões depauperadas, a presença junto aos presos, o amparo às crianças abandonadas, a fundação de pequenas escolas, etc. Em todas as ações a favor dos menos favorecidos, Padre Vicente e seus companheiros procuravam atender ao ser humano em sua totalidade, com o intuito de sanar suas carências corporais e espirituais. Assim, alicerçados na fé que opera pela caridade (cf. Gal 5,6), visibilizavam em seus gestos a mensagem de vida e salvação que transmitiam ao anunciar o amor de Deus, a fim de “tornar efetivo o Evangelho” (SV XII, 84).   Além disso, com a ajuda de seus Coirmãos, Vicente se ocupou denodadamente da formação do clero, contribuindo para dotar a Igreja de pastores santos, sábios e solícitos. O raio de sua atuação se expandiu quando de sua nomeação para o Conselho de Consciência da rainha, a partir do qual lhe foi dado intervir de muitas formas para socorrer os empobrecidos, pacificar conflitos sociais e revitalizar a Igreja em seu empenho reformador. Como se não bastasse todas essas atividades de ampla incidência, trabalhou tenazmente para consolidar suas Comunidades, orientando seus membros, dando-lhes conferências e escrevendo-lhes regras e regulamentos de notável solidez e relevância prática. Ao longo de sua existência, as Confrarias se multiplicaram rapidamente por todo o território da França, a Congregação da Missão se estabeleceu em vários países (4 europeus e 3 africanos) e as Filhas da Caridade abriram numerosas casas no território francês, chegando depois à Polônia. Vicente de Paulo também acompanhou de perto o florescimento de outras Comunidades e Associações, além de ocupar-se da direção espiritual de muitas pessoas e de manter uma vasta correspondência com distintos personagens. Em tudo o que fazia, importava-lhe, acima de tudo, “correr ao encontro das necessidades do próximo como se fosse apagar um incêndio” (SV XII, 31).   Seria impossível descrever em poucas páginas todas as realizações de São Vicente e contabilizar suas atividades e empreendimentos nos campos da evangelização, do serviço caritativo, da promoção humana, da transformação social, da reforma institucional da Igreja, da formação do clero, do protagonismo dos leigos, da valorização da mulher, etc. Por tudo isso e muito mais, não é difícil constatar que poucos santos foram tão ativos e produtivos, fecundos e laboriosos como Vicente de Paulo. E, até hoje, mais de 400 anos depois, suas obras continuam beneficiando a uma multidão de pessoas e congregando um incalculável número de membros e cooperadores.   A semente germinou e cresceu, sem que São Vicente pudesse calcular e prever a abundância de seus frutos; e tornou-se uma árvore frondosa, capaz de oferecer alívio e frescor a quantos se abrigam à sua sombra (cf. Mc 4,30-32). Desse modo, sua vida se converteu em uma nova parábola do Reino narrada para os pequenos e pobres, para os sedentos de Deus e famintos de pão. Com razão e entusiasmo, poderá resumir assim a vocação que partilha com seus Missionários: “Um grande motivo que temos para ser fieis é a grandeza de nossa missão: fazer Deus conhecido aos pobres, anunciar-lhes Jesus Cristo, dizer-lhes que o Reino está próximo e que ele é para os pobres. Oh! Como isso é sublime!” (SV XII, 80).   Neste ponto, como em tantos outros, o Papa Francisco (um homem de coração vicentino!) tem nos ajudado a voltar ao eixo do Evangelho, particularmente agora, tendo diante dos olhos as nefastas consequências da crise que se abateu sobre o mundo e, ainda mais fortemente, sobre os que não dispõem do mínimo requerido por uma vida digna e feliz. Em seu livro Vamos sonhar juntos, o Pontífice sublinha:“Quando a Igreja fala da opção preferencial pelos pobres, quer dizer que sempre é preciso ter em conta o impacto das decisões que tomamos sobre os pobres. Mas também significa que devemos pôr o pobre no centro de nosso modo de pensar. Por meio desta opção preferencial, o Senhor nos presenteia uma nova perspectiva de juízo e de valor sobre os acontecimentos” (p. 55). E, dando um passo a mais, convoca-nos à cultura da solidariedade, que, recebendo da fé seu mais forte incentivo, se assenta sobre o reconhecimento da dignidade humana e não se restringe a medidas emergenciais: “A solidariedade não é partilhar as migalhas da mesa, mas sim garantir lugar para todos (...). O problema não está em dar de comer ao pobre, vestir o nu, acompanhar o doente, mas sim em considerar que o pobre, o nu, o doente, o preso, o desterrado têm dignidade para sentar-se às nossas mesas, sentir-se em casa entre nós, sentir-se família” (p. 115). E conclui: “Quando se põe a dignidade das pessoas no centro, cria-se uma nova lógica de misericórdia e cuidado” (p. 122). Na mesma linha, situa-se a obra caritativa e missionária de São Vicente de Paulo.   Esta pergunta é decisiva para compreender adequadamente a pessoa de São Vicente de Paulo. Eram tão impressionantes seu vigor caritativo e sua entrega missionária que, facilmente, podemos esquecer-nos da fonte secreta que irrigava suas ações. Além disso, a forte influência exercida por ele nas mais distintas esferas da sociedade e da Igreja de seu tempo poderia levar a confundi-lo com um filantropo ou a reduzi-lo à condição de um ativista. Sem desmerecer em nada a relevância social de seu empenho e o alcance de sua colossal atividade apostólica, precisamos reconhecer e afirmar que Vicente de Paulo era, antes de qualquer outra coisa, um místico, isto é, alguém cuja existência se mantinha enraizada no mistério do amor do Pai, amor revelado em Jesus Cristo e atualizado pelo Espírito Santo. Era dessa fonte transbordante e cristalina que o santo da caridade missionária colhia a seiva capaz de nutrir e dinamizar suas ações. Sua íntima comunhão com Cristo constituía o alento criativo de tudo o que realizava, o critério e a inspiração de suas decisões e opções, o diadema que cingia suas obras, sua razão de ser e de atuar enfim. Seria radicalmente impossível compreender a vida e a missão de São Vicente sem referência à pessoa de Jesus, cujo espírito modulava seu coração e modelava sua conduta. E o mesmo se pode dizer em relação às suas fundações.   De fato, este é o cantus firmus que ressoa com total afinação em suas cartas e conferências: Cristo deve estar no centro de nossa vida para descentrar-nos de nós mesmos, para fazer-nos verdadeiramente livres, ensinando-nos a viver em total docilidade para com o Pai, confiando em sua Providência e seguindo-a passo a passo, bem como em uma disponibilidade convicta e alegre para amar e servir os irmãos, com particular atenção aos mais pobres. Não era, pois, sem motivo que Vicente de Paulo insistia que seus Missionários não poderiam corresponder às exigências de sua vocação e aos apelos da missão e da caridade se não estivessem revestidos do espírito de Jesus Cristo, isto é, profundamente imbuídos dos sentimentos e disposições do Filho de Deus, visceral e progressivamente identificados com ele. Vale a pena dar-lhe a palavra aqui:   “Para tender à própria perfeição, é necessário revestir-se do espírito de Jesus Cristo. Eis uma grande tarefa: revestir-se do espírito de Jesus Cristo! Isso quer dizer que, para aperfeiçoar-nos, para assistir utilmente os povos e para bem servir os eclesiásticos, é preciso que nos empenhemos em imitar a perfeição de Jesus Cristo e procurar alcançá-la. Isso mostra, outrossim, que, em tal matéria, nada podemos por nós mesmos. É preciso que nos enchamos e nos animemos desse espírito de Jesus Cristo (...). A Companhia sempre teve um profundo amor pelas máximas cristãs e desejou revestir-se do espírito do Evangelho, a fim de viver e agir como viveu Nosso Senhor e fazer que seu espírito transpareça em toda a Companhia, em cada Missionário e em todas as suas obras” (SV XII, 107-108). Os meios privilegiados para manter essa fina sintonia com o espírito de Cristo passam pela meditação diária do Evangelho, pela frutuosa celebração da Eucaristia, pelo encontro com os pobres, sem que nenhuma dessas mediações possa suplantar a outra.   São Vicente estava convencido de que a vocação apostólica possui uma dimensão eminentemente contemplativa. Escrevera, a propósito, a um de seus Padres: “A vida apostólica não exclui a contemplação, mas a abraça e dela se prevalece para melhor conhecer as verdades eternas que deve anunciar” (SV III, 347). Se é verdade que, sem ação, a contemplação pode evaporar-se em abstração etérea e fuga ilusória, não é menos verdade que, sem contemplação, a ação corre o risco de resvalar para um ativismo compulsivo, um moralismo sem alma, uma falsa roupagem ideológica ou coisas do gênero. Já Santo Tomás de Aquino tinha afirmado que não há nada que mais contribua para a perfeição cristã do que “a junção da contemplação e da ação em uma mesma pessoa”.   Para estimular essa junção benfazeja em suas Comunidades, o incansável Vicente de Paulo não hesitava em sublinhar a importância e a necessidade de cultivar a vida interior por meio da oração. De fato, chamam a atenção não só a frequência como também a força e a familiaridade com que o santo fundador fala aos seus do espírito e da prática da oração, demonstrando tratar-se, antes de tudo, de uma convicção pessoal e de uma vivência constante. Neste ponto, Vicente coincide com os místicos e mestres espirituais que o inspiraram, tais como São Francisco de Sales, Santa Teresa de Jesus, Santo Inácio de Loyola, Pierre de Bérulle, etc.   Dentre suas numerosas alusões ao tema, podemos fixar-nos nesta que se acha em uma conferência aos Padres e Irmãos da Missão. Sua consciência sobre o valor da oração é tão incisiva quanto sua determinação em propô-la: “Demo-nos todos a esta prática da oração, pois é por ela que nos vêm todos os bens. Se perseveramos em nossa vocação, é graças à oração; se vamos bem em nossos trabalhos, é graças à oração; se não caímos no pecado, é graças à oração; se permanecemos na caridade, se nos salvamos, tudo isso é graças a Deus e à oração” (SV XI, 407). Ou ainda esta definição compartilhada com as Filhas da Caridade: “A oração é tão excelente que nunca se reza demais e, quanto mais rezamos, mais queremos rezar, quando na oração buscamos sinceramente a Deus” (SV IX, 417). Seguramente, São Vicente coincidiria com o que disse recentemente o Papa Francisco, ao ordenar novos presbíteros: “Um sacerdote que não reza apaga lentamente o fogo interior do Espírito” (25 de abril de 2021).   Demos um passo adiante... Graças à impostação mística de sua ação, São Vicente frisava que o serviço da caridade e o anúncio do Evangelho deveriam ser emoldurados e enriquecidos pela prática das virtudes, virtudes que reluziam na conduta de Jesus Cristo, especialmente aquelas que mais se ajustam ao específico de um carisma apostólico como o que Vicente recebeu do Espírito e comunicou aos seus. No terreno fértil dessas virtudes, descansa a ética que se desprende da mística vicentina, já que é próprio de toda experiência de Deus estabelecer uma maneira de ser e de atuar que lhe corresponda. Quais são, pois, estas virtudes que humanizam os membros da Família Vicentina e os capacitam para a missão? A simplicidade, que se traduz em uma vida íntegra e em um procedimento transparente, rejeitando toda forma de dissimulação e falsidade; a humildade, que nos ensina a reconhecer nossos limites, a esperar em Deus e a contar com os outros, renunciando à autossuficiência e à soberba; a mansidão, que nos torna constantes no bem, cordiais no trato e serenos em meio às adversidades, afastando-nos da arrogância e da aspereza; a mortificação, que nos modela para a fortaleza interior, a firmeza de caráter e a persistência nos propósitos assumidos, contrapondo-se à indolência e à tibieza; e, por fim, o zelo, que nos dispõe para uma fidelidade criativa, uma entrega abnegada e um compromisso entusiasta, na direção contrária da mediocridade e da apatia.   São Vicente falava dessas cinco virtudes com particular ênfase, considerando-as como dom de Deus e responsabilidade nossa: “Ó Senhor, como isso é belo e como vos será agradável a Missão se seu espírito é de simplicidade, humildade, mansidão, mortificação e zelo! Procuremos, cada um de nós, encerrar-nos nessas cinco virtudes, como os caracóis em suas conchas, e façamos que nossas ações respirem tais virtudes. Aquele que proceder desse modo será um verdadeiro missionário” (SV XI, 310).   Este é, pois, o principal legado de São Vicente de Paulo para a Igreja e a humanidade. Não tanto o muito que ele fez, mas a maneira como o fez, o sentido de fé que o impregnava, a retidão de intenção que o movia, o amor que depositava em tudo o que lhe competia realizar por Deus e pelos irmãos, em última análise, o espírito de Jesus Cristo que o iluminava e impelia a entregar-se sem restrições, a fazer-se tudo para todos (cf. 1Cor 9,22) e a realizar bem, da melhor forma possível, o bem para o qual tinha sido chamado, porque, afinal, “não basta fazer o bem; é preciso, além disso, fazer tudo bem, no espírito de Nosso Senhor, do modo como Nosso Senhor o fez na terra, puramente para a glória de Deus” (SV XI, 468).   Só um místico, um homem verdadeiramente espiritual, um contemplativo na oração e na ação, poderia intuir tão profundamente essa verdade e vivê-la com liberdade e coerência até o fim de seus dias, ensinando-nos que “Deus pede primeiro o coração e depois as obras” (SV X, 131). Ou ainda, reproduzindo uma lição colhida da Imitação de Cristo (T. de Kempis), insistirá Vicente, segundo o registro de seu primeiro biógrafo: “Deus não se fixa tanto no exterior de nossas ações quanto no grau de amor y na pureza de intenção com que as realizamos” (Abelly III, 30-31). No mais, como lembra o poeta argentino, “lo que el árbol tiene de florido vive de lo que tiene sepultado” (F. L. Bernárdez). Sem a seiva da vida interior, não há compromisso que resista, não há caridade que possa florescer, não há missão que produza os frutos esperados. “Precisamos de vida interior, precisamos tender para ela. Se faltarmos a isso, faltaremos a tudo” (SV XII, 131).   Com efeito, se queremos contribuir para lançar as bases de um mundo justo, fraterno, pacífico e solidário, capaz de triunfar sobre a pandemia do egoísmo e da indiferença, respeitoso da dignidade humana, do bem comum e da criação, segundo o projeto de Deus, não podemos eximir-nos de uma verdadeira mística, de uma interioridade mais profunda, de uma vida espiritual intensa, de uma prática regular da oração, que nos possibilitem “descentrar-nos e transcender-nos, vencendo a tentação de viver girando ao redor de nós mesmos”, como acentua o Papa (Vamos sonhar juntos, p. 141). Sem a profundidade espiritual que aquilata nossa humanidade, nada disso será possível!   Há, evidentemente, muitas formas de entender o estilo de vida cristão que se enraíza na experiência espiritual de São Vicente de Paulo e que, por isso mesmo, denominamos espiritualidade vicentina. O núcleo em torno do qual se definem suas características essenciais não é outro senão o seguimento de Jesus Cristo, evangelizador dos pobres, com tudo o que isso abrange e requer em termos de contemplação e ação, inspiração mística e empenho ético, paixão por Deus e compaixão pelos pobres. Afinal de contas, “que amor podemos ter por Nosso Senhor se não amamos o que ele amou?” (SV XIII, 811), indagava São Vicente, dirigindo-se às suas colaboradoras leigas das Confrarias da Caridade.   No sentir de nosso fundador, sem referencia a Cristo, sem uma permanente relação com ele, sem a disposição contínua e renovada de amar aqueles a quem ele amou, não pode haver caridade e missão que sejam dignas destes nomes. E o coração de Jesus transbordava de amor ao Pai, de quem tudo recebia e cuja vontade era o alimento de sua vida e o espelho de suas ações (cf. Jo 4,34; 5,19), e aos pobres, os mais desamparados social e religiosamente, aos quais se reconhecia enviado e aos quais consolou, revigorou e promoveu com gestos, palavras e ações de incomparável misericórdia (cf. Mt 9,35s; At 10,38).   Foi assim, repleto de amor ao Pai e aos pobres, que Jesus de Nazaré encarregou seus discípulos de continuar sua obra salvadora (cf. Lc 10,1s; Mc 16,15). A espiritualidade vicentina nos implica diretamente na missão do Filho de Deus: “Sim, Nosso Senhor pede que evangelizemos os pobres. Foi o que ele fez e deseja continuar a fazer por meio de nós” (SV XII, 79), arremata Vicente, falando, desta vez, aos Missionários. A partir desse núcleo irrenunciável que é a pessoa mesma de Jesus Cristo – encontrado no Evangelho, na Eucaristia e nos pobres – vão se delineando os elementos constitutivos da identidade vicentina: a confiança na Providência, a busca e a realização da vontade de Deus, a integração entre evangelização e serviço, a vida fraterna em comunidade, as cinco virtudes que nos identificam, a vivência dos conselhos evangélicos, etc.   Assentadas as bases da espiritualidade recebida de São Vicente de Paulo, podemos falar, então, de sua relevância para os nossos dias. Esta também pode ser enfocada de várias formas, desde que se mantenha o vínculo com seu núcleo identitário, tal como afirmamos acima. Geralmente, quando se fala em espiritualidade vicentina, ressalta-se seu aspecto mais operativo, sua dimensão ativa ou prática, seu impulso para a ação. E não resta a menor dúvida de que esse aspecto é legítimo. Contudo, não é lícito isolá-lo de sua fonte, de seu manancial místico, de sua dimensão contemplativa, de seu referencial fundante. Quem o faz, parece desconsiderar o teor da experiência que São Vicente nos transmitiu, terminando por abastardar a herança que ele nos legou. Uma visão meramente funcional e voluntarista da espiritualidade vicentina equivoca-se por reducionismo, atrofia suas potencialidades e não lhe permite irradiar toda inspiração de que é portadora, como se fosse uma espiritualidade de pura imanência.   Neste caso, o máximo que poderíamos descobrir na espiritualidade vicentina seria um ideal motivador para a práxis, mas não propriamente seu substrato evangélico mais profundo, o que ela possui de mais essencial e estimulante: um caminho de configuração com Cristo, enviado pelo Pai para evangelizar os pobres; um apelo a uma autêntica experiência de Deus; uma resposta às inquietações mais profundas do coração humano; uma estrada de santidade e uma escola de caridade; um sopro místico capaz de sedimentar as virtudes e os valores que enobrecem e qualificam nosso viver, conviver e atuar; um horizonte de sentido que encoraja a travessia da existência à luz da fé; enfim, uma esperança que se espraia para além da história e nos abre ao futuro promissor da eternidade.   Em um tempo como o nosso – marcado por tantas rupturas e conflitos, fraturado por polarizações políticas, extremismos ideológicos e fundamentalismos religiosos – a relevância da espiritualidade vicentina se revela em seu equilíbrio dinâmico, em seu potencial humanizador, em sua capacidade de integrar realidades que poderiam parecer distantes ou até antagônicas, tais como: verdade e bondade, contemplação e ação, firmeza e suavidade, coerência e flexibilidade, audácia e prudência, silêncio e palavra, confiança e prontidão, discernimento e decisão, anúncio do Evangelho e cuidado da vida, espírito de fé e consciência crítica, profundidade e praticidade, realismo e esperança, humildade e magnanimidade, seriedade e bom humor, etc. Binômios que assinalam traços marcantes do perfil humano de Vicente de Paulo, que se traduziam em seu modo equilibrado de viver e atuar e que ecoavam com frequência em seus conselhos e recomendações.   Com efeito, a mais clássica filosofia legou-nos a iniludível sentença, atribuída a Aristóteles e, séculos mais tarde, habilmente tematizada por Santo Tomás: “Virtus in medio est”. São Vicente se apropriou dessa verdade, mencionando-a em diferentes ocasiões. Em uma delas, refletiu com sua Comunidade: “Meus irmãos, as virtudes consistem sempre em um justo equilíbrio. Cada uma delas tem dois extremos viciosos. De qualquer lado que nos afastemos, corremos o risco de cair no vício contrário. É preciso andar retamente entre esses dois extremos, a fim de que nossas ações sejam louváveis (...). A virtude está no meio, os extremos nada valem” (SV XI, 220). Apoiados no exemplo e na palavra de Vicente de Paulo, aprendemos que uma pessoa equilibrada é aquela que não se permite tender aos extremos, embora sabendo posicionar-se com convicção e clareza em face dos acontecimentos; é aquela que evita os excessos, sem, contudo, instalar-se na mediocridade. Trata-se, pois, da pessoa que procura discernir com sabedoria para decidir com coragem e viver com coerência, sobretudo em meio às circunstâncias mais dramáticas e adversas. A sociedade contemporânea – incluídas também as religiões – padece de extremismos e dilaceramentos, cujos impactos afetam enormemente a saúde integral das pessoas, as relações humanas, o compromisso ético e a preservação da Casa Comum. Também a ação evangelizadora e a comunhão eclesial se vêm fortemente afetadas, às vezes seriamente prejudicadas. Levanta-se, pois, o desafio de encontrar o prumo do equilíbrio, do discernimento, da sensatez, do bom senso, da serenidade, da clarividência, do sentido de oportunidade, do respeito, do diálogo, de tal maneira que saibamos reverter as crises em oportunidades.   Os apelos que Deus nos dirige através dos fatos da história não nos podem encontrar distraídos ou sobressaltados, sob o risco de nos atrasarmos por inércia ou de nos precipitarmos por agitação nas respostas que nos competem. A vida, a atuação e a palavra de São Vicente dão testemunho disso: “Tenho uma devoção especial de seguir passo a passo a adorável Providência” (SV XII, 208). Sua “mística de olhos abertos” levava-o a estar atento aos acontecimentos, às ocorrências do cotidiano, interpretando-os à luz da fé para deixar-se surpreender por Deus e captar suas solicitações: “A vontade de Deus não pode ser melhor conhecida, senão através dos acontecimentos que chegam para nós, sem que os tenhamos pedido” (SV V, 453). Vicente de Paulo nos convida a seguir passo a passo as indicações da Providência e a colaborar com ela, sem excessos de lentidão ou de pressa, tratando de conciliar a sabedoria do discernimento, a coragem da decisão que ele suscita e a coerência de vida que ele inspira, de tal modo que nossas ações correspondam ao que Deus quer.   Diversos ensinamentos de São Vicente explicitam o equilíbrio que caracteriza a espiritualidade com que ele enriqueceu a Igreja. Valha-nos aqui a conhecida relação que estabelece entre o amor afetivo e o amor efeito, ou seja, o amor unitivo ao Senhor e o amor oblativo ao próximo necessitado, o que, não realidade, não passa de um mesmo e único amor aprendido de Jesus Cristo (cf. Mc 12,29-31; Jo 10,17).   Dirá o fundador às Filhas da Caridade: “Um coração que ama Nosso Senhor não pode suportar sua ausência e deve se unir a ele pelo amor afetivo, o qual, por sua vez, produz o amor efetivo. Porque o primeiro não basta, minhas Irmãs. É necessário ter os dois. É necessário passar do amor afetivo ao amor efetivo, que é o exercício das obras de caridade, o serviço dos pobres empreendido com alegria, coragem, constância e amor (SV IX, 593). Ou ainda o esforço de Vicente de enlaçar o recolhimento orante e a dedicação apostólica, ao afirmar que a vida de um Missionário deveria ser como “a de um Cartuxo em casa e a de um apóstolo no campo, e que, segundo vá se esforçando com mais interesse em sua perfeição interior, também suas tarefas e trabalhos serão mais frutuosos para o bem espiritual dos outros” (Abelly I, 16).   Na mesma esteira, situa-se sua convicção no que tange à integração entre contemplação e ação, sendo que a primeira deve preceder a segunda como a seiva que a robustece: “A Igreja é comparada a uma grande messe que requer operários que trabalhem. Nada há mais conforme o Evangelho do que acumular luzes e forças para a própria alma, na oração, leitura e solidão, e ir em seguida repartir com os homens este alimento espiritual. É fazer o que fez Nosso Senhor e os apóstolos depois dele, é juntar o oficio de Marta ao de Maria, é imitar a pomba que digere a metade do alimento que tomou e coloca o resto, com o próprio bico, no bico dos filhotes, para alimentá-los. Eis como devemos fazer, eis como devemos testemunhar a Deus, por nossas obras, que o amamos” (SV XI, 41). A insistência do fundador soa como uma paráfrase do Evangelho que situa o seguimento de Jesus entre a montanha da intimidade com o Pai e a planície do contato com as feridas e anseios humanos (cf. Lc 6,12-19). Seja-nos dado ainda recordar a recomendação de Vicente de Paulo sobre a relação entre a lucidez resoluta requerida pelos princípios e finalidades e a flexibilidade criteriosa sugerida por suas mediações e aplicações. Tudo isso sem recalcitrar no esforço de adequar os meios aos fins, posto que estes nem sempre podem justificar aqueles. Palavras semelhantes são recorrentes nas cartas e alocuções do santo e revelam a sensatez de seu espírito, sobretudo quando se tratava de orientar os que iam exercer ofícios de governo dentro de suas Comunidades: “É preciso ser firmes e invariáveis quanto ao fim, flexíveis e suaves quanto aos meios, já que uma coisa sem a outra estraga tudo” (SV II, 355).   Os exemplos poderiam prosseguir. O que fica, porém, é a certeza de que, no contexto atual, com seus rigorismos e permissividades, uma espiritualidade vicentina bem sedimentada estimula as sínteses vitais de que tanto precisamos para manter ou recuperar o equilíbrio humano, espiritual, relacional, apostólico, eclesial e social. Isso implica não se enclausurar em unilateralismos irremediáveis, que impõem viseiras ideológicas e esgrimem polêmicas beligerantes, nem se extraviar por espiritualismos de fuga ou por praxismos de mera conveniência.   Os tempos atuais solicitam uma espiritualidade integradora, de unidade dialética, capaz de harmonizar contemplação e compaixão, transcendência e solidariedade, libertação histórica e salvação eterna, tendo Jesus Cristo como pedra angular. Por fim, o discernimento que precede e acompanha uma espiritualidade vicentina do equilíbrio se traduz em uma vigilância paciente e ativa, que sabe identificar, à luz da fé, a oportunidade que cada momento oferece e a postura que cada situação recomenda. No mais, como diz acertadamente o Papa Francisco, “discernir em tempos de conflito requer às vezes que acampemos juntos até que amanheça” (Vamos sonhar juntos, p. 97).   A Família Vicentina pode ser comparada a uma árvore frondosa e cheia de viço, carregada de frutos e ornada de flores. Suas raízes, extensas e firmes, remetem à experiência espiritual de São Vicente, cujo carisma missionário se conserva fecundo e inspirador até os nossos dias, perpetuando o luminoso testemunho do grande místico da caridade, “arauto da ternura e da misericórdia de Deus”, como o chamou São João Paulo II. A seiva que nutre e revigora essa imensa família espiritual e apostólica provém do encontro com Jesus Cristo, evangelizador dos pobres (cf. Lc 4,18), a quem seus membros procuram seguir, amando-o e servindo-o nos menores de seus irmãos, nos quais reconhecem a presença do Senhor a interpelá-los (cf. Mt 25,40).   À sombra dessa planta de copa robusta e folhas verdejantes, abriga-se um contingente incalculável de pessoas empobrecidas, acolhidas com desvelo, evangelizadas com ardor, assistidas com diligência, promovidas com respeito. Os ramos do arvoredo vicentino são distintos quanto à coloração e ao formato de suas folhas: grupos mais ou menos numerosos, dentre os quais contamos Associações Leigas, Sociedades de Vida Apostólica, Institutos de Vida Consagrada e até Comunidades pertencentes a outras denominações cristãs. Dispersos pelos cinco continentes, fundados em distintas épocas e contextos, reúnem mais de 4 milhões de mulheres e homens de todas as idades, leigos e leigas, consagrados e consagradas, diáconos, padres e bispos, todos sob o mesmo impulso dinamizador recebido do Espírito através de Vicente de Paulo. O carisma vicentino revela sua pujança nas diferentes iniciativas de evangelização e serviço aos pobres desenvolvidas nos mais de 150 países onde a Família se faz presente.   Enxertados, pois, no mesmo caule carismático, os mais de 260 ramos que constituem a Família Vicentina coincidem na referência a São Vicente, identificado como fundador, inspirador ou patrono desta sua secular linhagem. Não foi à toa que o Papa Francisco quis inclui-lo entre “os grandes santos que fizeram a história do cristianismo”, vendo-o, também a ele, como um “sinal concreto”, sem o qual “a caridade que anima a Igreja inteira correria o risco de esfriar-se, o paradoxo salvífico do Evangelho de atenuar-se, o sal da fé de diluir-se num mundo em fase de secularização” [Carta às pessoas consagradas (2014), cap. III, n. 2).   Nesta “grande rede de caridade”, tecida de muitos fios, o carisma vicentino revela sua perene atualidade e seu extraordinário potencial para responder a apelos imprevistos e a novos desafios. E o faz com grande vitalidade profética, a partir de uma aproximação concreta ao mundo dos pobres, promovendo ações transformadoras fundadas no Evangelho, inserindo-se na missão da Igreja e atuando em organismos internacionais, como, por exemplo, em diferentes instâncias da Organização das Nações Unidas (ONU), onde os representantes da Família Vicentina procuram fazer ecoar o clamor daqueles que se encontram nas periferias do mundo.   Por tudo o que sua missão requer, a Família Vicentina se mostra sempre mais convicta da necessidade de uma sólida formação, que lhe assegure uma espiritualidade consistente, sedimentada na Palavra de Deus e na herança de seu grande inspirador, e um compromisso caritativo-missionário sempre mais qualificado e perseverante. O cultivo da espiritualidade e o empenho apostólico encontram seu terreno fértil no cotidiano da vida, na comunidade de fé, no contato direto com os pobres, na doação escondida de cada dia, na reunião do pequeno grupo, ali onde as sementes germinam em silêncio e seus frutos são compartilhados.   Dentre os “descendentes” de São Vicente, diretos ou indiretos, despontaram admiráveis rebentos de santidade, mulheres e homens que, revestidos do espírito de Cristo, floresceram na caridade missionária, fazendo “da misericórdia sua missão vital” (Papa Francisco. Misericordiae vultus, n. 24), para a glória de Deus e o bem dos pobres. Nessa admirável floração, todos os membros da Família Vicentina podem encontrar modelos os mais diversos, aptos a suscitar e corroborar atitudes e empenhos solidamente embasados em nossa comum vocação à santidade. Na conclusão de sua magnífica Encíclica Deus caritas est, o Papa Bento XVI quis colocar São Vicente e Santa Luísa entre os santos “que praticaram a caridade de forma exemplar”, acrescentando que eles “permanecem modelos insignes de caridade social para todos os seres humanos de boa vontade”. Como eles, também os modelos de santidade que rejuvenescem a vetusta árvore da Família Vicentina e nos educam na vivência de nosso carisma missionário “são verdadeiros portadores de luz dentro da história, porque são homens e mulheres de fé, esperança e caridade” (n. 40). Com efeito, “nos santos, torna-se óbvio como quem caminha para Deus não se afasta dos seres humanos, antes, ao contrário, torna-se-lhes verdadeiramente próximo” (n. 42).   Na herança de São Vicente de Paulo, vigoroso mestre espiritual e infatigável missionário dos pobres, a Família Vicentina redescobre sem cessar a centelha capaz de revitalizá-la em sua paixão pelo Evangelho e em sua compaixão pelos que se acham nas periferias existenciais da vida. Sobre estes, derrama o bálsamo da misericórdia, visibilizando-a em gestos de solidariedade, palavras de consolação e ações sócio-transformadoras. Conscientes de que “não há caridade que não seja acompanhada de justiça” (SV II, 54), os herdeiros de São Vicente se empenham criativamente em mudar as estruturas geradoras de pobreza, a partir de uma nova maneira de entender os pobres, interpretar as situações que envolvem suas vidas e atuar em comunhão com eles e em colaboração com outras instituições alinhadas com a mesma causa.   A crise social agravada ao extremo pela pandemia da COVID-19 deixou os pobres ao relento de uma noite densa e gélida. Se toda a humanidade se encontra vulnerável psicológica e espiritualmente, muito mais dramática é a situação daqueles que acumulam vulnerabilidades de todos os tipos. A Família Vicentina se vê interpelada a revitalizar sua presença e atuação junto aos mais sofridos e esquecidos, apoiada no Evangelho da vida e da esperança, da misericórdia e do serviço. Sirvam-nos de alento estas palavras do Papa Francisco: “O que o Senhor nos pede hoje é uma cultura de serviço, não uma cultura de descarte. Mas não podemos servir aos outros se não deixamos que sua realidade nos afete. Para que seja assim, tens que abrir os olhos e deixar-te tocar pelo sofrimento à tua volta. Assim, poderás escutar a voz do Espírito de Deus que te fala a partir das margens” (Vamos sonhar juntos, p. 16).   Atuando nas margens e a partir das margens, a Família Vicentina se deixa tocar pelas carências humanas e perscruta nelas a voz do Espírito que a confirma em sua vocação e a impele a um renovado compromisso caritativo e missionário.   * Publicado originalmente como entrevista no site do Instituto Humanitas Unisinos, em 27/09/2021.
Pe. Eli Chaves, CM
Pe. Eli Chaves, CM Viver os Votos com fecundidade, fidelidade e felicidade Na Exortação Apostólica pós-sinodal Vita Consecrata, do Papa João Paulo II, ele afirma que, através da profissão dos conselhos evangélicos, os consagrados são chamados a assumir os traços característicos de Jesus virgem, pobre e obediente: adquirem uma típica e permanente “visibilidade” no meio do mundo (n. 1); é parte integrante da vida da Igreja (n. 3); a sua prática torna o mistério de Cristo perenemente presente na Igreja e no mundo, no tempo e no espaço (n. 5); a sua profissão pública segundo um carisma específico e numa forma estável de vida comum, é um serviço apostólico pluriforme ao Povo de Deus (n. 9); é sinal e profecia para a comunidade dos irmãos e para o mundo (n. 15); é um sinal profético, exige e expressa o dom de si (n. 16); requer e manifesta o desejo explícito de conformação com Cristo (n. 18); é um dom da Trindade (n. 20); pertence indiscutivelmente a vida e a santidade da Igreja (n. 29); é singular e fecundo aprofundamento da consagração batismal (n. 30); ajuda a desenvolver a graça recebida no Sacramento da Confirmação (n. 30); é expressão e fruto de dons espirituais recebidos por fundadores e fundadoras (n. 48); torna a pessoa totalmente livre para a causa do Evangelho (n. 72); leva a pessoa a ir onde Cristo foi e fazer o que Ele fez (n. 75); propõem, por assim dizer, uma “terapia espiritual” para a humanidade, porque recusam a idolatria da criatura e tornam de algum modo visível o Deus vivo (n. 87); enfim, por meio dos conselhos evangélicos, a pessoa é chamada a escolher Cristo como sentido único da sua existência (n. 95).   No documento Perfectae Caritatis:   • A pobreza voluntária abraçada para seguir a Cristo, do que ela é um sinal hoje muito apreciado, seja diligentemente cultivada pelos religiosos e, se for necessário, exprima-se até sob novas formas. Por ela é participada a pobreza de Cristo, que sendo rico, por nosso amor se fez pobre, para que nós fôssemos ricos da sua pobreza (cf. 2 Cor 8, 9; Mt. 8,20). Pelo que toca, porém, à pobreza religiosa, não basta sujeitar-se aos Superiores no uso dos bens, mas é preciso que os religiosos sejam pobres real e espiritualmente, possuindo os seus tesouros no céu (cf. Mt. 6,20).   • A castidade “por amor do reino dos céus” (Mt. 19,12), que os religiosos professam, deve ser tida como exímio dom da graça. Liberta o coração do homem (cf. 1 Cor 7, 32-35), para que mais se acenda na caridade para com Deus e para com todos os homens. É, por isso, sinal dos bens celestes e meio altíssimo pelo qual os religiosos alegremente se dedicam ao serviço de Deus e às obras de apostolado.   • A obediência - os religiosos oferecem a plena oblação da própria vontade como sacrifício de si mesmos a Deus, e por ele se unem mais constante e seguramente à vontade divina salvífica. Por isso, a exemplo de Jesus Cristo, que veio para fazer a vontade do Pai (cf. Jo 4,34; 5,30; Hb 10,7; Sl. 39,9), e “tomando a forma de servo” (Fl 2,7), aprendeu a obedecer por aquilo que padeceu (cf. Hb. 5,8), os religiosos, sob a moção do Espírito Santo, sujeitam-se na fé aos Superiores, vigários de Deus, e por eles são levados a servir todos os seus irmãos em Cristo, da mesma maneira que o próprio Cristo, por causa da sua sujeição ao Pai, serviu os irmãos e deu a sua vida para redenção de muitos (cf. Mt. 20,28; Jo 10, 14-18).   O que torna os Votos cheios de sentido evangélico são os valores que neles se encontram e podem construir um horizonte de vida de fidelidade, fecundidade e felicidade, em vista do Reino.   Que valores evangélicos mais relevantes os Votos anunciam para o mundo atual? Como, pessoal e comunitariamente, podemos cultivar hoje os valores evangélicos dos Votos, para que sejam verdadeiros sinais do Reino?
Pe. Daniel Franklin E. Pilario, CM
Pe. Daniel Franklin E. Pilario, CM A alegria do Evangelho e a nova evangelização Em 28 de março de 2013, apenas duas semanas após a eleição papal, Papa Francisco presidiu a Missa Crismal, na Basílica de São Pedro, em Roma. O Papa, neste primeiro comparecimento perante os membros do clero da sua diocese, falou-lhes diretamente, afirmando que achava que sabia por que muitos são padres tristes, e por que a alegria é tão rara nas Igrejas hoje em dia. “Daí vem justamente essa insatisfação de alguns que acabam por serem padres tristes, convertidos em colecionadores de antiguidades ou novidades em vez de serem pastores imbuídos do cheiro de suas ovelhas '- isto eu te peço: sejam pastores com o cheiro de suas ovelhas, deixe-o cheirar - em vez de serem pastores no meio de seu próprio rebanho, e pescadores de homens *1” Essa afirmação programática é ampliada ao longo da exortação apostólica Evangelii Gaudium. Este artigo buscará ler a encíclica com os seguintes objetivos: (1) compreender a atual crise da Igreja na medida em que Papa Francisco a compreende; (2) sublinhar as orientações fundamentais da nova evangelização que busca responder a esta crise; (3) traçar algumas experiências relacionadas, na vida e exemplo de São Vicente de Paulo, que podem ser úteis para a nossa presente situação.   1. Uma Igreja fechada, um mundo fechado, e a saída   Se eu quisesse resumir Evangelium Gaudium em três premissas, seria: (a) o problema da Igreja em nossos tempos é a falta de alegria e zelo para anunciar as Boas Novas; (b) a principal causa é a lógica de exclusão e autorreferencialidade; (c) a solução está na lógica de encontro e na missão de ir à periferia e cheirar como suas ovelhas.   Hoje, muitos evangelizadores parecem acreditar na "Quaresma sem Páscoa” (EG 6), na maioria das vezes exibindo uma "cara de enterro" (EG 10). Em uma sociedade de consumo repleta de tecnologia, há muita diversão, mas pouco espaço para a alegria. A vida interior do agente pastoral "fecha-se aos próprios interesses, já não há lugar para outros, nem mesmo para os pobres”(EG 2).   O Papa Francisco localiza a causa de tal tristeza na auto-absorção, autopreservação e autorreferencialidade. Ele identifica "mundanismo espiritual" - um termo emprestado de Henri de Lubac - como o principal culpado. Ele disse em entrevista recente: “Um exemplo que frequentemente dou para ilustrar a realidade da vaidade, é a do pavão; ele é lindo se você o olha de frente. Mas se você olhar por trás, você descobrirá a verdade […] Qualquer um que vivencie a vaidade e a auto-absorção tem grande miséria escondida dentro de si *2. Ele analisa extensivamente esta crise de comprometimento dos trabalhadores pastorais no Evangelii Gaudium (EG 79-109), e pontua que esta lógica de autorreferencialidade não parece uma “tentação” apenas aos trabalhadores das pastorais, mas também à instituição Igreja, como um todo. Na conferência de pré-conclave em que o Cardeal Bergoglio foi apresentador, ele partilhou ideias sobre as duas imagens da Igreja e o desafio da evangelização em nossos tempos. Este discurso extemporâneo, em 9 de março de 2013, causou uma forte impressão nos demais cardeais presentes. Vale a pena citar alguns trechos de suas notas manuscritas:   “A Igreja, quando é auto-referencial, sem se dar conta, pensa que tem luz própria; isto deixa de ser o “mysterium lunae” e dá origem àquele mal que é tão grave, o mundanismo” (segundo De Lubac, o pior mal em que a Igreja pode cair): o de viver para dar glória uns aos outros. Para simplificar, há duas imagens da Igreja: a Igreja evangelizadora que sai de si mesma; o da “Dei Verbum religiose audiens et fider proclamans” [a Igreja que escuta devotamente e proclama fielmente a Palavra de Deus], ??ou a Igreja mundana que vive em si mesma, de si mesma, para si mesma. Isso deve iluminar as possíveis mudanças e reformas a serem realizadas para a salvação das almas” *3.   Esta análise básica da crise da Igreja em nossos tempos encontra eco em toda a Evangelii Gaudium e muitos dos discursos do papa. Em sua última encíclica social, Fratelli Tutti (2020), o Papa Francisco analisou essas mesmas tendências auto-referenciais além dos muros da Igreja e, incansavelmente, persegue a mesma lógica de exclusão no mundo atual e seus sistemas dominantes. Ele fala sobre um “nuvem escura em um mundo fechado” caracterizado pelo egoísmo e indiferença; de uma lógica de mercado que fomenta uma “cultura do desperdício”; de um mundo que constrói muros e não pontes, que na verdade gera todo tipo de medo e solidão, crime e escravidão, racismo e pobreza, e muitos males sociais. A saída sugerida é engendrar um “mundo aberto”. Francisco exorta os fiéis e as pessoas de boa vontade a sairem de si para o “mundo do outro” em espírito de solidariedade e fraternidade. Como o Bom Samaritano (FT 56-86), é preciso ter “coração aberto ao mundo” (FT 128).   2. Os contornos da nova evangelização   Se a saída de um mundo fechado é solidariedade, se o caminho da autoexclusão para a alegria evangélica é a missão, quais são, pois, os contornos principais da opção missionária de Papa Francisco? Os capítulos 3 e 4 da Evangelii Gaudium incluem dois temas principais que também estão no centro do carisma vicentino: a missão - anúncio do Evangelho (EG 110-175); e a caridade - dimensão social da evangelização (EG 176-258). Deixe-me resumir alguns pontos-chave da encíclica, em dez passagens simples desses capítulos.   2.1 A missão: proclamação do Evangelho   a. Graça pressupõe cultura. Com base na afirmação de Tomás de Aquino de que “a graça pressupõe natureza ”(EG 115) e sobre o vínculo íntimo entre natureza e cultura, o Papa Francisco enfatiza os diversos meios que as pessoas usam para fazer a experiência da revelação divina. O Cristianismo não é monocultural, mas transcultural. A nova evangelização pressupõe que "todos os missionários trabalhem em harmonia com os cristãos indígenas para garantir que a fé e a vida da Igreja se exprimam em formas legítimas e adequadas a cada cultura ”(EG 118). Inculturação é outro nome para a nova evangelização.   b. Somos discípulos missionários. “Cada batizado, seja qual for o seu função na Igreja e o nível de educação de sua fé, é um sujeito ativo de evangelização ”(EG 120). A nova evangelização não é só tarefa de profissionais qualificados, mas de todo povo de Deus. Não tem mais distinção entre discípulos e missionários ou entre qual teologia tradicionalmente chamada de ecclesia discens e ecclesia doscens. Dotado de um "instinto de fé "(Sensus fidei), todos os crentes têm acesso intuitivo à sabedoria que" discerne o que é verdadeiramente de Deus ", mesmo que não tenham uma linguagem sofisticada para expressá-lo. Segundo o Papa Francisco, a obra de evangelização é um direito e a responsabilidade não apenas um pequeno número de elites, mas todas. Todos são “discípulos missionários ”- que aprendem e ensinam enquanto se aprofundam e compartilham sua fé.   c. A piedade popular é uma espiritualidade incorporada na cultura infantil. o pobres são discípulos missionários por seu próprio misticismo e fé simples. «É apenas a partir de uma conaturalidade emocional que o amor dá, escreve o Papa, que possamos valorizar a vida teológica presente na piedade dos povos Cristãos, especialmente entre os pobres ”(EG 125). Nada pode ser mais concreto do que o potencial evangelizador dessas práticas cotidianas de fé e que as experiências freiras desse povo pobre: uma mãe que recita seu rosário para seu filho doente ; uma vela acesa para pedir ajuda a Maria; um olhar de profundo amor para Jesus crucificado em meio ao sofrimento. Estas não são apenas expressões aspiração humana ao divino; estas são manifestações genuínas do Espírito em seus corações.   d. A homilia é como as palavras de uma mãe conversando com seu filho. A abordagem O favorito da nova evangelização é o diálogo. É uma prova de amor de Deus experimentado pessoalmente, que espontaneamente fala aos outros sobre o amor de Jesus, mesmo em situações inesperadas - "na rua, na praça, no trabalho, na caminho ”(EG 127). Mas a homilia, lugar privilegiado do encontro dos fiéis com o mensagem de Deus na liturgia, deve ser um testemunho por parte do pregador experiência pessoal do seu encontro reconfortante com a palavra de Deus. "Ela nos lembra que a Igreja é mãe e pregue ao povo como a mãe fala ao filho »(EG 139). Para ser eficaz, o pregador deve falar de coração em palavras que pode acender fogo no coração das pessoas.   e. O primeiro anúncio são as boas novas: Jesus Cristo nos ama. a querigma, o primeiro anúncio da mensagem cristã, deve começar com esta mensagem alegre retumbante: "Jesus Cristo te ama, deu a vida para te salvar, e agora ele está vivo ao seu lado todos os dias para te iluminar, para te fortalecer, para te libertar ”(EG 164). A iniciação mistagógica e a catequese seguem a proclamação querigmática o que leva a uma experiência progressiva de formação na fé e a uma “valorização sinais litúrgicos renovados da iniciação cristã”(EG 166).   2.2 Caridade: dimensão social da evangelização   a. O querigma tem um conteúdo social claro. O evangelho não é apenas uma mensagem para se sentir bem; seu conteúdo social é forte. Sua "repercussão moral imediata cujo centro é a caridade ”(EG 177) não se refere simplesmente a atos bondade pessoal em momentos de necessidade; não é uma forma de "caridade à la carte” Para acomodar sua consciência. O reino que Jesus prega traz o verdadeiro libertação para "todo homem e todo homem" (Populorum Progressio, 14) trazendo-nos diretamente no centro da doutrina social da Igreja. "Todos os cristãos, e também pastores, são chamados a se preocuparem em construir um mundo melhor ”(EG 183). Trabalhar por justiça e participação na transformação do mundo é um dimensão constitutiva do anúncio do Evangelho (cf. Justiça no mundo, 1971).   b. O coração de Deus reserva um lugar especial para os pobres. Jesus era um homem pobre. Ele pertencia a uma família pobre, vivia e trabalhava entre os pobres, e ele morreu pobre. A opção pelos pobres é a opção de Jesus. “Por esta razão, eu deseja uma Igreja pobre para os pobres. Eles têm muito a nos ensinar. Mais para participar do sensus fidei, através de seus próprios sofrimentos eles conhecem a Cristo Sofrimento. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles ”(EG 198). A nova evangelização deve colocar os pobres no centro da missão da Igreja.   c. A desigualdade é a raiz de todos os males sociais. As causas estruturais de a pobreza sempre marginaliza e exclui os pobres. Todas as nossas soluções apenas tocar a superfície, sem atacar a fonte da desigualdade estrutural que é autonomia absoluta do mercado e especulação financeira. “Não podemos mais ter confiança nas forças cegas e na mão invisível do mercado [...] peça a Deus para aumentar o número de políticos capazes de entrar um diálogo autêntico e efetivamente orientado para curar as raízes profundas e não a aparência dos males do nosso mundo ”(EG 204-205). O novo a evangelização exige enfrentar esta desigualdade, caso contrário, não é de todo o Boas notícias.   d. A paz deve ser o resultado do desenvolvimento integral. A paz não se reduz a ausência de violência e guerra, nem um programa de pacificação para silenciar o minoria, nem para o grito de ajuda dos direitos humanos, nem para a distribuição igualitária de riqueza. “Em última análise, uma paz que não é fruto do desenvolvimento integral da nem todos terão futuro e sempre serão a semente de novos conflitos e diversos formas de violência ”(EG 219). O Papa João XXIII já disse que a paz "repousa sobre verdade, se constrói de acordo com a justiça, recebe da caridade sua vida e sua plenitude, e finalmente expressa-se efetivamente na liberdade ”(Pacem in Terris, 167).   e. A evangelização envolve o caminho do diálogo. Três níveis de diálogo são previsto na nova evangelização: diálogo com os Estados, diálogo com sociedade (culturas, ciências, etc.), e o diálogo com outras religiões. Desde o estado tem a responsabilidade de promover o bem comum, a Igreja deve dialogar com ele e chegar a um consenso no espírito de subsidiariedade e solidariedade.   2.3 A opção missionária: Eu sou uma missão nesta terra   A missão é a nossa identidade mais profunda; ela é quem nós somos. No início da Evangelii Gaudium, o Papa Francisco expressa um desejo: “sonho com uma opção missionária, isto é, um impulso missionário capaz de transformar tudo ”(EG 27). Ele termina a encíclica com o mesmo credo: “Minha missão de estar no coração das pessoas não é uma parte da minha vida, nem um ornamento que posso deixar, nem um apêndice de algum momento da existência. Ela é algo que eu não consigo arrancar do meu ser se eu não quiser me destruir. Eu sou uma missão nesta terra, e por isso estou neste mundo ”(EG 273). É somente na missão que a Igreja e seus obreiros podem ser entregues autopreservação e egocentrismo "para encorajar um período mais evangelizador fervorosa, alegre, generosa, ousada, cheia de profundo amor e vida contagiante ”(EG 261).   O Papa Francisco identifica duas fontes desta alegria e desta paixão: “o encontro pessoal com o amor de Jesus "(EG 264) e o encontro pessoal com a pobreza e sofrimento (EG 268). Em primeiro lugar, a encíclica abre e termina com os "contos felizes" do povo de Deus nas escrituras que experimentou a intimidade da presença de Deus (EG 3-13). O apóstolo João lembra-se precisamente quando conheceu Jesus: "Era sobre o décima hora ”(Jo 1, 39). “O verdadeiro missionário, que nunca deixa de ser discípulo, sabe que Jesus caminhe com ele, fale com ele, respire com ele, trabalhe com ele. [...] se alguém não descobre que ele não está presente no próprio cerne da tarefa missionária, ele imediatamente perde o entusiasmo e duvida do que ele transmite, falta-lhe força e paixão ”(EG 266). Segundo, o novo evangelismo não é apenas “uma paixão por Jesus; é também uma "paixão por seu pessoas ”(EG 268). Jesus quer que mergulhemos na miséria e no sofrimento de sua pessoas, não para se manter "a uma distância prudente das pragas do Senhor", mas para que verdadeiramente tocamos “a carne sofredora dos outros” (EG 270). Só aí conheceremos a profundidade da alegria missionária.   A nova evangelização não se trata apenas de novas formas de transmitir A fé cristã no espírito do Catecismo da Igreja Católica, conforme expresso o Instrumentum Laboris do Sínodo dos Bispos de 2012 sobre Evangelização da superficialidade deste documento de trabalho 4* não transmite todas as intenções sociais. Evangelii Gaudium é um produto tanto das propostas deste Sínodo como também do pensamento do Papa Francisco *5 Para ele, a nova evangelização não consiste apenas em encontrar novas estratégias para para proclamar a fé no mundo moderno com "novo ardor, novos métodos, novas expressões ”, anunciadas por João Paulo II no início de Puebla *6 . Papa Francisco acredita que é tudo isso e muito mais. O objetivo da nova evangelização é proclamar sobretudo a mensagem social do Evangelho para apoiar a centralidade dos pobres, para lutar contra desigualdade social e econômica, buscar a paz e o desenvolvimento por meio de uma vida de diálogo etc. Porque a alegria do Evangelho não é para poucos, mas para todos os povos: “ninguém pode ser excluído ”(EG 23).   Há quatrocentos anos, São Vicente já havia expressado a agenda do Papa para os anos seguintes: “Portanto que se há alguém entre nós que pensa que está na missão de evangelizar os pobres e não para aliviá-los, para remediar suas necessidades espirituais e não temporais, eu respondo que devemos auxiliá-los e fazer com que ajudem em todos os sentidos por nós e por outros […] isto é evangelizar por palavra e por atos *7.   3. São Vicente e a alegria do Evangelho   Alegria e contentamento não são pontos fortes da personalidade de São Vicente. Raramente vemos um retrato sorridente do Fundador. Seu primeiro biógrafo, Abelly, escreve que ele é "muito bom e amigável", com um temperamento "bilioso e sanguíneo” *8, Rápido para a raiva e melancólico. Vicente colocou desta forma: "Dirigi-me a Deus e implorei-lhe que para mudar este humor seco e desagradável, e para me dar um espírito gentil e benigno: e pela graça de Nosso Senhor, com um pouco de atenção que prestei em suprimir os caldos da natureza, eu saí um pouco do meu humor negro. *9”   Além de suas disposições naturais, São Vicente teve várias experiências com personalidades que lhe trouxeram transtornos e consequências infelizes - da acusação de um legado que não se materializou nos dolorosos incidentes de seu cativeiro em Tunis, até uma acusação de roubo, em Paris. Em todos esses eventos, o jovem Vicente estava procurando por si mesmo, estava buscando seu próprio progresso, uma aposentadoria confortável (aos trinta) com sua mãe, os benefícios materiais do sacerdócio, e até mesmo o desejo de um episcopado, algo que o teria envergonhado o suficiente para nunca mais falar sobre o assunto. Suas sucessivas desventuras e contratempos não o desanimaram. Ele pensou, como suas primeiras cartas sugerem, que "infortúnio presente pressupõe fortuna futura *10”. Havia muito otimismo frenético e egoísmo nele, mas uma falta de alegria genuína. Nas palavras de um escritor espiritual, Vincent "trabalhou para Deus sem fazer a obra de Deus *11”. Nas palavras do Papa Francisco, é tentação de um "mundanismo espiritual [que] se esconde atrás de aparências de religiosidade e até de amor da Igreja, [e que] deve buscar, em vez da glória do Senhor, a glória humana e bem-estar pessoal ”(EG 93-97).   Sua "tentação contra a fé" foi decisiva. “A escuridão envolveu sua alma. […] Ele sentiu desmoronar ao seu redor o mundo de crenças e certezas em que ele havia sido envolvido desde a infância". É assim que o historiador Roman descreve esta provação dolorosa que Vincent por três ou quatro anos *11. Apesar deste "colapso", ele visitou os enfermos em um hospital próximo. E lá ele descobriu o verdadeiro sofrimento dos pobres - um lugar tão lotado que dezenas de pessoas doentes estavam lutando para conseguir uma cama deixada vaga por alguém que tinha acabado de morrer. Era um espetáculo diário em uma instituição dominada pela miséria. o os pacientes estavam tão desamparados que ninguém cuidou deles. Eles estavam apenas esperando pela morte. A autossuficiência de Vincent foi confrontada com esta situação de seres humanos vivos como animais, no inferno. Uma grande revelação para alguém cuja ambição em sua vida foi viver no luxo! Foi uma descoberta dolorosa. Os pobres estavam lhe contando a verdade sobre si mesmo. Ele permitiu que sua vida egoísta fosse confrontada com o mais completo sofrimento e pobreza. Abelly escreve: "Imediatamente, por um maravilhoso efeito da graça, todas as sugestões do diabo desaparecido. Seu coração, por tanto tempo angustiado, foi finalmente libertado *12”. Mas nós sabemos também que não foi tão rápido. Ele não caiu do cavalo e também não se converteu de repente aquele São Paulo. Ainda assim, ele sabia que algo estava acontecendo dentro dele. Durante o meses que se seguiram, ele mudou lentamente de coração enquanto enfrentava outras situações que questionou sua autossuficiência.   Ele não estava mais feliz em viver isolado em um palácio. Ele decidiu dedicar totalmente sua vida para aquelas pessoas que estavam sofrendo. Gradualmente, ele evitou os corredores dos poderosos e procurou conviver com os camponeses pobres do campo, os mendigos das ruas, os prisioneiros das galeras e muitos outros. Sua vida passou por uma transformação radical e ele se voltou para as vítimas da sociedade. Esta conversão o fez perceber profundamente que os pobres eram a fonte de sua libertação. Contra todos os complexos messiânicos que atormentam muitos filantropos, organizadores comunitários e agentes pastorais de nosso tempo, Vicente percebeu que não era não o salvador dos pobres. Foram os pobres que o salvaram.   Após doze anos de vida sacerdotal, obteve um ministério pastoral direto com os pobres de Clichy (1612). E pela primeira vez, ele escreveu uma nota exuberante e alegre: "Meu Deus! como você é feliz por ter pessoas tão boas. E acrescentou: “Acho que o Papa não é tão feliz como um pároco no meio de um povo de tão bom coração 13*”.   A experiência de conversão de Vicente é a mesma transformação com que o Papa Francisco sonha pela Igreja do nosso tempo. Sem esta conversão, permaneceremos presos em nossas “obsessões da web”. À medida que nos convertemos, encontramos a alegria evangélica: “Eu prefiro uma igreja rudimentar, ferida e suja porque esteve nas ruas, em vez de uma igreja cansada do fechamento e do conforto de se apegar às próprias seguranças. Eu não quero um Igreja  pouco saudável preocupada em ser o centro e que acaba enredada num emaranhado de fixações e procedimentos. Se alguma coisa deve ser sagrada para nós e preocupar nossa consciência, é que tantos de nossos irmãos vivam sem a força, a luz e o consolo da amizade de Jesus Cristo, sem comunidade de fé que os acolha, sem horizonte de sentido e de vida. Mais que medo estar errado, espero que nos anime o medo de nos trancarmos nas estruturas que dar falsa proteção, nos padrões que nos tornam juízes implacáveis, em os hábitos nos quais nos sentimos quietos, enquanto lá fora há uma multidão faminta, e Jesus que nos repete continuamente: «Dai-os vós mesmos de comer (Mc 6,37)» (EG 49).     Notas   1 Pope Francis, “Chrism Mass Homily,” http://w2.vatican.va/content/francesco/en/homilies/2013/documents/papa-francesco_20130328_messacrismale.html   2 Andrea Tornielli, “Careerism and Vanity: Sins of the Church,” https://www.catholiceducation.org/en/culture/catholic-contributions/careerism-and-vanity-sins-of-thechurch.html   3 After the conference, Cardinal Jaime Lucas Ortega of Havana requested for a copy of the text. Cardinal Bergolio responded that at the moment he did not have one. But the next day, with “with extreme delicacy”, Bergolio gave him “the remarks written in his own hand as he recalled them.” Ortega asked him if he could release the text, and Bergoglio agreed. Cf. https://www.catholicworldreport.com/2013/03/28/pope-francis-andhenri-de-lubac-sj/   4 Cf. http://www.vatican.va/roman_curia/synod/documents rc_synod_doc_20120619_instrumentumxiii_en.pdf.   5 He writes: “I was happy to take up the request of the Fathers of the Synod to write this Exhortation. In so doing, I am reaping the rich fruitss of the Synod’s labours. In addition, I have sought advice from a number of people and I intend to express my own concerns about this particular chapter of the Church’s work of evangelization.” (EG 16).   6 John Paul II, Discourse to the XIX Assembly of C.E.L.AM. (Port au Prince, 9 March 1983), 3: AAS 75 (1983) 778; L’Osservatore Romano, English Edition (18 April 1983), No. 9.   7 Conferences to the CM, “On the End of the Congregation of the Mission, December 6, 1658, 608. Cf. Jose Ma. Roman, “The Spirituality of Vincent de Paul,” Of Roots and Wings: Reflections on Rediscovering and Reliving a Religious Charism Today, ed. Julma Neo (Paranaque: Daughters of Charity, 2003), 100-117.   8 Louis Abelly, The Life of the Venerable Servant of God Vincent de Paul, Vol. I, trans. William Quinn, (New York: New City Press, 1993), 100.   9 Louis Abelly, The Life of the Venerable Servant of God Vincent de Paul, Vol. III, 163.   10 José Maria Roman, St. Vincent de Paul: A Biography (London: Melisende, 1999), 89.   11 Ibid, 100.   12 Abelly, The Life of the Venerable Servant of God Vincent de Paul, Vol. I, 115-116.   13 Pierre Coste, The Life and Works of St. Vincent de Paul, Vol I (New York: New City, 1987), 57.   . Artigo originalmente publicado no site oficial da Cúria Geral da Congregação da Missão (cmglobal.org), na seção de subsídios preparatórios ára a 46ª Assembleia Geral 2022  . Versão para o português brasileiro por Sacha Leite 
Pe. João Batista Cornagliotto, CM
Pe. João Batista Cornagliotto, CM Mensagem do Superior Geral para o Advento Todos os anos a Igreja nos oferece o tempo do dom e da graça chamado “Advento” que nos ajuda a preparar o coração e a mente de uma maneira especial para o tempo do Natal. Continuando a reflexação sobre São Vicente de Paulo como “místico da caridade”, eu convido a todos, neste tempo do Advento deste ano, a meditar sobre a missão incontestável e vital dos doentes e das pessoas idosas no centro da Igreja e no mundo e, portanto, nas nossas congregações, associações, comunidades, famílias e grupos. Se por um lado, a sociedade considera frequentemente, os doentes e as pessoas idosas como inúteis para o desenvolvimento de um futuro luminoso e pleno de esperança para a humanidade, por outro, na Bíblia, Jesus inverte todos estes preconceitos e concede aos doentes e idosos um papel privilegiado na missão que o Pai lhe confiou de levar todas as pessoas a Ele, ao Seu coração, para que o Reino de Deus se realize. Esta inversão bíblica deriva de uma distinção radical de quem, de fato, é colocado no centro. Quem é que dá pleno sentido às nossas vidas, ao que fazemos, àquilo a que dedicamos todos os nossos dons e talentos? Quem é a suprema fonte de felicidade e de alegria? Não é a pessoa humana que ocupa o primeiro lugar, mas Deus. A sociedade sempre coloca a pessoa humana no centro, na medida em que ela é física e mentalmente lucrativa; Deus não tem lugar ou, se tem, é o terceiro ou quarto lugar, dependendo da opinião egoísta de cada indivíduo. A conclusão lógica, é que em um determinado momento, os doentes e as pessoas idosas tornam-se, como sempre repete o Papa Francisco, “descartados da sociedade” (cf. Fratelli tutti, 278), que não são úteis para contribuir com um futuro luminoso e pleno de esperança para a humanidade. São Vicente fala várias vezes sobre o papel dos doentes: “Já disse muitas vezes, e não posso deixar de repetir ainda, neste momento: devemos estimar que as pessoas acometidas pela doença na Companhia são a bênção da mesma Companhia e da casa. Consideremos isto tanto mais verdadeiro, quanto é verdade que Nosso Senhor Jesus Cristo amou este estado de sofrimento, pelo qual quis Ele mesmo passar, e se fez homem para poder sofrer” (Obras Completas, SV XI, p. 30, sobre o bom uso das enfermidades, 28 de junho de 1658). “Temos motivo de louvar a Deus, porque, por sua bondade e misericórdia, há na Companhia enfermos e doentes que fazem de suas aflições e sofrimentos um palco de paciência, onde apresentam o brilho de todas as virtudes. Agradeçamos a Deus por nos ter dado tais pessoas. Ja? disse va?rias vezes e na?o posso deixar de dizer que devemos pensar que os membros da Companhia, afligidos pela doença, são a bênção da própria Companhia” (Obras Completas, SV XI, p. 74, sobre a utilidade e bom uso das doenças). “Mas para a Companhia, pobre Companhia! Oh! nunca se permita algo de singular, nem nos alimentos, nem nas vestes. Excetuo sempre os doentes, oh! pobres doentes! para cuja assistência cumpriria vender até os cálices da Igreja. Cumulou-me Deus de ternura para com isso e peço-lhe dê tal espírito à Companhia” (Obras Completas, SV XII, p. 418, sobre a pobreza, 5 de dezembro de 1659). Na sua mensagem por ocasião da primeira jornada mundial dos avós e das pessoas idosas, o Papa Francisco citou “um idoso santo, que continua a rezar e trabalhar pela Igreja”, o Papa emérito Bento XVI, que expressou: “a oração dos idosos pode proteger o mundo, ajudando-o talvez de modo mais incisivo do que a fadiga de tantos”. O Papa Francisco ainda acrescentou: “disse-o quase no fim do seu pontificado, em 2012. É belo! A tua oração é um recurso preciosíssimo: é um pulmão de que não se podem privar a Igreja e o mundo”. O Papa Francisco falou também que “não existe uma idade para aposentar-se da tarefa de anunciar o Evangelho”, definitivamente a vocacão das pessoas idosas é “salvaguardar as raízes, transmitir a fé aos jovens e cuidar dos pequeninos” (Mensagem do Papa Francisco por ocasião da primeira jornada mundial dos avós e das pessoas idosas, 25 de julho de 2021). Numa audiência sobre a família, o Papa Francisco expressou que “os anciãos são a reserva sapiencial do nosso povo! [...] Devemos despertar o sentido comunitário de gratidão, de apreço e de hospitalidade, que levem o idoso a sentir-se parte viva da sua comunidade”. Uma sociedade que não sabe manifestar gratidão e afeto às pessoas idosas “é uma sociedade perversa. Fiel à Palavra de Deus, a Igreja não pode tolerar estas degenerações”. “Onde não há honra pelos idosos não há porvir para os jovens”. Além disso o “idoso não é um alienado. O idoso somos nós: daqui a pouco, daqui a muito tempo, contudo inevitavelmente, embora não pensemos nisto. E se não aprendermos a tratar bem os anciãos, também nós seremos tratados assim” (Papa Francisco, audiência geral, quarta-feira, 4 de março de 2015). Vicente de Paulo tinha compreendido estes princípios. Nas Regras comuns, as primeiras Constituições da Congregação da Missão, ele escreveu: “Como entre as coisas que Cristo praticava e mais frequentemente recomendava aos que enviava à sua vinha, fosse uma das principais o cuidado e visita dos enfermos, mormente pobres, por isto a Congregação da Missão terá particular cuidado de visitar e aliviar... não só os enfermos domésticos, mas também os de fora” (Cap.VI, no 1). “Em qualquer parte em que visitarem algum enfermo, em casa ou fora dela não o considerarão como homem, mas como o próprio Cristo, que afirma ser a Ele que se presta tal obséquio” (Cap. VI, no 2). São Vicente de Paulo dirigiu-se também aos próprios doentes com as seguintes palavras: “Também os nossos enfermos se persuadirão de que não estão detidos na enfermaria e na cama somente para se curar com os remédios e alcançar a saúde, mas também para ensinar, como de um púlpito, ao menos com o seu exemplo, as virtudes cristãs, principalmente a paciência e a conformidade com a divina vontade. Assim, será o bom odor de Cristo para todos os que os visitarem e servirem, de sorte que sua virtude se aperfeiçoe na enfermidade” (Cap. VI, no 3). Durante este tempo do Advento, descubramos cada vez mais em nossas comunidades, famílias e grupos, o “tesouro vivo” que são os doentes e as pessoas idosas. Eles são presenças vivas de Jesus entre nós. Eles são Jesus, a quem devemos todo o nossos amor, todos os cuidados que podemos humanamente oferecer. Eles continuam sendo nossos mestres, nosso modelo e nosso apoio na construção de um futuro luminoso e pleno de esperança, porque é Jesus que nos fala através deles, indicando-nos em quais fundações somos convidados a construir nossos sonhos, nossas esperanças e nossos objetivos. Não precisamos ceder a mentalidade de certos setores da sociedade que consideram os doentes e as pessoas idosas como descartados: uma vez terminado o momento efêmero da alegria, tudo o que resta é o luto, a desilusão, a frustração e uma vida sem sentido. Vicente de Paulo, tornou-se um “místico da caridade”, compreendeu e viveu a relação com as pessoas doentes e idosas, seguindo o exemplo de Jesus. Que este tempo do Advento nos faça aprofundar cada vez mais a mensagem de Jesus para os doentes e idosos, a fim de que, enquanto nos preparamos para celebrar o nascimento do nosso Salvador, possamos construir com eles um futuro luminoso e pleno de esperança à luz da Sua presença.
Pe. Aarón Gutiérrez Nava, CM
Pe. Aarón Gutiérrez Nava, CM Ideias sobre conversão estrutural Já falamos sobre "pecado estrutural" há algum tempo (basicamente desde o Concílio Vaticano II, mas especialmente no CELAM-Medellín). Vários documentos da Igreja explicam que o mundo criou verdadeiras "estruturas de pecado", nas quais nós participamos, como cristãos, em nível pessoal, como comunidades e como instituições (Congregação ou Igreja). Este assunto nos interessa porque a teologia sempre se referiu ao pecado, e a nossa salvação estaria ligada a pecar ou não pecar. Como missionários vicentinos, a virtude que mais se relacionaria com a missão seria o"zelo pela salvação das almas.” Desnecessário dizer que, embora São Vicente usasse o termo "almas", ele nunca reduziu a salvação que ele pregou aos pobres a uma expressão puramente interna. Seu conceito de salvação o leva a entender que sem um "corpo" saudável que desfruta a vida, a questão da salvação da alma não pode ser apresentada. Do ponto de vista do zelo, entendemos que em nosso mundo até os próprios pobres jogam os jogos que multiplicam essas estruturas, todos os dias. A influência do mundo nas pessoas e comunidades é muito forte. Sem abordar as estruturas do pecado, como podemos ajudar os pobres e a nós mesmos se evitamos estar em solidariedade e cúmplices ao pecado estrutural? Esta solidariedade e cumplicidade não são sempre conscientes - ocorre "por ignorância", por uma "falta de consciência", ou mesmo por um lapso de atenção sobre disso, porque o pecado estrutural afeta aspectos pessoais ou sociais atuais, vide que é difícil de conectar ou vincular com o pecado e, portanto, com a salvação ofertada. Para muitos, é difícil perceber que se se nos solidarizamos com o pecado estrutural, nós também devemos ser solidários com sua conversão. A conversão pessoal não pode falhar em incluir o comunitário e, portanto, o estrutural. Em outras palavras, verdadeiro cristão a conversão não pode ser reduzida a apenas “amar a Deus” individual e emocionalmente. São Vicente de Paulo disse que também é tarefa do missionário “fazer os outros (pessoas, comunidades, sociedade e suas estruturas) amá-lo. Aqueles que se convertem pessoalmente a Deus, movidos por a caridade fraterna deve contribuir para a transformação das "estruturas do pecado", e a construção de uma nova sociedade mais justa e humana segundo Deus plano. Novos homens, comunidades e estruturas para uma "Nova Humanidade” Em primeiro lugar, deve-se levar em conta que o homem não é salvo isoladamente ou à parte outros. Cada pessoa faz parte de um conglomerado humano mais amplo: e é influenciada pela ações de outros. Influência mútua entre os seres humanos, ou o que chamamos de “efeito borboleta", é um fato hoje que não pode ser negado, muito menos ignorado. Interior autêntico conversão refere-se necessariamente à sociedade e estruturas semelhantes, e é avaliada no base para uma efetiva transformação do modo como o Evangelho é vivido. Jesus continuamente pregou uma mudança de "coração" e deixou aos seus discípulos o cuidado de construir o mundo exigida por essa mudança. No entanto: “É necessário, neste ponto, alertar claramente contra o perigo de certas tendências propensas à privatização da conversão, bem como outras conversões que o fazem não valorizam suficientemente a conversão de interiores e focam unilateralmente sua atenção no transformação das realidades estruturais. ” É preciso lembrar as palavras de Paulo VI: “Mas não há nova humanidade se não houver, antes de tudo, novas pessoas renovadas por Batismo e por vidas vividas segundo o Evangelho” (homens convertidos). O mesmo deve ser dito das comunidades e instituições eclesiais. A Igreja certamente considera importante e urgente construir estruturas que sejam mais humanas, mais justas, mais respeitosas dos direitos humanos; menos opressoras, menos opressivas, menos discriminatórias e menos "exclusivas". A Igreja também é bem ciente de que mesmo as melhores estruturas, os sistemas mais idealizados, logo se tornam desumanos se inclinações desumanas não forem curadas, se não houver conversão de coração e mente por parte daqueles que vivem dentro dessas estruturas, ou que as governam. Essa conversão é obtida e aprofundada, quando se percebe a forma como as estruturas do mundo em que vivemos danificam a vida criada e cuidada por Deus e sua divina providência. Ao nível da estrutura da Congregação, é importante nos avaliarmos a partir da realidade do mundo dos pobres, da nova visão missionária da Igreja, desde sua preferência por ser pobre, por estar com os pobres e ser para os pobres. Até que ponto nossa espiritualidade, nosso estilo de vida e nosso ministérios solidários e cúmplices das estruturas do pecado que atacam a vida dos pobres hoje (e mesmo daqueles que não são tão pobres)? Para não se prolongar muito, isso significa concretamente que a conversão dos pecados, inclusive em sua forma individual, deve-se ter em mente o grande horizonte em que os destinos de toda a humanidade está decidida (lembrando tudo que a exortação pastoral Laudato Si ensina), e até mesmo o universo inteiro. O Papa tem insistido muito em passar de uma concepção casuística a uma transparência da vida evangélica; de uma moralidade de atos de pecado estipulados, para uma moralidade de seguir, e "reconfigurar" a vida “com Cristo, por meio de Cristo e n’Ele.” Por outro lado, um aspecto tão claro no texto do julgamento final (Mateus, 25) é a surpresa por parte tanto daqueles que são julgados como bons, quanto daqueles que são julgados como ruins: “Na verdade, muitos dos que vieram do Oriente e do Ocidente terão uma agradável surpresa, e outros, uma surpresa desagradável, pois aprenderam muitas lições, mas não o decisivo: o fato de que a condenação ou a salvação será decidida na história, por meio de uma maneira concreta e cotidiana".  É evidente que a conversão estrutural da Congregação da Missão deve ser clara sobre isso e mais voltada para a conversão que Deus nos pede hoje. Esta é uma visão muito breve, mas pode ser utilizada para orientar os documentos e instrumentos para 43ª Assembleia Geral de 2022. *Artigo original publicado em cmglobal.org livre tradução para o português brasileiro, por Sacha Leite.
Pe. Eli Chaves, CM
Pe. Eli Chaves, CM Com São Vicente, abraçar os desafios e a fidelidade a Cristo, evangelizador dos pobres Essa pandemia, que se arrasta junto com tantos outros problemas, com muitas consequências, sofrimentos, medos e incertezas?!... Nesta situação, com tantas crises entrelaçadas, bate o desânimo, o cansaço físico e mental. Tem-se a impressão de que tudo se tornou rotineiro, complicado e difícil. Precisamos redescobrir a presença de Cristo que está em nossa barca de serviço aos pobres, para nele iluminar nossos medos, sofrimentos e encontrar a força que revigora e faz acender forte em nós a chama da mística da caridade e da missão. Precisamos manter a “chama que não se apaga”. É preciso avivar a chama do entusiasmo, da mística e do ardor pelo trabalho vicentino. Esta é sempre a primeira e fundamental experiência mística de quem quer se doar no serviço com os pobres: ser capaz de contemplar e ser capaz de extasiar-se diante de Deus que está conosco em Jesus e que nos chama constantemente. Precisamos fazer a experiência de São Vicente: “os pobres são meu peso e minha dor”. O peso e a dor dos pobres que alimentaram a vida de São Vicente são uma porta privilegiada para vislumbrar a dor do povo, para perceber a exploração dos irmãos e para sermos chamados por nosso próprio nome para cumprir a missão de servir a Cristo no pobre.   Precisamos alimentar “a mecha que ainda fumega”. Neste momento de crise, contra a tentação de se fechar na busca de tranquilidade e prosperidade, de se ocupar com os interesses pessoais e de ficar passivo à espera de novidades e soluções milagrosas, a mecha da caridade necessita da resistência evangélica. Mesmo que se faça escuro, cantamos e louvamos o amor fiel de Deus pelos pequenos. Resistência é pensar a pastoral e o trabalho com o povo pobre com mais fé, perseverança e criatividade. É celebrar as pequenas vitórias. É abrir espaço para que o povo se expresse e alimente suas lutas. encontrar novos aliados para as causas difíceis. É somar forças com grupos e pessoas para uma colaboração que rejuvenesça o carisma e nos fortaleça no serviço. É treinar gente para a resistência ativa e para as horas difíceis. É rezar e alimentar-se com a palavra da Escritura para descobrir novas luzes para o amanhã. Precisamos “ir ao encontro dos pobres e abrasá-los com o fogo da caridade”. Diante de tantos e tão grandes desafios, com humildade e confiança, precisamos retomar o entusiasmo e a audácia de nossos fundadores e dos grandes evangelizadores e servidores dos pobres. Nossa ação junto aos empobrecidos será aos olhos do mundo uma grande loucura, alguns até nos chamarão de oportunistas ou esquerdistas. Os passos de São Vicente nos estimulam e apontam o testemunho e a palavra de nosso Mestre na escola dos pobres, que é Jesus de Nazaré: “Eu vim trazer fogo à terra, e como desejaria que já estivesse aceso” (Lc 12,49-50). Precisamos cultivar o fogo da presença solidária junto aos pobres. Presença solidária é ser parceiro com o povo sem carregá-lo nas costas, ouvir suas dores, seus clamores e buscar, juntos, o remédio para curá-los. Somos chamados a estar com Jesus na barca agitada pelas crises atuais, agir sempre contra toda falta de esperança, e confiar. Assim nos ensina São Vicente: “Há que confiar em Deus, dedicar-nos a nossas tarefas e encom e n d a r tudo o mais à Providência” (IV, 344). “O grande segredo da vida espiritual é pôr nas mãos de Deus tudo o que amamos, abandonando-nos a nós mesmos para fazer tudo o que Ele quiser, com uma perfeita confiança em que tudo irá melhor” (VIII, 243). Deus nos quer seguindo Jesus, com entusiasmo e esperança, e que não deixemos os pobres sozinhos.
Pe. Vinícius Augusto Ribeiro Teixeira, CM
Pe. Vinícius Augusto Ribeiro Teixeira, CM A Identidade da CM no início de seu 5º centenário O tema da identidade volta com frequência às nossas reflexões e discussões, ainda mais em tempos de mudanças radicais nos mais distintos âmbitos: antropológico, cultural, social, religioso, eclesial, etc. Vivemos, na verdade, um momento histórico de fortes incertezas e instabilidades. Por um lado, a crise global ocasionada pela pandemia da COVID-19 ressaltou a realidade de um mundo fraturado, fazendo crescer a insegurança ante o presente e o futuro. Por outro lado, esta crise nos ajudou a despertar para a necessidade e a urgência de voltar ao essencial da vida, de recuperar valores talvez esquecidos, de redescobrir princípios e atitudes capazes de humanizar o humano, qualificar as relações e recriar a harmonia na Casa Comum. O Papa Francisco, com a lucidez que o caracteriza, soube recordá-lo naquela inesquecível oração do dia 27 de março de 2020, na Praça de São Pedro completamente vazia: “A tempestade desmascara nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos nossos programas, nossos projetos, nosso hábitos e prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade”. Seja como for, o assombroso e desconcertante do Cronos não nos impedem de reconhecer o fecundo e o promissor do Kairos que despontam em nosso horizonte existencial e histórico. O momento requer oração mais constante, reflexão mais profunda, discernimento mais atento, decisões mais audazes. Um bom começo pode ser mergulhar no tema da identidade que nos constitui, posto que, sem saber quem somos ou a que somos chamados, não podemos viver com sentido, atuar com entusiasmo e falar com convicção. Faltar-nos-iam densidade, consistência e dinamismo. A CM se vê interpelada a percorrer este caminho de apropriação e reconfiguração de sua identidade espiritual e apostólica diante dos desafios e apelos do momento presente. Trata-se, então, de escutar a voz do Espírito que lhe diz: “Mantém com firmeza o que tens, para que ninguém arrebate sua coroa” (Ap 3,11). Nesta linha, situa-se a 43ª Assembleia Geral (AG), convidando-nos a rezar e a refletir sobre o tema: Revitalizar nossa identidade no início do V centenário da CM. Com esse propósito, exortou-nos o Padre Tomaž Mavri?: “Nossa próxima Assembleia Geral será celebrada, se Deus quiser, 405 anos depois do momento inspirado por Deus em Folleville. Precisamos ter sede, aspirar e dispor-nos nada menos que ao fogo interior e ao zelo missionário que levou nossos primeiros Coirmãos a seguir Jesus, evangelizador dos pobres. Precisamos esforçar-nos para uma nova primavera, um novo Pentecostes”. Dentro dos limites impostos pelo espaço de que dispomos aqui, trataremos do assunto a partir de três pontos: apresentaremos alguns pressupostos metodológicos da identidade vicentina (I), recordaremos seus aspectos nucleares (II) e aludiremos a alguns riscos ou tendências que nos podem deter no esforço de atualizar nossa identidade (III). Em tudo isso, vale recordar que a revitalização da identidade da CM exige e integra os âmbitos pessoal, comunitário e institucional (Província e Congregação em geral), já que toda mudança estrutural tem seu ponto de partida na vida daqueles que intuem sua necessidade e a promovem com retidão e esperança. I – Três pressupostos da identidade vicentina Convém começar por um esclarecimento a respeito do tema da identidade, de seu significado e de seu alcance. Fixaremos nossa atenção em três pontos que encontram respaldo na experiência do próprio São Vicente de Paulo, em seu grande esforço de definição do perfil de suas fundações. 1. Identidade é a manifestação visível do que nos constituí essencialmente, é a realização histórica do que somos chamados a ser. Valendo-nos de uma sugestiva imagem do próprio São Vicente, poderíamos dizer que a identidade se assemelha ao rosto, “que é o testemunho do coração” (ES IX-A, 398 | SV IX, 435). Dirá, pois, o fundador, em outra ocasião, recorrendo à mesma imagem: “os rostos são sinais da disposição do coração, já que, ordinariamente, dão testemunho do que existe em seu interior” (ES IX-B, 892 | SV IX, 304).  Aplica a mesma lógica ao explicitar as virtudes que definem o espírito das Filhas da Caridade: “Aqueles que vos vejam, devem conhecer-vos por essas virtudes” (ES IX-A, 537 | SV IX, 596). Isso significa que as intenções, sentimentos e disposições que abrigamos em nosso interior devem refletir-se na exterioridade de nossa conduta, em nossas palavras e ações, em nossas opções e compromissos. Dessa forma, a identidade nos distingue dos demais, realçando e tornando palpáveis nossos traços característicos. Como toda identidade espiritual e apostólica, a identidade vicentina possui uma dupla estrutura: interior ou carismática, que se centra em uma experiência fundante – a do encontro com Jesus Cristo, evangelizador dos pobres – da qual brotam valores, convicções e motivações; e exterior ou profética, a qual se traduz em um modo de ser e agir, em um estilo de vida marcadamente caritativo e missionário. O fundador soube explicitá-lo ao delinear a fisionomia da CM com estas palavras: “Seu específico é dedicar-se, como Jesus Cristo, aos pobres” (ES XI-A, 387 | SV XII, 79). A dimensão interior alimenta e impulsiona a exterior, assim como a dimensão exterior concretiza e atualiza a interior. Vale aqui, bem entendido, o que escreveu o filósofo cristão E. Mounier, ao referir-se à existência da pessoa encarnada na história: “Sem a vida exterior, a vida interior seria incoerente, tal como, sem a vida interior, aquela não seria mais que delírio”. Esta é, pois, a primeira noção de identidade que podemos colher das intuições de Vicente de Paulo: nossa vocação possui uma fisionomia própria, um rosto que a define e visibiliza, uma maneira específica de situar-se na Igreja e no mundo, segundo o carisma que o Espírito nos comunicou através do fundador. 2. A identidade vicentina se configura em um processo dialético, em uma permanente e saudável tensão entre fidelidade e criatividade. Trata-se, portanto, de uma “trajetória traçada entre duas rochas: a da essência herdada e a da existência historicamente construída”. Somos, ao mesmo tempo, herdeiros e artesãos de nossa identidade. Falando, certa vez, às Filhas da Caridade, São Vicente se mostrou muito consciente desse dinamismo que caracteriza o espírito ou a identidade de uma comunidade apostólica: “Eis, minhas filhas, qual foi o começo de vossa Companhia. Como não era naquela hora o que é atualmente, é de se acreditar que ainda não é o que será, quando Deus a tiver colocado no ponto onde a quer, pois, minhas filhas, não deveis pensar que as comunidades se fazem de uma vez por todas” (ES IX-A, 234 | SV IX, 245). A identidade vicentina se apresenta como dom e tarefa; não apenas um testamento recebido do passado, mas também uma meta que temos que alcançar, um propósito que precisamos assumir, dia após dia, sempre em busca da unidade que lhe dá sentido e consistência. Assim como uma planta requer a seiva que lhe vem de suas raízes e que a robustece, também a identidade necessita alimentar-se continuamente da inspiração que a fez nascer e que a mantém dinâmica, ou seja, aberta a oportunas adequações, e atual, capaz de responder eficazmente aos desafios de cada momento histórico. Quando a herança se impõe como algo hermético ou quando a construção do novo descuida das raízes, a identidade se empobrece e se esfuma. O novo que desejamos oferecer aos pobres e à Igreja, como herdeiros e artesãos da identidade vicentina, não pode prescindir da riqueza da herança que o fundador nos legou e que tem suas raízes no Evangelho que emoldurou toda sua existência. Com efeito, para ser originais, temos que voltar às origens, ao que temos de mais genuíno. O Papa Francisco quis atualizar essa convocação: “Repassar a própria história é indispensável para manter viva a identidade e também robustecer a unidade da família e o sentido de pertença de seus membros. Não se trata de fazer arqueologia nem cultivar inúteis nostalgias, mas de repercorrer o caminho das gerações passadas para nele captar a centelha inspiradora, os ideais, os projetos, os valores que as moveram, a começar dos fundadores e das primeiras comunidades”. Quem quiser estar em dia com a identidade vicentina, tem que voltar às fontes para imbuir-se da riqueza original e criativa do carisma e, assim, avançar com mais perspicácia e vigor na direção dos desafios e exigências da missão nos diferentes contextos atuais. 3. Construir uma identidade aberta, dialogal e interativa. Em muitas ocasiões, nosso fundador se mostrou convicto da importância de uma apropriação ampla e profunda do específico de nossa vocação. Entretanto, sabia que isso não implicava em nenhum complexo de superioridade ou isolamento narcísico. Ao contrário, São Vicente insistia para que seus Padres e Irmãos soubessem reconhecer os méritos das diferentes famílias espirituais existentes na Igreja, preconizando assim o que se entende hoje como complementariedade e convergência entre os carismas e ministérios que enriquecem a missão compartilhada do povo de Deus: “Deus suscitou esta Companhia, como todas as outras, por seu amor e beneplácito. Todas tendem a amá-lo, mas cada uma o ama de maneira distinta: os Cartuxos pela solidão, os Capuchinos pela pobreza, outros pelo canto de seus louvores, e nós, meus irmãos, se temos amor, temos de demonstrá-lo levando o povo a amar a Deus e ao próximo, amar ao próximo por Deus e a Deus pelo próximo” (ES XI-B, 553 | SV XII, 262). O próprio Vicente de Paulo orientou e acompanhou de perto a fundação e o florescimento de várias comunidades religiosas, ajudando-as a discernir e assimilar suas respectivas identidades. Sabia que, por desígnio de Deus, a cada identidade carismática corresponde uma visão de Jesus Cristo e uma dimensão de sua missão salvífica: “As Companhias existentes na Igreja de Deus consideram diferentemente a Nosso Senhor, consoante os vários atrativos da graça, as luzes e as considerações diversas que lhe apraz dar-lhes, esta num estado, aquela em outro. Assim o imitam e honram de maneiras diferentes” (ES XI-B, 571 | SV XII, 284). A conclusão é óbvia: somos distintos, mas não distantes. Nenhum carisma por si mesmo abarca todas as necessidades do povo de Deus. Os diferentes carismas que impulsionam a vida da Igreja são identidades em permanente relação e devem interagir em vista da missão comum de difundir o Reino na história, cada uma mantendo íntegro o que lhe é peculiar. Neste campo, não é necessário demarcar rígidas fronteiras de separação, cedendo a comparações superficiais e a clichês pejorativos, que procedem por generalização. É o que ocorre, por exemplo, quando se associa, sem mais, o individualismo e a acomodação ao estilo de vida do clero diocesano. Sabemos, entretanto, que não são poucos os sacerdotes diocesanos comprometidos com as exigências de sua vocação, exemplares no cultivo da vida espiritual, da caridade pastoral e da fraternidade presbiteral. No diálogo e na colaboração com outras identidades, a identidade vicentina se aprofunda e enriquece, oferecendo sua contribuição específica à missão da Igreja. Como sublinhou o Papa Francisco: “A experiência mais bonita é descobrir quantos carismas diversos e quantos dons do seu Espírito o Pai confere à sua Igreja! Isto não deve ser visto como um motivo de confusão e de transtorno: são todos presentes que Deus oferece à comunidade cristã, para que possa crescer harmoniosa, na fé e em seu amor, como um único corpo, o corpo de Cristo”. ****** Nestes pressupostos, descobrimos um tríplice estímulo: submergir-nos sempre mais na rica singularidade desta herança espiritual e apostólica que constitui a identidade vicentina; apropriarmos do dinamismo que caracteriza nossa identidade, manifestando sua jovialidade carismática e missionária em nossas respostas aos desafios de cada momento e de cada realidade; e estabelecer pontes de diálogo e colaboração com outras identidades a serviço da missão comum de semear a Boa Nova com palavras e obras. Seremos, então, como aquele discípulo do Reino que tira de seu tesouro coisas novas e velhas (cf. Mt 13,52). II – Eixos da identidade vicentina da CM Antes de discorrer sobre os fundamentos da identidade vicentina na CM, é importante ao menos recordar os princípios de revitalização identitária sugeridos pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), em seu Decreto Perfectae caritatis (n. 2): a norma suprema do Evangelho, a inspiração e as intenções dos fundadores, a tradição e o magistério da Igreja, as legítimas esperanças e necessidades de nossos contemporâneos e, por fim, o primado da renovação espiritual que deve influenciar todas as outras dimensões da vida. É sempre bom refrescar o já conhecido para não deixá-lo cair na rotina. Esta volta ao essencial propugnada pelo Vaticano II constitui um elemento teológico irrenunciável. De fato, a raiz última de nossa identidade é essencialmente teologal e jamais se reduz a aspectos de ordem meramente filosófica, psicológica, sociológica ou operativa. Além disso, a identidade da CM está sintetizada nas páginas das Constituições (1984) – também elas já necessitadas de adequações para responder melhor aos desafios de um mundo que muda radical e vertiginosamente – especialmente na acertada formulação de sua finalidade (CC1). Voltar às fontes e traduzir essa essência de maneira significativa e relevante para nossos dias é o esforço mais importante que se deve empreender com o objetivo de revitalizar nossa identidade. Por isso, não estamos autorizados a dar por supostos valores e princípios que – ainda que muito lidos, estudados e debatidos – na prática não se revelam suficientemente assimilados e continuam sendo imprescindíveis e inclusive inadiáveis. A renovação e revitalização do carisma virão pela via de uma dupla fidelidade: aos valores essenciais que integram o projeto original do fundador e às transformações históricas de cada época. E essa dupla fidelidade se efetua mediante um cuidadoso discernimento e uma contínua conversão pessoal, comunitária e institucional. Só assim, a CM chegará a ser sempre a mesma em permanente novidade (semper idem in novitate), posto que, como dizia o grande místico e pastor, Dom Helder Camara: “É preciso mudar muito para continuar sendo o mesmo”, para viver e atuar a partir do essencial, ao qual necessitamos sempre voltar para recuperar nossa riqueza própria. Estamos, uma vez mais, frente ao desafio de conjugar fidelidade crescente e criatividade audaz, como recorda um recente documento da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica: “Aquilo que se quer conservar há de se atualizar continuamente. Fidelidade, portanto, conjuga-se com criatividade: algo deve mudar e algo deve manter-se. O importante é discernir o que deve permanecer na perseverança do que, pelo contrário, pode e deve mudar”. Cabe-nos, portanto, a tarefa de encarnar e irradiar o espírito evangélico e vicentino que define nossa identidade. E temos que fazê-lo a partir da maneira como vivemos os aspectos constitutivos de nossa forma de vida (oração, ministérios, obras, comunidades, virtudes, votos, eclesialidade, secularidade, etc.), dentro das múltiplas circunstâncias em que nos situamos como depositários e dispensadores do carisma recebido do Espírito através de São Vicente. Devido à exiguidade do espaço, mencionamos, a seguir, tão somente os três principais eixos ou núcleos da renovação identitária da CM, segundo a sabedoria do fundador atualizada nas Constituições: 1. A centralidade de Jesus Cristo. O primeiríssimo eixo da identidade vicentina não é outro senão a absoluta centralidade de Jesus Cristo em nossa vida de Missionários. Cristo é a rocha firme sobre a qual temos que construir o edifício de nossa vocação (cf. Mt 7,24). São Vicente o expressou de muitas e variadas formas, com uma insistência sem comparação, transmitindo assim sua própria experiência, a experiência de alguém que decidiu “consagrar toda sua vida, por amor a Jesus Cristo, ao serviço dos pobres”, segundo o propósito que assumiu ainda ao redor dos 30 anos, quando se achava envolto em uma tentação contra a fé. Aos Missionários, dirá, reiteradamente, que “Cristo é a regra da Missão” (ES XI-B, 429 | SV XII, 130), “o modelo verdadeiro e o grande quadro invisível com o qual temos de conformar todas as nossas ações” (ES XI-A, 129 | SV XI, 212). Por isso, “é necessário revestir-se do espírito de Jesus Cristo (...), a fim de viver e agir como viveu Nosso Senhor e fazer que seu espírito transpareça em toda a Companhia, em cada Missionário e em todas as suas obras” (ES XI-A, 410 | SV XII, 107-108). Dessa relação de comunhão e amizade com Jesus Cristo, cotidianamente aprofundada na contemplação e na missão, nasce uma nova maneira de relacionar-se com Deus e com os outros, uma nova visão de fé. Por tudo isso, Jesus Cristo é o princípio orientador da existência do Missionário e o critério iluminador de seus discernimentos e decisões: “Para bem dispor de nosso espírito e de nossa razão, devemos ter por regra inviolável julgar sempre como julgou Nosso Senhor, digo sempre e em tudo. E perguntar-nos nas ocasiões que se apresentam: ‘Como Nosso Senhor julgaria isso? Como se comportou em caso semelhante? Que disse sobre isso? É preciso ajustar meus procedimentos às suas máximas e exemplos’. Tendamos a isso, senhores, e andemos por esse caminho com segurança” (ES XI-A, 468 | SV XII, 178-179). Todo e qualquer esforço de revitalização identitária tem que partir de Jesus Cristo. E mais: do Cristo a quem Vicente de Paulo encontrou, contemplou e seguiu ao longo de sua trajetória, o Cristo enviado pelo Pai para evangelizar aos pobres, que consumiu toda sua existência histórica no cumprimento da vontade salvífica daquele que o enviou para espalhar as sementes do Reino no terreno da história. A 42ª AG (2016) quis recordá-lo expressamente: “Jesus Cristo é o centro de nossa vida e missão, regra para nossa identidade, conteúdo de nossa pregação, razão de nossa paixão pelos pobres” (n. 2.1.). Neste ponto, temos que nos perguntar como anda nossa relação de amizade e comunhão com o Senhor, como a nutrimos pessoal e comunitariamente. Trata-se, pois, do cultivo da vida interior que nos identifica como Missionários e que alenta nossa busca de santidade no cotidiano. Em muitos lugares, os membros da Congregação se tornaram conhecidos pela generosidade da entrega e pela disponibilidade para o serviço. Oxalá sejamos conhecidos também pela fecundidade de uma vida espiritual que se irradia e que contagia a quantos convivem e trabalham conosco. Permitimos que Cristo seja, de fato, a vida de nossa vida de Missionários? Asseguramos a circularidade entre o Evangelho que meditamos, a Eucaristia que celebramos e os Pobres a quem servimos, como mediações e privilegiadas de nosso encontro diário com o Senhor? Para nós, o seguimento de Jesus Cristo evangelizador dos pobres é realmente o impulso da mística e da ética que se expressam na vivência das cinco virtudes e dos votos?  2. Destinados aos pobres. Umas das mais firmes convicções de São Vicente se refere à evangelização integral dos pobres como razão de existir da Congregação. De fato, a fidelidade à vocação está intimamente associada à sua finalidade. Isso significa que, na perspectiva do carisma vicentino, a caridade e a missão têm uma direção inequívoca: os menores dos irmãos (cf. Mt 25,40), aqueles que carecem do indispensável a uma vida digna e feliz, os que não nos podem retribuir por aquilo que lhes fazemos (cf. Lc 14,12-13). Trata-se, pois, dos pobres reais e concretos, os preteridos e descartados da sociedade, aqueles que – além das pobrezas existenciais, psicológicas, morais, espirituais, etc. – enfrentam a privação do mínimo vital, vitimados pelo egoísmo e a injustiça que lhes ferem a dignidade. Junto a eles, através de uma presença compassiva, uma evangelização criativa e um serviço eficaz, continuamos a missão do filho de Deus: “Sim, Nosso Senhor pede que evangelizemos os pobres: foi o que Ele fez e o quer continuar fazendo através de nós” (ES XI-A, 386 | SV XII, 79). Como se pode inferir facilmente, a opção radical de Vicente de Paulo pelos pobres nada tem de ideologia sectária ou de mera estratégia operativa. Ela nasce de uma exuberante experiência de fé, do mistério de sua vocação, de seu encontro pessoal com Jesus Cristo que o remete sem cessar aos últimos deste mundo. O Evangelho é a regra suprema da vida de Vicente e a pauta de sua atuação na Igreja e na sociedade de seu tempo, a chave e o sustento de seu compromisso com os pobres no seguimento de Jesus Cristo. Em uma memorável conferência, o fundador alude a possíveis questionamentos ou objeções que poderiam surgir ao redor do tema da evangelização dos pobres como coração pulsante da identidade da CM na Igreja. E acrescenta uma claríssima descrição da originalidade da Companhia, constituída por Deus para prolongar a missão de Jesus Cristo. Uma graça que requer o compromisso da correspondência e da conformidade, cotidianamente renovadas: “Mas não há na Igreja de Deus Companhia alguma que tenha por partilha os pobres e que se dê totalmente aos pobres, a ponto de jamais pregar nas grandes cidades. É disso que os Missionários fazem profissão. Têm isso de particular: ser, como Jesus Cristo, aplicados aos pobres. Nossa vocação, portanto, é uma continuação da sua ou, pelo menos, é semelhante em suas circunstâncias” (ES XI-A, 387 | SV XII, 79-80). Na visão de fé que São Vicente nos oferece, o Missionário é chamado a redescobrir-se a cada dia como amigo, evangelizador e servidor dos pobres. A 42ª AG quis ressaltar essa verdade inscrita no coração da identidade vicentina: “Os pobres constituem nosso lote próprio, nossa herança. A eles, dirige-se nossa ação evangelizadora. Eles são também nossos primeiros interlocutores. No contato direto com os pobres, eles nos evangelizam (...). Nossa relação com os pobres, com os mesmos sentimentos de Cristo Jesus, identifica-nos como Missionários (ao contrário de funcionários)” (n. 2.3). Para nós, a missão não é uma atividade profissional, é expressão privilegiada da conformidade com Jesus Cristo, de nossa entrega a Deus. Precisamos, pois, dedicar tempo e atenção ao discernimento sobre nossa presença missionária junto àqueles aos quais somos destinados por força de nossa vocação específica. É hora, pois, de rever o sentido atual, a relevância carismática e a atualidade profética de nossos ministérios, projetos e obras. Os lugares onde nos situamos, os serviços que prestamos e a maneira como o fazemos manifestam a verdade do que somos como evangelizadores dos pobres? Ou nos contentamos comodamente com a manutenção de estruturas rentáveis, limitando-nos a um pastoral de mera conservação? Cultivamos a liberdade interior e a lucidez espiritual para mover-nos em outras direções, descobrir caminhos novos e empreender ações criativas e eficazes de aproximação à realidade dos pobres e de resposta aos apelos das realidades onde se desenvolve nossa missão? O pontificado atual, tão concorde com nosso carisma, pede de nós a coragem de situar-nos nas fronteiras, nas margens, nas periferias, com autêntico sentido evangélico e vicentino. Que nos fale e anime a promissora Encíclica Fratelli tutti! 3. Formar o clero e os leigos em e para a caridade missionária. Assegurada a inigualável prioridade da evangelização dos pobres, como finalidade precípua da CM, a formação do clero e dos leigos se levanta como um aspecto irrenunciável da identidade vicentina. O próprio São Vicente o disse: “Ora, trabalhar na salvação do pobre povo do campo é o principal de nossa vocação e tudo mais é apenas acessório” (ES XI-A, 55 | SV XI, 133). Pelo bem dos pobres, para que a mensagem do Evangelho se consolidasse entre eles, Vicente de Paulo se comprometeu com a formação dos padres e com a animação dos leigos, convidando-os a reavivar o dom de Deus que lhes havia sido confiado (cf. 2Tm 1,6). Ainda que tacitamente, o Documento da 42ª AG não deixou de sublinhar este traço constitutivo de nossa fisionomia. E o fez no marco das Linhas de Ação e Compromissos: “Partilhar o sentido missionário e eclesial de nossa evangelização e de nosso serviço aos pobres na formação de clérigos e leigos, sobretudo para a liderança missionária” (n. 3.5.d). Hoje como ontem, a Igreja tem necessidade de leigos e presbíteros convictos, coerentes e comprometidos, virtuosos e capacitados para o serviço do Reino. Em sua florescente atividade apostólica, Padre Vicente intui que, para “tornar efetivo o Evangelho” (ES XI-A, 391 | SV XII, 84), era imperioso dotar a Igreja de pastores sábios e humildes, que estivessem a serviço do povo, ali onde este vivia, sofria e esperava, no campo e nas cidades. Por isso, estabelecerá a formação do clero como atividade própria de sua Congregação, um desdobramento necessário da evangelização dos pobres: “O terceiro fim de nosso pequeno Instituto é instruir os eclesiásticos, não apenas nas ciências de que devem ter conhecimento, mas também nas virtudes que devem praticar. Que faríeis, se lhes ensinásseis umas sem as outras? Nada ou quase nada. Eles têm necessidade de capacitação e de vida santa. Sem esta última, a primeira é inútil e perigosa. Devemos levá-los a amar igualmente a ambas, e é o que Deus pede de nós” (ES XI-A, 390 | SV XII, 83). Passados os tempos áureos da atuação da CM na formação dos eclesiásticos, cabe-nos agora identificar novas maneiras de concretização desta dimensão da finalidade da Congregação. Necessidade não falta, como também não faltam possibilidades, sobretudo onde há insuficiência de formadores, em Igrejas Particulares marcadas pela carência pastoral e econômica. Pensemos, por exemplo, na ajuda que podemos oferecer através de um sério e cuidadoso acompanhamento espiritual, da orientação de exercícios espirituais, do magistério seminarístico e acadêmico, de programas de formação inicial e permanente, da cooperação pastoral e sobretudo de nosso testemunho pessoal e comunitário. Talvez sem o mesmo protagonismo de antes (reitorias de grandes seminários, por exemplo), mas sem deixar a desejar na profundidade espiritual, na consistência intelectual e no zelo apostólico que a tarefa exige. Pensemos ainda na difundida experiência do diaconato permanente, que costuma suscitar vocações autóctones em lugares mais remotos (entre os povos indígenas da Amazônia, por exemplo). No exercício harmonioso da dupla ministerialidade (Matrimônio e Ordem), muitos diáconos se constituem em valiosos missionários em diversas periferias ou fronteiras. O campo da formação do clero continua sendo vasto e precisa ser redescoberto, ainda mais tendo em conta as crises que afetam o momento atual. O protagonismo dos leigos na vida e na missão da Igreja, que haveria de ser reconhecido e encorajado pelo Vaticano II, encontrou em Vicente de Paulo um autêntico e entusiasta precursor. Toda sua ação caritativo-missionária foi acompanhada e enriquecida pela colaboração qualificada de leigos verdadeiramente identificados com seu ideal apostólico e contagiados por sua coerência evangélica. Padre Vicente desperta mulheres e homens para enfrentar as misérias e necessidades de seu tempo, comunica-lhes uma vigorosa experiência de fé e compromete a inteligência e a sensibilidade deles com a evangelização e o serviço dos pobres. Desde o começo até o final de seu itinerário pastoral, Vicente será acompanhado de perto por leigas e leigos que partilham de sua paixão por Cristo e de sua compaixão pelos que sofrem. O laicato está, portanto, na origem e no desenvolvimento da caridade e da missão. Se, de fato, “a Igreja é como uma grande messe que requer operários que trabalhem” (ES XI-B, 734 | SV XII, 41), poucos souberam dinamizá-la tão fortemente em sua fidelidade ao Evangelho como Vicente de Paulo, reunindo pessoas decididamente orientadas à santidade no seguimento de Jesus Cristo e na solicitude para com os deserdados da história. Tinha razão São João Paulo II ao dizer a respeito de nosso fundador: “A vocação deste genial iniciador da ação caritativa e social ilumina ainda hoje o caminho de seus filhos e filhas, dos leigos que vivem de seu espírito, dos jovens que buscam a chave de uma vida útil e radicalmente consumida no dom de si mesmos”. Somos desafiados a proporcionar uma formação consistente aos leigos que colaboram conosco no serviço da caridade missionária, com particular atenção aos membros da Família Vicentina, mas também aos de nossas paróquias, colégios, universidades e obras em geral, abrindo caminhos para impulsionar o protagonismo dos leigos nos ministérios e nas instâncias eclesiais de decisão, bem como nos âmbitos da sociedade, da cultura e da política, de modo que trabalhemos todos juntos, em uma permanente complementariedade, na construção de um mundo mais fraterno e solidário, antecipação do Reino que é dom e responsabilidade. III – Tendências ou riscos Não há dúvida de que a árdua e apaixonante tarefa de revitalizar a identidade da CM requer ao menos três movimentos intimamente relacionados entre si: o crescente aprofundamento ou compenetração dos valores essenciais que integram a visão original do fundador, o olhar de fé sobre as mudanças e perspectivas que caracterizam o momento presente da história e o desenvolvimento de um novo projeto de vida e missão que abarque e atualize os aspectos constitutivos de nosso núcleo identitário. A Instrução sobre os votos resumiu, com lucidez e clareza, este desafio que temos pela frente: “Esta mesma inspiração original de São Vicente e de seus primeiros companheiros continua convocando hoje a CM. Jesus, o evangelizador dos pobres, continua chamando-nos hoje a segui-lo em sua caminhada entre os abandonados e marginalizados. A resposta da CM, fundamentada no compromisso radical de cada um a seguir a Jesus como discípulo, é uma ação comunitária. Durante a vida de São Vicente, as necessidades mais urgentes dos pobres, a missão apostólica, a vida comum, a vocação para ser discípulo de Jesus, assim como o exemplo do próprio São Vicente, foram capazes de criar um dinamismo que dotou a nascente CM de sua identidade específica. Fiel a essa tradição, a Congregação procura seguir o sopro do Espírito nos sucessos e situações de nosso tempo. Igual dinamismo, formado por elementos similares, impulsiona-nos hoje a encarnar o carisma vicentino em um novo contexto histórico e a responder com formas novas às necessidades urgentes dos pobres”. Todos sabemos que um trabalho dessa envergadura supõe algumas predisposições das quais não podemos prescindir: retidão de intenção, espírito de oração, discernimento profundo, estudo sério, sentido comum, sintonia eclesial, amor à Congregação, dialogo respeitoso, trabalho persistente, firmeza nos fins, flexibilidade nos meios, etc. Além disso, convém combater algumas tendências insidiosas que colocam em risco o processo de revitalização identitária, minando seus fundamentos e estreitando seu horizonte. A título de ilustração, tipificamos doze dessas tendências: o reducionismo ideológico, que consiste em apegar-se previa e estrategicamente a ideias, conveniências ou interesses parciais, sem levar em conta os princípios que vertebram a identidade e sem deixar-se interpelar pelas circunstâncias (os sinais dos tempos) e as necessidades (dos pobres, da Igreja, da Congregação...); a nostalgia do passado, de suas conquistas e glórias, como se fosse possível transportar de lá, sem mais nem menos, as respostas que devemos dar aos desafios concretos de hoje, com o risco de cair na involução; o afã das novidades, sem preocupar-se em robustecer-se com a seiva que provém das raízes e dando por descontado o que ainda não foi assimilado (ainda que tenha sido muito discutido), com o perigo de perder de vista os fundamentos e de mudar só por mudar (o que não implica necessariamente uma melhora); a tentação de baixar o nível, de nivelar por baixo, renunciando ao ideal evangélico-vicentino, minguando as exigências do carisma, contentando-se com o mínimo exigido, acomodando-se ao já conquistado e dispensando-se de esforços mais exigentes e iniciativas mais audazes; o otimismo oco, que oculta a realidade, contemporiza incoerências, camufla omissões, não impulsiona a conversão, não se importa com a fidelidade e não reconhece o que precisa mudar (vale lembrar aqui que o que não é assumido não pode ser redimido); o pessimismo destrutivo, que rouba a esperança, obscurece a alegria, fecha as possibilidades e solapa a criatividade que anda de mãos dadas com a fidelidade; a ausência de uma justa escala de valores, que não distingue entre o essencial e o acidental, o central e o periférico, o primordial e o secundário, como se tudo tivesse a mesma importância e a mesma urgência; o intelectualismo, que não sai do plano das ideias, diluindo-se em abstrações de pouca ou nenhuma incidência, sem aterrissar no concreto e sem deixar-se interpelar pelas situações; o legalismo, que absolutiza as normas, não se abre aos processos e não se dispõe a revisões, mostrando-se inclinado ao imobilismo; o subjetivismo, que se restringe aos sentimentos e reações primárias, instala-se nos apegos e não se lança na direção de novos desafios, condicionando as exigências da vocação às demandas individuais ou às comodidades; o praxismo, que desvaloriza o discernimento e a reflexão, podendo assim mascarar o vazio espiritual, encobrir deficiências não remediadas e degenerar em compulsão ou em ativismo desprovido de finalidade e transcendência; o pelagianismo, que não leva em conta o fato de que a revitalização da identidade da CM não se reduz a raciocínios, planos e estratégias, já que inclui um ato de fé, devendo, por isso, ser acompanhada e dinamizada pela entrega orante de nossos esforços àquele que é o autor e consumador de nossa vocação missionária. Outro documento da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica resume o que representam tentações como estas para uma Comunidade que deseja colocar-se em dia com sua identidade: “Todo sistema estabilizado tende a resistir à mudança e faz o possível para manter sua posição, por vezes ocultando incongruências, outras vezes aceitando aproximar pobremente o velho e o novo, ou negando a realidade e os atritos em nome de uma concordância que é fictícia, ou até dissimulando os próprios fins com ajustes superficiais. Lamentavelmente, não faltam exemplos nos quais se encontra uma adesão puramente formal, sem a necessária conversão do coração”. ****** Conclusão A arriscada travessia da pandemia do Coronavírus nos fez, ao menos em parte, deter o ritmo frenético e convulsivo da vida ordinária e nos interpelou a passar de um olhar superficial a uma consideração mais profunda da existência, de seu sentido, de seu valor, de suas relações. Instou-nos, portanto, a passar da dispersão à profundidade. Aqui, descobrimos um desafio para nós, membros da CM, no esforço contínuo de revitalizar nossa identidade, em meio a uma cultura líquida e light que se fixa na superficialidade, na provisoriedade e na agitação. Trata-se de fazer da profundidade a chave deste processo. Isso requer sedimentar nossas convicções, qualificar nossas vivências e impulsionar nosso testemunho em todas as dimensões que formam a identidade vicentina. Profundidade que se manifesta em uma humanidade madura, em uma afetividade equilibrada, em uma espiritualidade consistente, em uma formação sólida, em uma entrega missionária generosa, em uma convivência verdadeiramente fraterna, no esforço contínuo de ajustar-nos, livre e alegremente, às exigências do projeto de vida que abraçamos para seguir a Jesus Cristo evangelizador dos pobres, nas pegadas de São Vicente de Paulo. E estamos certos de que as ressonâncias desse empenho iluminado pela fé se expandem, como em círculos concêntricos, desde a vida de cada Missionário e de cada Comunidade até as estruturas de cada Província e de toda a Congregação. Esperamos, pois, que a 43ª Assembleia Geral nos comunique um novo impulso nessa direção, enquanto caminhamos rumo ao quinto centenário da CM. Notas 01 A vida após a pandemia. Vaticano: Libreria e Editrice Vaticana, 2020, pp. 20-21. 02 Carta do Superior Geral, de 25 de janeiro de 2020. A 43ª Assembleia Geral da CM se realizará entre os dias 27 de junho e 15 de julho de 2022. 03 Conferência sobre o espírito do mundo, de 28 julho de 1648. 04 Conferência sobre o uso dos bens colocados à disposição das Irmãs, de 5 de agosto de 1657. 05 Conferência sobre o espírito da Companhia, de 9 de fevereiro de 1653. 06 Conferência sobre a finalidade da CM, de 6 de dezembro de 1658. 07 O personalismo. São Paulo: Centauro, 2004, p.66. 08 SUESS, Paulo. Introdução à Teologia da Missão. Convocar e enviar: servos e testemunhas do Reino. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 186. 09 Conferência sobre o amor à vocação e a assistência aos pobres, de 13 de dezembro de 1646. 10 Sobre o caráter evolutivo de toda identidade, ver: BAUMAN, Zigmunt. Identidade. Entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, pp.16-31. Na perspectiva cristã: BÜHLER, Pierre. A identidade cristã: entre a objetividade e a subjetividade. Concilium, 216 (1988/2), pp. 25-27. 11  Cf. SUESS. Introdução à Teologia da Missão, pp. 185-188. 12 Carta Apostólica às pessoas consagradas para proclamação do Ano da Vida Consagrada, n. 1. 13 Conferência sobre a caridade, de 30 de maio de 1659. Também às Filhas da Caridade, na conferência de 9 de fevereiro de 1653, dirá o fundador: “Todos os cristãos, minhas Irmãs, estão obrigados à prática destas virtudes (caridade, simplicidade e humildade), mas as Filhas da Caridade têm esta obrigação de uma forma especial (...). Os Cartuxos estão obrigados a prática de todas as virtudes, mas se dedicam muito especialmente a cantar os louvores de Deus. Os Capuchinos também têm obrigação de praticar todas as virtudes, mas a nenhuma estimam tanto como a virtude da pobreza. Da mesma maneira, Deus quer que as Filhas da Caridade se dediquem especialmente à prática de três virtudes, a humildade, a caridade e a simplicidade” (ES IX-A, 537 | SV IX, 596). 14  Sirva de exemplo o caso emblemático da União Cristã de São Chaumond, fundada em 1652, pela senhora Pollalion, fiel colaboradora de Padre Vicente de Paulo nas Confrarias da Caridade. Desde suas origens até hoje, esta congregação religiosa reconhece a São Vicente como seu fundador ao lado da mencionada senhora (cf. PEYROUS, Bernard; TEISSEYRE, Charles. Une tradition spirituelle: l’Union-Chrétienne de Saint-Chaumond. Poitiers: Union-Chétienne, 2000, especialmente as páginas 45-53). 15  Conferência aos Missionários sobre o bom uso das calúnias, de 6 de junho de 1659. 16 Neste ponto, o clero secular pode se beneficiar enormemente das chamadas Fraternidades, Associações ou Institutos Sacerdotais, como, por exemplo, os que seguem as espiritualidades do Beato Charles de Foucauld (Jesus Caritas), do Beato Antônio Chevier (Prado) e do Beato Tiago Alberione (Jesus Sacerdote). Quem sabe um dia possamos oferecer ajuda similar aos presbíteros diocesanos, transmitindo-lhes a riqueza da espiritualidade vicentina aplicada ao específico de sua forma de vida... 17  Audiência geral de 1 de outubro de 2014. 18 Cf. CODINA, Victor. Teologias da Vida Religiosa. In: CODINA; ZEVALLOS, Noé. Vida Religiosa: história e teologia. Petrópolis: Vozes, 1987, pp. 122-125.?Ver também: VITÓRIO, Jaldemir. A pedagogia na formação: reflexão para formadores na Vida Religiosa, São Paulo: Paulinas, 2008, pp. 20-24. 19 Cf. QUINTANO, Fernando. Palabras y escritos esenciales. Madrid: CEME?La milagorsa, 2020, pp. 319-321. 20  El don de la fidelidad: la alegría de la perseverancia. Orientaciones (2020), n. 32. 21 Sobre o tema, há abundante bibliografía. Aqui, servimo-nos sobretudo de: RENOUARD, Jean-Pierre. Saint Vincent de Paul, maître de sagesse: initiation à l’esprit vincentien. Bruyères-le-Châtel: Nouvelle Cité, 2010, especialmente a segunda parte, pp. 79-107. | UBILLÚS, José Antonio. Volver a Jesús para evangelizar. Anales de la Congregación de la Misión y de las Hijas de la Caridad, Madrid, tomo 123, n. 3, mayo-junio 2015, pp. 251-265. 22 La vie du vénérable serviteur de Dieu Vincent de Paul, instituteur et premier supérieur général de la Congrégation de la Mission. Paris: Florentin Lambert, 1664, tomo III, p. 118. 23  Conferência sobre a busca do Reino de Deus, de 21 de fevereiro de 1659. 24  Repetição da Oração de 1 de agosto de 1655. 25 Conferência sobre os membros da CM e suas ocupações, de 13 de dezembro de 1658. 26 Conferência sobre a simplicidade e a prudência, de 21 de março de 1659. 27 Sobre este tema, em toda sua riqueza e amplitude, não conhecemos uma referência más sólida que esta: GROSSI, Getúlio. Um místico da Missão, Vicente de Paulo. 2ª ed. Belo Horizonte: PBCM, 2016, pp. 49-112. Ver também: FERNÁNDEZ, Celestino. El pobre en el corazón de San Vicente. VV.AA. La experiencia espiritual de San Vicente de Paúl. 35 Semana de Estudios Vicencianos. Salamanca: CEME, 2011, pp. 507-529. 28 Conferência sobre a finalidade da Congregação da Missão, de 6 de dezembro de 1658. 29 Sobre os dois temas, ver: FARÌ, Salvatore. La formazione iniziale al Presbiterato nell’esperienza vincenziana. Roma: CLV, 2009 | RENOUARD, Jean-Pierre. Los laicos y el Señor Vicente. In: VV.AA. Avivar la Caridad. Salamanca: CEME, 1998, pp. 71-94. 30 Repetição de Oração de 25 de outubro de 1643. 31 O item seguinte também se refere ao assunto: “Preparar entre os Nossos, assim como entre os leigos e o clero, agentes para a Mudança de Estruturas que a vivifiquem e promovam” (n. 3.5.e). 32 Conferência sobre a finalidade da Congregação da Missão, de 6 de dezembro de 1658. 33 Ver, por exemplo: Lumen gentium, n. 31?Apostolicam actuositatem, n. 8. 34 Esquema de uma conferência sobre o amor de Deus. Não datada. 35 Carta do Papa João Paulo II ao Superior Geral da CM. 12 de maio de 1981. 36 Instrução sobre Estabilidade, Castidade, Pobreza e Obediência na CM. Roma: Curia Geral, 1996, pp. 11-12. 37 A vino nuevo, odres nuevos. La Vida Consagrada desde el Concilio Vaticano II. Retos aún abiertos. Orientaciones (2017), n. 11. 38 Na inauguração do curso 2011-2012, da Universidade de Deusto, assim se expressou o recém-falecido Pe. Adolfo Nicolás (1936-2020), Prepósito Geral da Companhia de Jesus: “Hoje, a sabedoria não é moeda comum em nossos mercados. Na realidade, nunca o foi. Pela primeira vez, temos mais informações do que capacidade para digeri-las e processá-las. O que se vende não é sabedoria, mas sim superficialidade: soluções imediatas, explicações pré-fabricadas, culturas de usar e jogar fora, graça barata... Apesar disso, o ser humano tende incansavelmente ao ideal da sabedoria” (Citado na Revista anual da Universidade de Deusto: Deusto, n. 143, 2020, p. 47). * Tradução para o português brasileiro realizada pelo Pe. Hugo Barcelos, CM  ** Artigo originalmente publicado no site da Cúria Geral da Congregação da Missão (cmglobal.org)
Diác. Ramon Aurélio, CM
Diác. Ramon Aurélio, CM Juventudes e pobrezas Como toda estrela no céu, todo jovem na terra é sinal e esplendor. O percurso traçado pela juventude ao longo da história traz em si sonhos e lutas que não podem ser menosprezadas. Entender o caminho juvenil é essencial para a abordagem e o trabalho com os jovens. O mundo contemporâneo é, sem dúvidas, um espaço para entender e dialogar com as juventudes; ele é lugar de investigação que revela dinâmicas das juventudes hoje. Com o avanço da tecnologia  e da globalização, vivemos em um mundo que se encontra num cenário próprio e diversificado frente à realidade. Neste sentido, apresenta-se um cenário complexo com perspectivas e desafios próprios dos tempos hodiernos à cultura juvenil. Este artigo parte do objetivo do eixo central da temática: Juventudes e Pobrezas: uma problematização da realidade social hodierna. Nesta perspectiva, penso que podemos pensar a problematização a partir da compreensão de pobreza expressada no horizonte das periferias e do seu lugar. Em vista de uma melhor compreensão das questões que envolvem a temática, apresentar-se-á uma discussão a respeito da condição atual dos jovens pobres no mundo contemporâneo. Vemos que as perspectivas e desafios brotam da luta diária desprovida de condições básicas de sobrevivência, direitos, saúde, educação e oportunidades de emprego, dentre outras. Ensaio social da juventude: a juvenilidade como “lugar” A juventude deve ser entendida dentro de um longo processo histórico. Na sociedade contemporânea entende-se seu conceito a partir da reflexão social e do seu lugar. Neste sentido, a questão tangente à vida social dos jovens passou a ser concebida como uma abordagem de interesse da sociologia e tornou-se objeto de reflexão e análise acadêmica. O panorama dos estudos sociológicos da juventude abrange diversas expressões no Brasil e no mundo. Sabe-se que existe uma abordagem social e uma histórica por trás de cada geração à luz da sua expressão juvenil. Este ensaio busca neste primeiro tópico apresentar elementos que apresentam o panorama e a trajetória do conhecimento intitulado “sociologia das juventudes”, de modo específico, a relação juventudes e pobrezas. A constatação de que o meio social contribui significativamente para a formação das juventudes, sua história, formação e problemas direcionam a pesquisa da sociologia das juventudes. De acordo com a socióloga Helena W. Abramo (2005, p. 50) a noção de juventude pode ser considerada como uma categoria social. Traça-se quadros dos tipos de sociedade que permitem entender o fenômeno juvenil no contexto social. A formação e a fundação de grupos, tanto com influência nacional e internacional, no Brasil, marcaram profundamente as gerações juvenis com suas próprias trajetórias. De fato, tal influência parte do marco histórico de segmentação dos espaços na elaboração das identidades e das relações sociais dos jovens. Existem alguns elementos relevantes que podem ajudar-nos a compreender as juventudes. Em cada época e lugar, no seu contexto social, se apresentam caracterizadas com os seus apetrechos e os seus jeitos de falar. Neste artigo, pretendo falar das juventudes urbanas e pobres. Na visão do sociólogo Juarez Dayrell, no Brasil, pode-se considerar que a “parcela da juventude brasileira que, majoritariamente frequenta as escolas públicas é formada por jovens pobres que vivem nas periferias dos grandes centros urbanos marcados por um contexto de desigualdade social” (DAYRELL, 2007, p. 1107). Fruto de um meio social, a juventude é entendida como um processo de transição “que processa a passagem de uma condição social mais recolhida e dependente à uma outra mais ampla: um período de preparação para ingresso na vida social adulta” (ABRAMO, 1994, p. 11). A autonomia e a percepção da juventude se deu à medida que ela passou a ser vista como uma categoria social. De fato, o meio social interfere na transição e no reconhecimento dos jovens, influenciando o estágio juvenil de transição antecedente à entrada do jovem na vida social. As condições precedentes à vida social dos jovens refletem significativamente suas relações, comportamentos e interação no mundo adulto. Ou seja, a juventude que provêm das pobrezas no mundo contemporâneo está marcada, mas não condicionada por seu lugar de origem. Ressalta-se que: Há no Brasil 49,8 milhões de jovens entre 15 e 29 anos (26,54% da população), dos quais 29,8% é considerado pobre (vivem em famílias com renda per capta de até meio salário mínimo). Do total de jovens, 4,8 milhões se encontram desempregados (são 60,74% dos desempregados do país), 19,8% não estudam e nem trabalham e 7,7% das mortes violentas ocorrem com vítimas entre 15 e 24 anos (SILVA & ANDRADE, 2009, p. 45 apud Flavio Sofiati 2013, p. 3). Numa perspectiva geográfica social pode-se dizer que o lugar precedente da juventude está carregado de discursos e um modo próprio de se viver. Neste sentido, é importante também considerar a juventude como um lugar. Desta maneira, as mudanças trazidas pelo meio social marcam, mas não definem por completo, a personalidade juvenil. A ambiguidade do status social caracteriza uma série de elementos provocadores de crises nas juventudes. Um destes elementos é a cultura. Os jovens periféricos desenvolvem “rituais, símbolos, modas e linguagem peculiares, visando marcar suas identidades distintivas de outros grupos etários” (Ibid, p. 11) e outros grupos sociais. Na sequência, se faz importante entender a juventude como lugar de categoria social, conforme já mencionado, além de um lugar de moratória. Por fim, retomando os aspectos juvenis e o surgimento dos grupos, no Brasil e no mundo, sobretudo os periféricos, faz-se necessária uma reflexão mais específica das relações entre juventudes e pobrezas no intuito de transformar a ordem social. Desvinculando da infância, encontramos uma juventude que busca sair da invisibilidade, mas, às vezes perdida. A partir daí, encontraremos jovens que tentarão se desvincular dos limites familiares, das estruturas escolares e dos padrões da tradição; que tentarão romper com a infância, subjetivamente e socialmente, na qual não se enxergam mais no mesmo lugar de antes, vivem uma transição insegura, sem referência e mudanças sociais num ambiente hodierno frente a sociedade líquida, como nos diz o sociólogo Zygmunt Bauman. Adolescência e juventude na periferia: problematização da realidade social Dom Helder Câmara dizia que o segredo da Juventude é doar a vida inteira por uma causa que valha a pena lutar. Este é o sonho de um profeta que não só em palavras, mas em obras, expressou ao mundo inteiro o seu compromisso com as juventudes. O lugar e a formação do jovem Helder Câmara certamente influenciaram sua opção preferencial pelos mais pobres. Formado pelos lazaristas, na Faculdade Católica de Fortaleza, vivenciou e imbuiu-se do espírito de São Vicente de Paulo, pai da caridade. Notamos que o itinerário por ele traçado, ao longo de sua vida, emana sabedoria e compromisso com a causa dos mais desfavorecidos, sobretudo com a juventude popular das grandes periferias urbanas. Vivamente marcada pela desigualdade social, a juventude brasileira das periferias das grandes cidades é o objeto de estudo desta pesquisa. Como forma de identificação e luta, o lugar que ocupam na sociedade une os jovens. Os jovens produzem os seus projetos e suas intenções de acordo com a sua realidade e seu período histórico. Revestem-se de vocabulário próprio, estética e atitudes. Acredito que a juventude deva ser vista como espelho da sociedade, ou seja, olhar as juventudes é ver a sociedade e as tendências que existem no mundo.   Entre os anos de 1960 a 1970 vê-se uma juventude marcada pela pauta social. Buscava-se políticas públicas para a juventude brasileira no que se refere ao processo de introdução do jovem no mercado de trabalho. O sonho com a vida na metrópole oferecia carona aos pioneiros migrantes do êxodo rural. A predominância da proposta de emprego, as possibilidades de vida digna e a socialização das juventudes nas capitais do país engendrava o ideal juvenil moderno. Em contraponto ao sonho juvenil, a realidade e o lugar social em quem se projetavam os jovens idealistas era outro. Não contemplando e nem consumindo as promessas idealizadas oferecidas pela visão das capitais trabalhistas e a progressão financeira social, os jovens passaram a ocupar outros lugares. Consequentemente a frustração e a desigualdade promovida pela falsa promessa do sistema converteram-se na ocupação de localidades periféricas das grandes metrópoles. Os modelos atuais, frente às heranças sociopolíticas herdadas pelos jovens das periferias suscitaram a reflexão atual a partir da necessidade de resgatar o compromisso social e a vontade de recuperar a possibilidade dos jovens obterem o acesso básico a serviços e direitos próprios do tempo atual. É preciso enxergá-los como atores socialmente constituídos que trazem uma bagagem social e cultural. Neste sentido visibilizou-se amplamente as juventudes das periferias e a formação dos grupos diversos. A reflexão passou a ser a respeito da condição juvenil e a popularização da linguagem do cotidiano, sua psicologia e, sobretudo, o grau variado das culturas identitárias marcadas pelo capitalismo no mundo contemporâneo. Nos tempos hodiernos, a condição da juventude na periferia mudou. Cresceram-se os desencantos pela política e particularmente pela democracia [...] (Cf. DAp, n.77) diante das realidades sociais. Há um convite: enxergarmos a realidade juvenil. Neste ponto de vista, ao considerar as realidades juvenis não é possível excluir do discurso os seus lugares de fala. Por isso, considera-se negligente não abranger integralmente o processo de mudança e o percurso das juventudes pobres hodiernas. Nesse ínterim, temos a tecnologia como um fator contribuinte que aponta direções para pensar a juventude no século XXI. Esta realidade direciona a pesquisa para um espaço antropológico, onde as pessoas sentem-se o centro da história e, não meramente comunicadores, deslocam-se do anonimato social para a interatividade da cultura digital. As redes sociais tornaram-se lugares de visibilização. O acesso a smartphones e internet facilitaram a comunicação e as relações juvenis num espaço virtual. Contudo estes espaços virtuais tornaram-se lugares também de fundamentalismos sem diálogos, areópagos para o antropocentrismo juvenil e fomentação para o discurso de ódio e intolerância social. Acentua-se, publicamente, as diferenças sociais e a legitimação da polaridade entre os jovens ricos e pobres. A diversidade de rosto dos jovens como os camponeses, urbanos, indígenas, operários e marginalizados marcam o protagonismo juvenil brasileiro. Sabemos que alguns anos atrás permaneciam silenciados diante do contexto civil, social e eclesial. Com a tecnologia, emergiu o protagonismo jovem acentuado na cultura virtual. Se antes a juventude pobre e sua cultura era oprimida pela visão colonizadora, agora surge outro cenário. A cultura das periferias, sobretudo, o modo de ser das juventudes pobres negra, indígena, e outras expressões se tornam marcos deste século. O ano de 2020 certamente pegou muitas pessoas de surpresa, pois ninguém imaginava a crise sanitária, humanitária, institucional, psicológica, religiosa e social que o vírus da Covid-19 causaria no mundo. A repercussão que gerou em diversos países, a busca e a prevenção através do isolamento, não só físico, como também social, afetou milhares de pessoas, governos e instituições, assim como as juventudes no mundo contemporâneo. Muitas vidas foram afetadas por esta pandemia, inclusive as vidas jovens, sobretudo as que vivem nas mais diversas realidades de pobres. E ainda que se faz presente o nosso carisma, ser presente entre os jovens mais pobres. O vírus contribuição para a evolução da desigualdade social juvenil. Entre as pesquisas recentes ilustram que, “41% dos jovens sofreram com redução ou perda total em sua renda pessoal devido à pandemia. O dado acima preocupa-nos e apresenta-nos um panorama geral que tem efeitos específicos quando se observa as questões raciais. Atualmente, pudemos perceber que entre os jovens que se declaram pretos, 45% sofrem com a perda na renda pessoal, enquanto entre os brancos, esse percentual é de 37%” (1). A característica dos estudos juvenis, sobretudo para a juventude periférica latino-americana aponta para a urgência em reconhecer a Juventude como construtora da sua própria identidade. Estas juventudes requerem atenção e exigem participação. Luta nutritiva dos caminhos para o horizonte na história a partir de um acompanhamento juvenil. Isto abarca a investigação da conquista de direitos públicos, eclesiais, políticas e deveres dos jovens. Desta maneira, acredito que não podemos desconsiderar os estudos que analisem as violações e conquistas de direitos humanos das juventudes. Conclusão A intenção desta síntese, num primeiro momento, consistiu em apresentar um ensaio teórico a partir do tema exibido e de sua relevância para a pesquisa a respeito das juventudes nos tempos atuais. Os elementos abordados nesta pesquisa apontam para uma relevância teórica e prática necessária no campo dos estudos das juventudes, sobretudo com os mais pobres. O ensaio apoia-se na produção acadêmica bibliográfica da atualidade que permite dialogar com o perfil dos jovens e o lugar de fala (2) dos jovens na sociedade. Refletir sobre as situações das juventudes no mundo contemporâneo, como jovem vicentino, faz-me ressaltar a intenção da introdução desta escrita, sobre a necessidade da compreensão das realidades sociais e das pobrezas atuais, a partir da ótica juvenil. Em segundo plano, fizemos uma abordagem das questões voltadas para o lugar das juventudes no âmbito do trabalho, da educação e da formação das consciências das juventudes na periferia. Nesta mesma perspectiva, fizemos no fim um adendo, ou seja, na tentativa de atualização da pesquisa, consideramos importante trazer elementos contemporâneos para o trabalho diante do novo cenário juvenil mundial frente à Covid-19. Desta maneira, acredito ser necessário nos fazermos próximos dos jovens, “o agora de Deus”, como diz o Papa Francisco. Por isso, convido-os a olhar para o testemunho dos jovens santos da nossa Família Vicentina, fazer presença no itinerário mistagógico juvenil de nosso tempo, de maneira que sejamos um carisma jovem “que serve, que sai de casa, que sai dos seus templos, que sai das suas sacristias, para acompanhar a vida, sustentar a esperança, ser sinal de unidade (…) para lançar pontes, abater muros, semear reconciliação (FRATELLI TUTTI, n. 276). Sendo assim, acredito ser urgente o aprofundamento e a nossa compreensão do mundo dos jovens, estes que são membros importantes de nosso carisma. Notas (1) Disponível em: https://www.futura.org.br/juventudes-e-a-pandemia-do-coronavirus/ (2) DJAMILA, Ribeiro. O que é o lugar de fala? Ed. Letramento, Belo Horizonte-MG, 2017 Referências Bibliográficas .ABRAMO, Helena Wendel & LEÓN, Oscar Dávila. Juventude e adolescência no Brasil: referências conceituais. São Paulo: Ação Educativa: 2005. .DAYREL, JUAREZ L. A escola “faz” as juventudes? Reflexões em torno da socialização juvenil. Educ. Soc., Campinas, vol. 28, n. 100 - Especial, p. 1105-1128, out. 2007. .DEBERT, Guita Grin. A dissolução da vida adulta e a juventude como valor. Horizontes Antropológicos, v. 16(34), 2010, p. 49–70. .FRANCISCO, Papa. Fratelli Tutti. São Paulo, Paulus, 2020. .SOFIATI, Flávio M. (2013) Juventude e políticas públicas: os governos de FHC e LULA. In: Heloisa Dias Bezerra; Sandra Maria de Oliveira. (Org.). Juventude no século XXI: dilemas e perspectivas. Goiânia-GO: Cânone Editorial, p. 131-150. .GROPPO, Luis Antonio. Introdução à Sociologia da Juventude. Jundiaí: Paco Editorial, 2017, pp. 139-149. .PRADO, Antônio Ramos do Prado. Cultura Juvenil: perspectivas e desafios para novos tempos. Paulus, São Paulo: 2014. .SILVA, Enid R. A da & ANDRADE, Carla C. de (2009) A política nacional de juventude: avanços e dificuldades. In CASTRO, Jorge Abraão (et. all.) (org.) Juventude e políticas sociais no Brasil. Brasília: IPEA.  
Pe. Miles Joseph Heinen, CM
Pe. Miles Joseph Heinen, CM A paróquia à luz da cultura vocacional São Vicente se mostrou relutante em aceitar as paróquias(1), pois temia que pudessem impedir a mobilidade dos missionários. No entanto, acabou cedendo. Percebeu o valor das paróquias na formação de sacerdotes diocesanos e na manutenção das relações com benfeitores. Esta hesitação durou até os últimos dias de sua vida. Atualmente, mais de 35% dos nossos coirmãos estão envolvidos no ministério paroquial(2). Neste momento, a Igreja reflete seriamente sobre o ministério paroquial, como evidenciado pela publicação, em Julho de 2020, da instrução "A conversão pastoral da comunidade paroquial a serviço da missão evangelizadora da Igreja" (PC) da Congregação para o Clero (3). O documento tem as suas raízes na visão do Papa Francisco, afirmado no Evangelii Gaudium 27: “Sonho com uma "opção missionária"... capaz de transformar tudo, para que os costumes, as formas de fazer as coisas, os horários, a linguagem e as estruturas da Igreja sejam devidamente canalizados para a evangelização do mundo de hoje e não para a sua autopreservação”. O documento PC encarna este sonho do Papa Francisco quando afirma, no número 11: "É necessária uma vitalidade renovada que favoreça a redescoberta da vocação dos batizados como discípulos de Jesus Cristo e missionários do Evangelho, à luz do Concílio Vaticano II e do Magistério subsequente". Esta vocação dos leigos influencia significativamente o nosso trabalho como pastores. Isto nos move a ser responsáveis, a sermos colaboradores do Espírito Santo na realização do Reino de Deus (4). Parece que é isto o que 60 coirmãos, promotores vocacionais descobertos em uma reunião de um mês em Paris, em 2018, fazem em todo o mundo: o desenvolvimento da cultura das vocações. A atitude tem a ver com o nosso apelo para reposicionar as nossas relações, tal como descrito em CC §1, para nos revestirmos do Espírito de Cristo evangelizando os pobres (sendo discípulos), de modo que eles sejam a fonte e o centro de tudo o que fazemos. Uma sugestão útil é a de deixar as redes e seguir Jesus quando ele chama. A minha relação com Jesus organiza tudo o que faço em torno da vontade do Pai, em harmonia com uma expressão vocacional muito diversificada. Esta mudança envolve discernimento e conversão. Devemos fazer isto vigorosamente, individual e coletivamente. Devemos revestir o Espírito de Cristo de modo a aumentar o acesso dos pobres a Jesus Cristo. Convidamos o clero e os leigos a juntarem-se a nós para se tornarem discípulos, uma ação que é de enorme importância, dado o âmbito da Missão. Nas nossas CC §11, definimos a nossa tarefa principal como "tornar o Evangelho realmente efetivo", donde concluímos que “o nosso trabalho de evangelização por meio da palavra e das obras deve esforçar-se para que todos, através de um processo de conversão e celebração dos sacramentos, sejam fiéis ao Reino, ou seja, ao novo mundo, à nova ordem, à nova forma de ser, de viver, de viver em comunidade, que o Evangelho inaugura” (EN 23). Se nos permitirmos passar do significado de "comunidade" para "comunhão", então podemos facilmente estabelecer uma ligação com a evolução deste conceito na Igreja. Na encíclica do Papa S. João Paulo II, Sollicitudo Rei Socialis, a comunhão está associada à solidariedade (formação integral), ambas no nº 38 (uma determinação firme e perseverante em comprometer-se com o bem comum; ou seja, o bem de todos e de cada indivíduo, porque todos somos realmente responsáveis por todos), como no número 40, onde o “modelo supremo de unidade, que é um reflexo da vida íntima de Deus, um Deus em três pessoas, é o que nós cristãos queremos dizer com a palavra "comunhão". Esta comunhão especificamente cristã, zelosamente preservada, alargada e enriquecida com a ajuda do Senhor, é a alma da vocação da Igreja chamada a ser um ‘sacramento' no sentido já indicado”. (5) A comunhão é o centro do nosso trabalho, expresso em palavras e obras, que apresenta ramificações sociais concretas. No entanto, a fonte é a unidade em Deus, que produz resultados concretos neste mundo. Somos o "sacramento" da unidade, a partir do qual a paz é estabelecida. A respeito do conceito de “Reino": "Nem direis: 'Olhai, aqui está' ou 'Lá está', pois eis que o Reino de Deus está no meio de vós" (Lc 17,21). O Reino é uma imagem que fala de autoridade e cuidado, unidos na noção de comunhão sob a influência da encarnação. Deus exprime autoridade no Amor que respeita a nossa liberdade. Somos batizados neste Amor e regressamos à vida no Espírito. Jesus respondeu e disse-lhe: 'Em verdade vos digo que, se alguém não nascer de novo, não poderá ver o reino de Deus'" (Jo 3,3). Sobre a noção de vocação: São Vicente lembrou-nos mais de uma vez que o nosso chamamento ou vocação vem da eternidade. (6) A vocação alcança a sua plenitude na visão salvífica, a unidade com Deus que é Amor. O caminho é a nossa fraqueza submetida ao amor de Deus através de nós. Não há amor se não houver livre arbítrio, por isso podemos ver que Deus nos criou de tal forma que nos é possível encarnar o Espírito livremente dado, mas que também somos livres de dizer não. (7) Quando dizemos sim comunitariamente, então o Espírito expressa a comunhão que manifesta a providência de Deus. Nós somos o corpo de Cristo, a quem o Espírito traz à unidade na manifestação dos carismas. Por este motivo, o discernimento é indispensável para qualquer sistema de planeamento que utilizemos. Ouvimos onde o Espírito está a chamar a Igreja local quando os seus membros dizem "sim" ao que o Espírito quer fazer através deles para o bem de todos. (8) Neste ponto, lembro-me que, como seres humanos fracos, precisamos do apoio de uma estrutura para manter a integridade no diálogo. Dependemos do Magistério para nos manter fiéis à Escritura e à Tradição à medida que amadurecemos no sensus fidei. (9) Paróquias Deixem-me agora sugerir uma aplicação prática. Como respondemos à secularização em massa mais proeminente no hemisfério norte, mas não ausente em outros setores? A estratégia é desenvolver uma cultura vocacional gerada na própria paróquia, ajudando todos a serem discípulos de Cristo. Recordemos que temos mais de mil confrades envolvidos neste ministério. No que se segue, vou recorrer aos conhecimentos adquiridos nos últimos vinte e cinco anos ou mais pelo Instituto Siena, um ministério liderado pelos dominicanos que promove o tornar-se discípulo de Jesus. Este ministério é liderado em coordenação com uma leiga chamada Sherry Weddell, cujo testemunho sobre a sua conversão ao catolicismo proporcionou o terreno fértil para nutrir este ministério.                                                                                                                   Constituições à luz da Cultura Vocacional na paróquia Qual é geralmente a experiência "normal" da missão na paróquia? Talvez o quadro seguinte nos possa ajudar a fazer um olhar crítico sobre a missão na paróquia à luz da Vocação (apelo de Deus), (10) onde "conservação" foi expressa como "autoproteção" na citação acima do Papa Francisco. A chamada ao seguimento de Jesus Cristo descrita em nossas Constituições §1, com a particularidade de "evangelizar os pobres”, continua a desafiar-nos. A tendência é a de associarmos a primeira parte do CC §1 diretamente ao CC §12 e esquecermos o resto do CC §1, §11 e §42. Isto desestabiliza o processo, desligando-o da sua fonte de vida. Cristo pode tornar-se uma imagem, talvez um valor, cujo espírito é equiparado a um ensino da moda. Desta forma, a nossa presença junto dos pobres pode ser limitada ao desenvolvimento social. O problema aqui é a limitação, não o desenvolvimento social. O Espírito de Cristo é a Terceira Pessoa da Trindade. Estamos no campo da encarnação, não do desenvolvimento de competências como é comumente entendido. A encarnação é o que vemos ao continuarmos com CC §1, "...os membros, individual e coletivamente: 1, façam todos os esforços para se revestirem do próprio Espírito de Cristo". Tal como o entendo, a noção aqui é fazer as coisas como Cristo as faria. Mais uma vez, poderíamos fazer de Cristo um modelo e usar a força de vontade para alcançar a virtude, mas este caminho não leva a lado nenhum. A base do significado é a encarnação. O Espírito de Cristo é uma pessoa da Santíssima Trindade. Colocar o Espírito é um processo de conversão que envolve confrontar a nossa visão pessoal do mundo com o Apocalipse, mediada pela Igreja Católica, e pedir humildemente a ajuda de Deus quando os dois não coincidem. Queremos pôr fim à nossa resistência para que o Espírito possa trabalhar através de nós, como os pais do deserto ensinaram. (13) É exatamente aqui que a visão captada em C. §42 lança uma luz clara: "O compromisso apostólico com o mundo, a vida comunitária e a experiência de Deus na oração complementam-se e fazem uma unidade orgânica na vida de um missionário”. (14) Missão não é apenas um compromisso apostólico. A missão é uma unidade orgânica de compromisso apostólico, vida comunitária e experiência de Deus na oração. (15) A imagem não é a construção de blocos que sugerem componentes pré-fabricados e individuais; a imagem é a unidade orgânica que sugere a vida como uma integração de elementos e processos cuja existência depende da integração. A nossa missão é viver o nosso próprio processo de evangelização, tal como definido em C. §11. É um processo de conversão ou "formação permanente" para toda a vida. Devemos ser fiéis em dar ao Espírito cada vez mais liberdade para responder através de nós e propiciar a comunhão de Deus conosco. Como agentes, então, na paróquia, teríamos duas linhas principais de ação: . Ajudar as pessoas a escutar sua experiência, a fim de perceber as pegadas do Espírito que nos chama a avançar no caminho e, por fim, dizer “sim”, deixando as redes e seguindo Jesus. . Ajudar as pessoas a ouvirem suas experiências para ver como o Espírito verdadeiramente age através deles para o bem do Corpo de Cristo e assim discernir seus carismas e comprometer a missão a partir dessa fonte. Na minha opinião, as linhas de ação, per se, ajudam a desviar o foco da paróquia ou de nós próprios. Somos discípulos. Partilhamos com pessoas a nossa própria experiência vivida, de discípulos que dão frutos. Fazemo-lo de uma forma que permite a esta comunidade paroquial em particular gerar as condições que chamam outros à mesma experiência e resposta. O foco está no Reino, permitindo que a vontade de Deus ganhe vida na nossa carne, como discípulos de Cristo. A organização paroquial é um instrumento e devemos ser hábeis na sua utilização. No entanto, é importante compreender que não estamos desenvolvendo o nosso reino na paróquia. Estamos ajudando a paróquia a tornar-se missionária e depois partiremos. O segundo efeito das linhas de ação é tornar-se distinto dos sacerdotes diocesanos, mantendo a nossa identidade itinerante ao serviço da Igreja, através da estrutura Paroquial. Com o tempo aprenderemos a reconhecer e a elaborar os critérios claros que determinam o fim da nossa missão numa determinada paróquia. A minha leitura atual sugere uma média de oito anos. O terceiro efeito das linhas de ação, e talvez não tão organicamente derivado como os dois primeiros efeitos acima mencionados, é encorajar-nos a partilhar a riqueza do que vai acontecer e como vai acontecer com os nossos irmãos sacerdotes diocesanos no espírito das Conferências de Terça-feira de São Vicente. Sem padres diocesanos que estejam dispostos a dirigir estas paróquias quando partirmos, o nosso ministério, como São Vicente claramente observou (16), não será tão eficaz. O quarto efeito das linhas de ação é ligar-nos ao Instituto Siena, dirigido pelos dominicanos, nos Estados Unidos, que tem mais de 25 anos de experiência na promoção das duas linhas de ação acima descritas.  Acredito que podemos desenvolver uma relação de trabalho com este centro que revigoraria o nosso ministério porque nos ajudaria a aprender a percorrer este caminho. Possibilidades Uma possibilidade, mencionada acima, é a de contatar o bispo para dirigir uma paróquia com o objetivo particular de criar uma cultura vocacional que favoreça o discipulado intencional e partir quando for estabelecido. Outra possibilidade seria colaborar, promovendo uma intervenção do Instituto Siena nas nossas missões ou dando seguimento após uma intervenção. Parece também que esta abordagem da cultura vocacional numa paróquia nos ajudaria na formação de sacerdotes diocesanos. Além disso, vejo nesta abordagem da cultura vocacional um método que cria um espaço para os jovens ouvirem um real apelo à vida consagrada, porque o obstáculo de se sentirem contra a cultura do mundo de hoje é superado pelo fato de toda a paróquia estar envolvida no discernimento de seu chamado em Cristo. Sugiro que a utilização da cultura vocacional para orientar a nossa participação no ministério paroquial nos dará um caminho firme a seguir na revitalização do nosso carisma no alvorecer do quinto centenário. Notas (1) Maloney, Robert P. C.M. (1997) "Sobre o envolvimento vicentino em paróquias", Vincentiana: Ano 41: No. 2, Artigo 10.em: https://cmglobal.org/en/files/2018/08/VT-1997-02-10-ESP-MALONEYPAR.pdf, primeiras quatro páginas. (2) Vincentiana, Ano 64, N° 1, página 3. (3) “Instrucción La conversión pastoral de la comunidad parroquial al servicio de la misión evangelizadora de la Iglesia”, de 29 de junio de 2020, disponível no site oficial do Vaticano em alemão, espanhol, francês, inglês, italiano, polaco e português. (4) Em Lumen Gentium 30: "Os pastores sabem ... que a sua função eminente é alimentar os fiéis e reconhecer os seus serviços e carismas de tal forma que todos, à sua maneira, cooperem unanimemente no trabalho comum. No Presbyterorum Ordinis 9: "Examinando os espíritos para ver se são de Deus, deixai-os descobrir com sentido de fé os múltiplos carismas dos leigos, tanto os humildes como os superiores; reconhecendo-os com alegria e fomentando-os com diligência". Em Pastores Dabo Vobis 40: "... a Igreja ... cumpre a sua missão quando guia cada um dos fiéis a descobrir e viver a sua própria vocação em liberdade e a realizá-la na caridade. ... Deus toca o coração de cada pessoa pelo seu chamado, e o Espírito, que habita no ser mais íntimo de cada discípulo (cf. 1 Jo 3,24), é infundido em cada cristão com diferentes carismas e manifestações particulares. Portanto, cada um deve ser ajudado a aceitar o dom que lhe foi dado em particular, como uma pessoa única e irrepetível, e a escutar as palavras que o Espírito de Deus lhe dirige". Também 74: "... o sacerdote é um membro do único corpo de Cristo (cf. Ef 4,16). Sensibilização para esta comunhão leva à necessidade de despertar e desenvolver a co-responsabilidade na missão comum e única da salvação, com uma apreciação diligente e cordial de todos os carismas e tarefas que o Espírito concede aos crentes para a edificação da Igreja". Em Christifidelis Laici 32: "... Dar frutos é um requisito essencial da vida cristã e eclesial. Quem não dá fruto não permanece em comunhão: "Todo o ramo em mim que não dá fruto, (meu Pai) corta-o" (Jo 15,2). A comunhão com Jesus, da qual deriva a comunhão dos cristãos uns com os outros, é uma condição absolutamente indispensável para dar fruto: "Sem mim nada podeis fazer" (Jo 15,5). E a comunhão com os outros é o fruto mais belo que os ramos podem dar: é o dom de Cristo e do seu Espírito. ... É sempre o único e o mesmo Espírito que convoca e une a Igreja e que a envia a pregar o Evangelho "até aos confins da terra" (Actos 1,8). Pela sua parte, a Igreja sabe que a comunhão que lhe foi dada como presente tem um destino universal. Desta forma, a Igreja sente está em dívida, em relação a toda a humanidade e a cada pessoa, com o dom recebido do Espírito que derrama no coração dos crentes a caridade de Jesus Cristo, uma força prodigiosa de coesão interna e, ao mesmo tempo, de expansão externa". Em Evagelium Gaudium 3: "Convido cada cristão, em qualquer lugar e situação em que se encontre, a renovar agora mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, a tentar fazê-lo implacavelmente todos os dias". No PC 33: "Com os olhos postos no mínimo, a comunidade paroquial evangeliza e se deixa evangelizar pelos pobres, redescobrindo assim a implicação social da proclamação em sem esquecer a 'regra suprema' da caridade, com base na qual seremos julgados". (5) E porque a Igreja está em Cristo como um sacramento, ou seja, um sinal e instrumento de união íntima com Deus e da unidade de toda a raça humana, ..." Lumen Gentium 1 (6) alguns: VOLUME 1, 284 e 378; VOLUME 2, 235, 484. (7) Rhaner, Karl Foundations of the Christian Faith p 122. (8) I Cor. 12, 3-7. (9) Catecismo da Igreja Católica 67, 91-95, 904.                (10) Sherry Weddell, ed., Becoming a Parish of Intentional Disciples (Huntington, Indiana: Our Sunday Visitor, 2015), pp. 77-79. Weddell tem dois outros livros que destilam a sabedoria de décadas de trabalho: Formando Discípulos Intencionais e Discipulado Frutífero. Recomendo vivamente estes livros. (11) Parênteses adicionados pelo Padre Miles. Ver também nota de rodapé 4, CP 33. (12) Uma linguagem "de dentro" refere-se à utilização de termos que pessoas de fora do grupo não compreenderiam facilmente. (13) Tugwell, Simon O.P. Ways of Imperfection: An Exploration of Christian Spirituality. Springfield: Templegate. 1985. Capítulo sobre os Pais do Deserto (14) tradução inglesa do latim "in vita missionarii invicem complentur et in unum coalescunt". (15) Os meus agradecimentos ao Padre James Swift, CM, antigo Visitador da Província do Centroeste dos EUA, por ter promovido esta edição. (16) CR XI, 12. *Artigo originalmente publicado por cmglobal.org, em língua espanhola. Livre tradução para o português brasileiro por Sacha Leite e Stephany Oliveira.
Pe. Rolando Gutiérrez Zúñiga, CM
Pe. Rolando Gutiérrez Zúñiga, CM Como revitalizar a nossa vida comunitária O ditado de Voltaire sobre a vida consagrada é bem conhecido: "Eles se juntam sem se conhecerem, vivem sem se amarem e morrem sem chorar". Embora o pensador francês se refira diretamente aos monges (1), a crítica subjacente faz alusão à sua percepção referente às comunidades de homens eclesiásticos. Será que esta máxima volteriana teria alguma verdade? À primeira vista, poderíamos ter a reação defensiva de sacudir o pó dos nossos pés diante de tal insulto, por parte de um crítico ferrenho da Igreja. No entanto, no contexto de uma Assembleia Geral, convida-nos a revitalizar a nossa identidade em todas as suas dimensões. Seria bastante oportuno avaliarmos a nossa dimensão comunitária (2) e colocar sobre a mesa se, poderíamos dizer que na Congregação da Missão vivemos realmente em um ambiente onde nós, coirmãos, temos "sincero afeto "como amigos que se querem bem"" (C.25). A fim de fazer uma abordagem saudável sobre este tema, devemos considerar a particularidade bem notada pelo Instrumentum Laboris relativamente à vida comunitária como um meio importante para a Congregação da Missão, mas não um fim em si mesmo, como pode ser interpretado na teologia da vida religiosa. Além disso, é desejável assinalar muito claramente o papel da comunidade nas Sociedades de Vida Apostólica e a sua distinção dos Institutos Religiosos: "Mesmo que os institutos religiosos se assemelhem à vida comum, existem elementos diferenciadores. A própria natureza da sua vida apostólica (mobilidade, dedicação...) faz com que a sua vida em comunidade tenha características particulares. Nos institutos religiosos, a vida fraterna é, acima de tudo, "a vitalidade da comunhão que funda a Igreja e, ao mesmo tempo, profetiza o que tende como seu objetivo final". Em uma Sociedade de Vida Apostólica, por outro lado, é a missão apostólica que exige a vida fraterna e determina a sua forma. Nos institutos religiosos, a vida fraterna em comum é mais rigorosa na medida em que menos se dedicam às obras do apostolado; nas Sociedades de vida apostólica, o inverso é verdadeiro. A vida comum é uma testemunha da nova vida, da nova fraternidade que é vivida na filiação divina, da vocação comum. No SVA, por outro lado, para enfatizar mais a unidade que deve reinar entre os apóstolos como participantes na mesma missão " (3). Desafios atuais da vida comunitária Sem foi mais fácil culpar os mortos. Digamos, então, que foram personalidades como Descartes (1596-1650), pai do racionalismo moderno, ou os empiristas ingleses como John Locke (1632-1704) e Francis Bacon (1561-1626), ou talvez qualquer um dos idealistas alemães (4), a quem poderíamos responsabilizar pelas desgraças de uma cultura cheia de individualismo, que cria pessoas incapazes de viver o estilo comunitário das sociedades de outrora, que tinham como modelo a organização camponesa, tão valorizada por São Vicente (5). De fato, sabemos que a setorização excessiva de certos aspectos do ser humano, como objetos de estudo nos quais se concentraram as ciências humanas, e mais tarde, as ciências exatas, gerou grande número de antropologias parciais, todas elas defensoras de certos princípios humanos, mas incapazes de compreender a pessoa em sua integralidade. Assim, originou-se um sentido cada vez mais parcial, mais individual da pessoa, um sujeito que parecia cada vez mais um objeto sem rosto, impactado pelos efeitos da Revolução Industrial, que começou na segunda metade do século XVII, e que levou à cultura do consumo e do descarte, a qual o capitalismo conseguiu coroar, sob o sistema da globalização. Assim sendo, embora em muitos círculos eclesiais tenham tentado promover uma antropologia mais personalista (que tem muitas coincidências com a antropologia cristã), precisamos reconhecer que nós, missionários da Congregação da Missão, aparecemos no cenário do século XXI com fortes traços de individualismo, muitas vezes protegidos por uma suposta novidade trazida pelo Concílio Vaticano II, no que se refere à mudança que tirou do centro a hierarquia como garantia de fidelidade vocacional e colocou as pessoas no seu lugar. E então, com tal invocação, as iniciativas missionárias mais nobres podem ser justificadas, bem como as mais absurdas contradições com a vocação daqueles que escolheram viver numa comunidade para uma missão. Um reflexo disto são os problemas de estabilidade de um número significativo de missionários, muitos dos quais culpam as circunstâncias comunitárias como a causa da de tais dificuldades. Por exemplo, entre 2010 e 2016, quarenta e três coirmãos deixaram a Congregação e foram incardinados numa diocese. O problema não é novo e foi salientado pelos mais de 600 padres (6) que deixaram a Congregação nos anos imediatamente após o Concílio Vaticano II. "Em 1985, o P. McCullen, Superior Geral, enviou um questionário aos visitadores e aos seus respectivos Conselhos Provinciais. Entre as questões, contavam-se as seguintes: Quais são as razões para deixar a Congregação da Missão e ir para uma diocese? As respostas que chegaram indicaram como principal motivo as dificuldades de exercício dos ministérios dentro da comunidade" (7). Mais de 35 anos depois, dizer que o grande desafio da revitalização da comunidade vicentina, está em esclarecer a identidade de nossa comunidade para a missão, sem nos acomodarmos a reducionismos, em nome de supostas atualizações, que deformam a vocação, ou falsas fidelidades ao nosso fundador, que parecem querer embalsamar uma múmia. Seria o caso de irmos à essência do nosso ser e nos interrogarmos sobre o significado de comunidade em uma sociedade apostólica como a nossa, entendida a partir de uma antropologia que nos humaniza, como faz Cristo nos Evangelhos, e ao mesmo tempo nos faz viver o autêntico sentido de koinonia, como acontece naqueles que decidiram segui-lo, como nos dizem os Atos dos Apóstolos (cf. Atos 2, 42-47). Portanto, a fim de aprofundar o desafio da vida comunitária, devemos ir à "mente, coração e estômago" (8) das pessoas chamadas a seguir Jesus Cristo, evangelizador dos pobres. Isto porque é na comunidade que se tornam evidentes as consistências vocacionais (9) que permitem uma vida plena de homens que se dedicam comunitariamente, à missão. Ou, pelo contrário, onde as inconsistências geram grupos de pessoas frustradas, com muito trabalho, talvez, mas vazios de vida, paixão e amor, como Voltaire acusa. Comunidade para a Missão  São Vicente soube definir o espírito comunitário da Pequena Companhia com especial genialidade no Capítulo VIII das Regras Comuns, onde parte da inspiração na comunidade apostólica, para descer a uma série de recomendações úteis para uma Sociedade que, naquela altura, contava apenas três décadas de caminhada (10). Mas desde muitos anos antes, Vicente era claro quanto à valorização da comunidade e, ao mesmo tempo, o primeiro destinatário da missão para a qual fomos chamados. A comunidade não deve ser apenas um apoio à missão, mas sim uma imagem da Trindade que evangeliza pelo seu modo de vida: "Gostaria de ver esta prática sagrada espalhada entre nós: ver tudo bem; dizer que na Igreja de Deus existe uma companhia que professa estar muito unida, nunca falar mal dos que estão ausentes, dizer da Missão que é uma comunidade que nunca encontra nada a criticar nos seus irmãos. A verdade é que eu apreciaria isto mais do que todas as missões, a pregação, as ocupações com os ordenados e todas as outras bênçãos que Deus deu à companhia, tanto mais que ficaríamos então mais impressionados com a imagem do Santíssima Trindade" (SVP. XI, 45-46) (11).  Cinco anos depois, numa carta a Stephen Blatiron, ele dá a sua bela perspectiva sobre a vida comunitária: não somos simplesmente vizinhos que vivem na mesma casa e são obrigados a partilhar certos espaços, somos uma família que constrói uma grande história missionária ao ritmo das nossas histórias pessoais, onde cada um de nós tem muito a contribuir para o projeto de Cristo de evangelizar os pobres e tornamo-nos complementares na missão: "Divina bondade, une desta forma também os corações desta pequena Companhia da Missão, e pergunta-lhe o que quiseres! A fadiga será doce e todo o trabalho será fácil, o forte aliviará o fraco e o fraco amará o forte e obterá maior força de Deus; e assim, Senhor, o teu trabalho será feito ao teu gosto e para a edificação da Igreja, e os trabalhadores multiplicar-se-ão, atraídos pelo cheiro de tanta caridade" (SVP. III, 234) (12). Esta bela teologia vicentina deve ser compreendida quando dizemos que somos uma comunidade para a missão, especialmente quando, no início do V Centenário da nossa história, nos encontramos na necessidade de revitalizar a nossa identidade. Formação permanente para a vida em comum Amedeo Cencini identifica três níveis que progressivamente produzem um itinerário de formação em comunhão fraterna, nomeadamente: o material, o afetivo e o espiritual (13). É um movimento ascendente em que um grupo começa por partilhar espaço e recursos materiais, continua com a partilha afetiva entre eles, para concluir com a partilha da espiritualidade que identifica o projeto de vida mais profundo das pessoas. No dia em que tomámos a decisão de entrar numa casa de formação, assumimos um novo modo de vida. O nosso tempo e espaço pessoal foram invadidos por outros assuntos que partilham o mesmo ideal: seguir Cristo, evangelizador dos pobres. Esta chamada faz-nos olhar para além da cultura materialista que nos propõe como ideal de vida a metáfora consumista de um centro comercial. Este é o além que São Vicente exige como parte das condições para um missionário: "ninguém deve usar nada como se fosse seu" (RC III,5). Certamente, a Congregação da Missão tem o seu próprio Estatuto sobre o seu voto de pobreza, com importantes diferenças no que diz respeito a possibilidades que não se encontram na vida religiosa, no entanto, para além dos mínimos jurídicos que poderíamos defender com direito próprio, há uma necessidade profunda para aqueles que foram chamados à missão vicentina: "não é bom que um homem esteja só" (Gn 2,18), e o missionário não é um homem que permanece num estado de singeleza, mas que abraçou um casamento com uma missão que é vivida em comunidade. É por isso que somos obrigados a partilhar a vida quotidiana numa casa comum, onde as refeições, a recreação, os frutos do nosso trabalho, as finanças, as limitações, e todo o resto são compartilhados. Quando nos abstemos deste primeiro nível, coberto por mil e uma justificações, acabamos por nos fazer concessões incompatíveis com a nossa vocação e que podem facilmente levar-nos a cair numa inclinação escorregadia que nos leva a duplos, mediocridade e frustração e por vezes até escândalos dolorosos. O segundo nível é bem identificado pela expressão de Vicente: "como amigos que se querem bem" (RC VII, 2). De fato, o estilo de vida comunitário da Congregação da Missão não é apenas um meio que torna a missão possível, mas também, em grande medida, é o suporte da vida do missionário, tão vivo nos seus afetos como qualquer outro mortal, tão necessitado de dar e receber afeto que, se não levar uma vida familiar em sua comunidade, ele o fará fora dela. Aqueles de nós que são chamados à castidade não são homens livres de compromisso, pelo contrário, pertencemos a Deus, e este sentimento de pertença é manifestado em uma vida comunitária alegre, onde o tempo é partilhado, o descanso é partilhado, a vida é celebrada, momentos de dor são sofridos com os coirmãos, e passamos a amar-nos realmente uns aos outros. Na experiência de acompanhar muitos jovens em seu discernimento vocacional, é muito significativo que esta seja uma das razões que mais fortemente atraiam as vocações ou as afastem. No século XXI, ninguém está disposto a levar uma vida de heroísmo missionário pago com o preço da solidão, em uma instituição fria e dividida. Essa é uma mentira que hoje está em evidência, mas, de fato sempre foi uma questão controversa. Se os níveis material e afetivo forem assimilados de forma correta, sem dúvida o terceiro nível não será entendido como uma questão de simples partilha dos tempos de oração. "Podemos dizer que uma comunidade reza de verdade quando, em sua oração, cada um traz os outros perante Deus. E quando, para além disso, se deixa conduzir por ele perante o Pai comum. Não é simplesmente rezar juntos... mas sim fazermos com que as outras pessoas participem no nosso relacionamento com Deus de forma a perceberem, claramente, que formam parte desta relação. Eu não o amo só porque amo a Deus, mas sim porque ele faz parte da minha relação pessoal com Deus: eu amo o outro em Deus." (14). Em conclusão, a vocação para seguir Jesus Cristo, evangelizador dos pobres, não pode ser lida de um ponto de vista individualista, a ponto de reduzir a força missionária da Pequena Companhia. No entanto, a realidade de uma comunidade para a missão, só será um ideal se não formos capazes de construir itinerários de formação permanente que começam com o material para nos levar a ser não apenas companheiros de trabalho mas amigos que se querem bem, finalmente, irmãos e irmãs de uma família que proclama o Deus dos pobres com a pregação do seu modo de vida, caracterizado pelas práticas que o Instrumentum Laboris recolheu, com base nos números 19 a 27 das nossas constituições: trabalho em equipe, serviço de autoridade, projetos comunitários, diálogo e comunicação, discernimento comunitário, testemunho, sobriedade da vida comunitária, valorização da corresponsabilidade, correção fraterna, vida de oração e espaços de intimidade comunitária. Há quatro séculos que esta tem sido a vida da Congregação da Missão. Missionários são lembrados, com devoção, em muitas partes do mundo. Tantas belas histórias de companheiros no caminho que só conhecem "o Pai que se vê em segredo" (Mt 6, 6). Mas nós somos testemunhas, e portanto, "o que vimos e ouvimos é o que proclamamos" (1Jo 6,6). Portanto, sem medo, podemos dizer: Voltaire estava errado! Notas  (1) No francês original a frase completa diz: "A vida monástica, seja o que for que se diga, não é nada invejável. É uma máxima conhecida que monges são pessoas que se reúnem sem se conhecer, vivem sem amar e morrem sem se arrepender. "VOLTAIRE. O homem das quarenta coroas. Versão PDF. (2) A terceira das três dimensões que sustentam a nossa identidade: misticismo (chamado "espiritualidade" pelo Instrumentum Laboris), missão (com o Instrumentum Laboris), missão (com o Instrumentum Laboris), e finalmente comunidade, que caracteriza o nosso "modo de vida", que é o tema deste artigo. (3) BAHILLO RUÍZ, Teodoro. Significado das Sociedades de Vida Apostólica na Igreja. Publicado em O Vicencianismo e a Vida Consagrada. 39ª Semana de Estudos Vicentinos. Editorial CEME. Salamanca 2015. pp. 122-123. (4) Immanuel Kant (1724-1804), Friedrich Schelling (1775-1854), Johann Gottlieb Fichte (1762 -1814) entre outros. (5) "É entre eles, entre estas pobres pessoas, que a verdadeira religião, a fé viva, é preservada; eles acreditam simplesmente, sem se intrometerem; submissão às ordens, paciência nas misérias, que devem ser sofridas, enquanto Deus quiser, uns por guerras, outros por labuta o dia todo sob o sol ardente; pobres vinhateiros, que nos dão o seu trabalho; que esperam que rezemos por eles, enquanto eles labutam para nos alimentar" (SVP. XI, 120). (6) "Entre 1968 e 1986, 632 padres, 42 irmãos e 205 estudantes deixaram a Congregação de forma legal. Ilegalmente, 199 à esquerda, dos quais 5 são irmãos". PEREZ FLORES, Miguel. Veste-te com o Espírito de Cristo. Expressão da Identidade Vicentina. Editorial CEME. Salamanca 1996. p. 404. (7) PEREZ FLORES, Miguel. Revestirse of the Spirit of Christ. p. 405. (8) "Cabeça, coração e estômago são as três faculdades da alma a que outros chamam inteligência, sentimento e vontade. Pensa-se com a cabeça, sente-se com o coração e quer-se com o estômago. Isto é evidente"! UNAMUNO, Miguel. Niebla. Capítulo XXIV. Versão PDF. (9) "Entre a dialéctica que parece ser fundamental numa antropologia psico-social da vocação, há as que foram definidas como consistências ou inconsistências. Como veremos a seguir, são constituídos ou pelo acordo (consistências) ou pela oposição (inconsistências) entre o eu ideal e o eu real para um aspecto específico da pessoa". RULLA, Luigi M. - IMODA, Franco - RIDICK, Jocie. Antropologia da Vocação Cristã. Confirmações Existenciais. Sociedade de Educadores de Atenas. Salamanca 1994. p. 26 (10) Apesar de as Regras Comuns terem sido transmitidas pelo fundador em 1658, sabemos pela descoberta do Codex Sarzana encontrado pelo Pe. Codex Sarzana encontrado pelo Padre Angelo Coppo que publicou o seu estudo em 1957 (La prima stesura delle Regole e Constituzioni della Congregatione della Missione) que, pelo menos já em 1653, a primeira estrutura das Regras Comuns na mente de São Vicente, já incluía o tema da comunidade sob o título: "De mutua nostrorum conversatione". (11) Conferência de 27 de Junho de 1642, sobre a união entre as casas da Companhia. (12) Carta a Stephen Blatiron, Superior de Génova. Datado de 13 de Dezembro de 1647 (13) Cf. CENCINI, Amedeo. Vida Fraterna. Desafio e Maravilha. Vida Fraterna e Nova Evangelização. Edições Ediciones Sígueme. Salamanca 2011. pp. 219-261. (14) CENCINI, Amedeo. La Vida Fraterna. p. 241. *Artigo originalmente publicado por cmglobal.org, em língua espanhola. Livre tradução para o português brasileiro por Sacha Leite e Stephany Oliveira.
Pe. Lauro Palú, CM
Pe. Lauro Palú, CM O centenário de Paulo Freire I – O centenário de Paulo Freire Paulo Freire nasceu em Recife, Pernambuco, dia 19 de setembro de 1921. E faleceu em São Paulo, Capital, dia 2 de maio de 1997. Formou-se em Direito mas ampliou sua cultura, especialmente com os trabalhos de educação popular. Escreveu muitos livros, deu muitos cursos, publicou séries de documentários sobre as obras de educação que realizou em vários países da América Latina e da África.  Sua obra mais conhecida é Pedagogia do Oprimido. Tal livro foi proibido pelos governos militares, até que perceberam que a proibição tinha sido a melhor propaganda: alguém explicitou o pensamento assim: “Podem vender, expor à vontade. Esse livro é mais perigoso sendo proibido, copiado à mão, circulando em cópias mimeografadas (que foi como eu o li, em 1968), etc., é mais perigoso do que em pilhas de exemplares expostos numa livraria...” A prática mais conhecida de Paulo Freire é a educação libertadora. Seu método, que amadureceu e aperfeiçoou-se na educação de adultos, visa ajudar o adulto a ser sujeito do aprendizado que faz, na vida e na escola. Quando o Papa São João Paulo II foi baleado, na primeira tomada de consciência que teve, quando despertava de uma anestesia e ouviu os médicos cochichando o que fazer com ele, disse aos doutores “Quero ser, preciso ser sujeito de minha doença ou de minha enfermidade, e não objeto da medicina dos senhores”. E eu, quando terminei meus períodos de Assistente Geral em Roma, falei com o Visitador, que estava pensando no que fazer comigo: Quero ser sujeito de minha obediência e não objeto de sua autoridade... Para isso, o ensino deve começar da situação concreta de vida dos alunos adultos que estão no processo. Partir dos problemas que vivem, usando, sempre que possível, o vocabulário deles, mas tentando descobrir, desvelar, neutralizar as forças negativas que existem na maneira de encaminhar os assuntos, quando se faz o que ele caracterizou muito criticamente como educação bancária (o professor que sabe ensina ao analfabeto que não sabe: por isso, o professor pode “cobrar” nos exames o que ensinou e o aluno tem obrigação de saber...). Para interessar os Alunos, engajá-los no aprendizado, partia-se da experiência deles, que é original, diversa da dos Professores e dos Colegas. Usa-se a linguagem deles, com o que revela de sua personalidade.  Começando no Instituto Bom Jesus, em Aparecida, em 1969, fui tentando realizar o que lia, o que conversava com os outros professores, especialmente do nosso Colégio São Vicente, onde se estudava e discutia Paulo Freire habitualmente, no processo de educação de adultos, no curso Supletivo. Com outros formadores da Província, participei algumas vezes, de encontros, seminários, etc., sobre educação libertadora. Quando fui nomeado diretor do Colégio, participava dos encontros semanais e animei um grupo de professores que lia e discutia Paulo Freire.   II – A formação no Colégio São Vicente Um dos cuidados a tomar, quando se trabalham as intuições e as riquezas do método de Paulo Freire é a coerência entre o discurso e a prática. Uma vez aprendidas certas palavras, com o que significam no quefazer de cada dia, é preciso evitar que se usem as palavras por serem bonitas, vistosas, respeitadoras, estimuladoras. A consciência crítica vá aos poucos modificando os enfoques, levando a tratar sempre de modo muito adulto as pessoas, em suas necessidades e suas reações. A maior alegria dos educadores é ver aos poucos o surgimento da individualidade, a afirmação da identidade de cada um.  Como exemplo, se na primeira reunião dos Alunos novos do Supletivo de cada ano, ao perguntarmos quem era paraíba, nordestino, levantavam-se muitas mãos. Alguns meses depois, ao perguntarmos quem é paraíba, aparecia um ou outro, assim mesmo, dizendo: “não sou paraíba, sou paraibano”. Outros vão dizer: Sou de Alagoas, do Maranhão, de Sergipe. É inestimável essa riqueza da consciência do ser indivíduo e ter uma identidade. É nessas condições que começam a trazer suas ideias próprias, suas sugestões para as festas, a proposta de temas e problemas para o trabalho de cada dia. Nos Conselhos de Classe, os Representantes de Turmas são muito criteriosos e tentam ser absolutamente fiéis ao que a Turma falou, apresenta, reivindica, sugere, reclama, etc.  Como colégio católico, mantido por Padres e Irmãos vicentinos, é natural, de se esperar, que as práticas partam de uma inspiração já conhecida nos quatro séculos de história da Congregação fundada por são Vicente de Paulo. O caráter profético do agente pastoral vicentino nos leva a denunciar o que vai contra os desígnios de Deus, a anunciar as transformações que o Espírito Santo suscita nos que agem evangelicamente. E é o momento das ações transformadoras: Não sou paraíba, sou paraibano. A pedra de toque no trato com as pessoas se concretiza numa frase lapidar de São Vicente: Os Pobres são nossos mestres, nossos senhores. Não temos que rebaixar-nos para pôr-nos ao nível deles; pelo contrário, temos que subir para estar onde estão os Pobres, na sua eminente dignidade na Igreja, segundo a bela expressão que Jacques-Benigne Bossuet aprendeu nas conferências das terças-feiras animadas por São Vicente. Isto deve ser algo absolutamente adulto, livre de demagogias, mas fruto da fé. E assim entra em cena a transformação do processo educativo, à luz da missão. Resumindo essa missão, em palavras imensas, podemos dizer que a) o Professor trabalha com conteúdos; b) o Educador trabalha com atitudes e c) o Formador trabalha com valores, aprontando o campo para que d) o AGENTE PASTORAL TRABALHE PELO REINO DE DEUS. Algumas práticas se tornam necessárias:  À luz da dignidade dos Pobres, não podemos nunca pensar que a educação se faz impondo-se limites. Mas, ao contrário, de fato estamos educando quando toda a prática docente for conscientemente o esforço de estimular o crescimento das pessoas, em vez de lhes impor limites, seja do tipo que for.  Estes são alguns exemplos do que fica sendo a educação nas linhas sugeridas por Paulo Freire e cultivadas no espírito vicentino. Outras práticas são o falar com as pessoas, o diálogo, com o respeito absoluto ao direito de falar e expor-se, tratando-nos construtivamente. As Campanhas da Fraternidade cada ano fornecem um tema muito rico que deve desdobrar-se em conteúdos e práticas em cada disciplina.   III – Linhas vicentinas na formação dos Nossos As linhas de formação numa comunidade educativa, num seminário, foram explicitadas assim, as atitudes dos Formadores e de cada um: estima pessoal (não se trata de ser amigo de todo mundo, mas de ser amigo de cada  um), presença amiga (trata-se de estar presente junto às pessoas, com amizade, afeição, bem querer, não de estar junto aos outros como vigia, como controlador) e confiança absoluta entre todos nós (lembrando-nos de que a confiança somos nós que oferecemos, não são os outros que conquistam ou merecem).  As qualidades exigidas de cada um, quer já as tivessem, quer fossem ajudados a adquiri-las progressivamente, eram responsabilidade, liderança, bom senso, iniciativa, lealdade, abertura de coração. O processo formativo tinha duas instâncias independentes, mas fortemente correlacionadas de a) orientação de todo o grupo, nas meditações diárias, nas homilias, nas reuniões semanais para preparar os conteúdos das liturgias dominicais e os assuntos gerais, como a fé, a vocação, a sexualidade, a amizade, etc., e b) o trabalho particular, o atendimento de cada seminarista, nos encontros pessoais de formação. A dinâmica das reuniões comunitárias era fortemente ajudada por algumas técnicas, como falar com os colegas, em vez de falar dos colegas, o falar levando em conta o que os colegas acabaram de falar. Também o esforço para buscar o consenso, nos nossos interesses comunitários, sem nos permitirmos decidir as coisas por maioria de votos... A responsabilidade de cada um, na medida do seu crescimento, aparecia no modo de pedir as licenças: “posso ir à Rodoviária?” Sempre achei que não deveria tratar um adulto nessa base, se pode ou não pode fazer isso ou aquilo. Nosso esforço era o fato de o Seminarista ver o que tinha de fazer e me avisar ou avisar à Comunidade: “Estou indo à Rodoviária”. Muitas destas frases estão com os verbos no passado, porque estão datadas, dos anos que vivi em Aparecida, no Instituto Bom Jesus (1969-1976), e depois no Rio de Janeiro, como Diretor do Colégio São Vicente (1980-1986; 1999-2013). Sintetizando estas ideias, sei que as expressões e as intuições de Paulo Freire nos ajudaram imensamente, na medida em que passaram a fazer parte do nosso comportamento pessoal e comunitário. Por exemplo, passei uns vinte e tantos anos tentando evitar uma frase assim: você deve estudar ou você tem que estudar. Isso nunca adiantou a ninguém, penso que nunca moveu ninguém. Mas, se digo a meu filho: “Rapaz, você é inteligente, já provou que dá conta das coisas no estudo. Você não se sente bem quando consegue fazer uma coisa com empenho, esforço e bons resultados? Não gostaria de fazer isso mais vezes? E se eu ajudar, não topa se esforçar nessa linha?” Não me limitei a censurar e criticar o rapaz por não estudar. Lembrei que tem as condições. Recordei as experiências de realização que já viveu. E o desafiei a repetir essas experiências realizadoras mais vezes. E, especialmente, propus-me ajudá-lo para que consiga. Em vez de 3 ou 4 palavras, desenvolvi um processo de tomar consciência de suas capacidades, de lembrar que já fizemos coisas boas, e, sobretudo, ofereci a ajuda do adulto que estimule esse comportamento. Usei 40 palavras e ativei meu coração de educador, desafiando o adolescente a ser alguém. Isso é um resumo do modo de ser e educar que nos deixou Paulo Freire. Mas não foi só a frase que ficou     maior: agora se vê que instauramos um processo que nos levará aos bons resultados esperados e necessários, se formos coerentes, lúcidos, corajosos em nossa missão. *Publicado orginalmente no Informativo São Vicente ed. 315
Pe. Eli Chaves, CM
Pe. Eli Chaves, CM 35 anos do martírio do Pe. Josimo Tavares Já se passaram 35 anos do assassinato do Pe. Josimo Morais Tavares, no dia 10 de maio de 1986, em Imperatriz (PA), a mando de fazendeiros da região do Bico do Papagaio (no atual estado de Tocantins) por sua defesa dos trabalhadores rurais. Muita gente hoje não se lembra e nem sabe quem é este nosso irmão, de coração vicentino apaixonado por Cristo nos pobres, autêntico mártir da caminhada de amor e serviço aos mais pobres.  Tive a honra e a alegria de conviver com o Pe. Josimo como amigo e colega de estudos durante 10 anos em nossos seminários. Josimo, natural de Marabá (PA), seminarista da então Prelazia de Tocantinópolis (TO), estudou, de 1969 a 1971, no Seminário de Brasília, que era dirigido pelos lazaristas; de 1972 a 1978, residiu nos seminários vicentinos de Aparecida e de Petrópolis, por ocasião dos estudos de Filosofia e Teologia. Durante sua caminhada formativa, pobre e simples, inteligente e focado no ideal, Josimo deixou-se tocar, a exemplo de São Vicente, pelo amor compassivo de Cristo pelos mais necessitados. Ordenado padre, dedicou seus curtos, intensos e fecundos 7 anos e 4 meses de sacerdócio ao serviço dos lavradores, nas paróquias de Wanderlândia e de São Sebastião do Tocantins e como coordenador da Comissão Pastoral da Terra no Bico do Papagaio. Foi preso, sofreu ameaças, calúnias e atentado e foi covardemente assassinado por causa de sua firme atuação junto aos oprimidos na luta pela terra. É hoje um testemunho vivo de quem, a partir do amor de Cristo, nos chama a sair em direção aos pobres das periferias sofridas.  A memória viva do Pe. Josimo, aquele padre negro, de sandálias surradas, incansável na luta contra as cercas do latifúndio e cheio de santa e profética indignação contra a injustiça e a violência, nos convida, nos anima e nos convoca a assumir a opção evangélica pelos pobres, hoje lamentavelmente esquecida ou contestada por tanta gente na sociedade e na Igreja. O testemunho de fé, coragem e ousadia do serviço profético deixado pelo Pe. Josimo desperte-nos e anime-nos a caminhar com os mais necessitados na construção de um mundo sem as cercas da exclusão, mas todo irmanado na fraternidade, na justiça e no amor!
Pe. Wander ferreira, CM
Pe. Wander ferreira, CM O impacto da Fratelli Tutti na formação dos nossos missionários A encíclica “Fratelli Tutti”, do Papa Francisco, é um verdadeiro apelo profético para a sociedade mundial não perder de vista os valores que mais nos aproximam: a sensibilidade, a fraternidade e o amor mútuo, nesses tempos, em que inúmeros fatores provocam divisões. Segundo o Papa, vivemos num mundo altamente seletivo e excludente, onde “as pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar e cuidar, especialmente se são pobres, deficientes e idosos” (FT, 18). O que impera no mundo é uma mentalidade de mercado, em que explorar, descartar e até matar vidas humanas, em vista do lucro obsessivo, é um fato sem o mínimo de pudor ou escrúpulos. Como consequência disso, em muitas localidades, há rastros de guerras, de atentados, de conflitos raciais e religiosos que não só afrontam a dignidade humana, mas também são motivados por ideias homofóbicas e por políticas narcisistas. Em muitas partes do mundo, o relacionamento e a convivência com o outro está totalmente ameaçado, pois uma cultura do medo e da desconfiança é disseminada na sociedade. Assim, “reaparece a tentação de fazer uma cultura dos muros, de erguer muros, muros no coração, muros na terra, para impedir este encontro com outras culturas, com outras pessoas” (FT, 27). É duro dizer que, em muitos casos, esses muros criam uma separação tão radical, que, dificilmente, será desfeita. Contra tal mentalidade, o Papa afirma que a busca do fechamento e do isolamento não é caminho para uma vida autêntica e, ao mesmo tempo, não nos faz voltar à esperança: é pura ilusão e falsa segurança. O que real- mente nos traz esperança e nos humaniza é a proximidade e a cultura do encontro: “porque uma coisa é sentir-se obrigado a viver junto, outra coisa é apreciar a riqueza e a beleza das sementes de vida em comum que devem ser procuradas e cultivadas em conjunto” (FT, 31). Neste sentido, o Papa afirma que a pandemia que atualmente atinge praticamente o mundo inteiro nos permitiu reconhecer e valo- rizar muitas pessoas que, em suas lutas diárias, deram suas vidas para salvar muitas vidas. São vários os profissionais e os religiosos que “compreenderam que ninguém se salva sozinho” (FT, 54). O ser humano, em seu processo de desenvolvimento, de realização e de plenitude, está num sincero encontro consigo mesmo e com os outros. Por outro lado, uma autêntica comunicação consigo mesmo só será possível a partir do momento em que houver comunicação com os outros. É muito positiva e saudável a relação mais ampla, que vai além da família e de pequenos grupos, pois, além de nos enriquecer culturalmente, permite que nos conheçamos melhor e nos projetemos. “...o amor cria vínculos e amplia a existência, quando arranca a pessoa de si mesma para o outro.” “A hospitalidade é uma maneira concreta de não se privar desse desafio e desse dom que é o encontro com a humanidade mais além do próprio grupo” (FT, 88/90). Só poderemos acolher quem é diferente de nós a partir do momento em que nos sentirmos seguros e convictos das nossas raízes culturais. O amor, a terra natal e a cultura de origem são elementos fundamentais para um encontro sadio e fecundo. Esta ideia, o Papa fundamenta dizendo que: “não me encontro com o outro se não possuo um substrato no qual estou firme e enraizado, pois é a partir dele que posso acolher o dom do outro e oferecer-lhe algo de autêntico” (FT, 143). Progredindo no objetivo fundamental da encíclica, o Papa aborda uma dimensão fundamental do ser humano, o diálogo. Segundo o pensamento do Sumo Pontífice a respeito do diálogo, “não é necessário dizer para que serve; é suficiente pensar como seria o mundo sem o diálogo paciente de tantas pessoas generosas, que mantiveram unidas famílias e comunidades” (FT, 198). A autenticidade do diálogo está, sobretudo, em se respeitar o ponto de vista do semelhante, possibilitando maior abertura e a inclusão de convicções e interesses legítimos. O diálogo permite que sejamos fiéis aos nossos princípios e, ao mesmo tempo, que também o outro se mantenha fiel aos seus propósitos. Nesse contexto, o exercício do diálogo exige muita maturidade. Que seja sempre sustentado e apoiado por boas intenções, defensoras de verdades básicas, que garantam uma boa convivência e o esforço de se colocar em prática a amabilidade, característica e responsável por uma verdadeira fraternidade. Fratelli Tutti, percebemos que a encíclica não só reforça e atualiza o nosso carisma, mas também nos convida ser ousados no serviço aos nossos “Senhores e Mestres”, os pobres. Eles são, como disse o Papa, descartados, por causa dos interesses comerciais e econômicos; concomitante- mente, são o motivo da nossa existência. Nunca é demais revermos, contemplarmos e atualizarmos o fim ou o objetivo primeiro de nossa Congregação no mundo: “...seguir Jesus Cristo evangelizador dos pobres” (CC, 1). Portanto, devemos sentir-nos motivados e provocados a não per- dermos de vista o que é fundamental e essencial em nosso ser missionário: servir aos pobres. Por mais que tenhamos habilidades para outras realidades importantes na Igreja, como a formação do clero, a formação dos leigos, a direção espiritual, entre outras, o que realmente nos define como missionários da CM é o serviço aos pobres. "Ora, trabalhar na salvação dos pobres habitantes do campo é o principal de nossa vocação e tudo mais é apenas acessório” (Coste XI, 137). No percurso da história da humanidade, os pobres sempre foram descartados, privados de pertencerem à história e de fazerem história. Foram taxados de lixo social, estorvo e de repugnantes. São Vicente só conseguiu enxergar os pobres estando no meio deles. Enquanto esteve nos palácios, envolvido com os nobres, a iluminação carismática não lhe foi dada. Mas, convivendo com os pobres, em suas dores e em suas alegrias, não só recebeu do Senhor o Carisma da CM, mas também passou a transitar nos palácios e no meio dos nobres como servidor dos pobres. Aqui, muda-se todo o enfoque de interesses e de percepção da Igreja, na vida de São Vicente. Ele dirá: “Mas não se encontra na Igreja de Deus Companhia alguma que tenha por partilha os pobres e se dê, totalmente, aos pobres, a ponto de não pregar nunca nas grandes cidades. É disso que fazem profissão os missionários. Têm isso de particular, ser, como Jesus Cristo, aplicados ao serviço dos pobres” (Coste XII,81-82). No processo formativo, além de nos empenharmos em deixar bem claro aos nossos seminaristas o carisma da Congregação, estamos insistindo muito no cultivo das relações interpessoais. No mundo de hoje, é inviável um missionário que, além de ter dificuldades de conviver com seus coirmãos, não consiga se aproximar dos pobres e interagir com eles. Pode-se dizer que passou o tempo todo da formação fechando-se em si mesmo e, não sendo confrontado, enveredou-se neste contra-valor e se tornou um problema. Uma coisa é ser tímido, outra coisa é ser fecha- do. Na Fratelli Tutti, o Papa Francisco nos dá dicas muito importantes sobre essa cultura do encontro, da proximidade e do diálogo. Deste modo, não basta aos nossos seminaristas se sentirem bem em nossas casas e terem uma boa bagagem intelectual, se não abrirem a mente e o co- ração para uma sincera convivência e um salutar relacionamento com o semelhante. Seu ministério, certamente, estará comprometido. Este requisito da dimensão humana é fundamental; caso contrário, todas as outras dimensões da formação ficarão comprometidas. São Vicente, ao escrever a primeira regra da Congregação, expôs os atos de caridade em relação ao próximo que jamais poderemos perder de vista. São eles: “1. Fazer aos outros o que razoavelmente gostaríamos que eles nos fizessem; 2. acatar suas opiniões e aprová-las diante do Senhor; 3. antecipar-nos em demonstrações de cortesia e respeito; 4. aceitar-nos mutuamente sem murmurar; 5. alegrar-nos com os que se alegram; 6. chorar com os que choram; 7. mostrar-nos amáveis e atenciosos para com os outros; 8. enfim, fazer-nos tudo para todos para ganhar todos para Cristo” (RC II, 12). Por fim, uma grande riqueza presente em nossas casas de formação, que não podemos perder de vista, são as raízes culturais. Cada seminarista que chega a nossas casas de formação traz uma bagagem cultural riquíssima que enobrece e dinamiza muito a nossa realidade. Deve- mos fomentá-los e incentivá-los a terem orgulho e a não perderem jamais o que é específico de suas origens. Como dizem nossas diretrizes, nosso processo formativo é “existencial e progressivo: leva em conta a história e a situação concreta das pessoas, respeita as diferentes idades, as etapas e a caminhada de cada um” (PFPBCM, P. 10).   Artigo originalmente publicado no Informativo São Vicente ed. 314
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