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“Quando passam pelo vale da aridez, o transformam numa fonte borbulhante” 08 de Julho de 2020 Uma interpretação deste período de pandemia à luz do Salmo 83{84}. Pe. Louis Francescon Costa Ferreira, CM
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Preliminares

Com a pandemia da COVID-19, o mundo está vivendo um ano atípico, mas não inédito [2]. Inúmeras são as pessoas infectadas, somando um milhão de casos confirmados; é assustador o número de óbitos diários, totalizando cerca de sessenta mil; escancara-se a precariedade do sistema de saúde, intensificam-se a crises políticas etc. No Brasil, desde meados de março, fez-se necessárias medidas preventivas, segundo as orientações do Ministério da Saúde, Organização Mundial da Saúde (OMS) e outros órgãos responsáveis, a fim de conter a proliferação do novo corona vírus. Tal medida atingiu comércios, escolas e também as Igrejas. A aglomeração de pessoas é arriscada, neste tempo de pandemia. Infelizmente, catequeses, encontros paroquiais semanais, celebrações, grandes festas tradicionais entre outras atividades que dinamizam a vida das Paróquias, Santuários, Curatos, foram canceladas e/ou adiadas, como medidas de prevenção. Muitas celebrações eucarísticas têm sido transmitidas, por meio de Facebook, Instagram, canais televisivos, rádio (o que já acontecia, porém de modo mais intenso). Ousamos dizer que esses meios são os únicos, por ora, como acesso à missa, adoração eucarística, terço etc. Em algumas cidades, interiores e capitais, celebram-na com um número restrito de pessoas, porém crianças e idosos, considerados “grupos de risco”, recebem a orientação de permanecer em casa. Todo este contexto tem causado uma saudade de nossa dinâmica eclesial. Certamente, muitos párocos e paroquianos, ao longo destes meses de quarentena, ouvem as queixas: “Padre, está muito ruim sem missa!”; “Como estou com saudade da Igreja!”; “Estou com saudade da missa!”; “Meu Deus, ficar sem ir à Igreja é muito ruim!”. Há aqueles mais ousados, os quais pedem para devolver-lhes a missa [3].

De fato, com esta pandemia, se revelam muitos problemas; basta acompanhar as notícias pelos jornais, telejornais e redes sociais. Vivendo este contexto inesperado, muitos padres, religiosos, até mesmo seminaristas têm utilizado as redes sociais para reunirem o povo em suas igrejas domésticas, compartilhando a Palavra de Deus com bastante criatividade. O povo de Deus não está abandonado por seus pastores: missas, terços marianos, conferências, lives têm sido meios possíveis de ouvir a voz de muitos que se preocupam com a vida de fé do santo povo de Deus. Isso revela a dimensão do cuidado, tanto do Ministério da Saúde quanto das Dioceses, Vicariatos, Curatos, Prelazias em optar pelo isolamento social, e, assim, manter as atividades previstas canceladas ou adiadas. Passamos por um momento, o qual não será eterno. Porém, em meio a tantas possibilidades de acesso à Palavra, para muitos fieis torna-se difícil expressar sua fé assim: sentir-se privado da Eucaristia, principalmente para os fieis de comunhão diária, causa angústia, infelicidade e preocupação. Isso revela algo que, para muitos, infelizmente constatamos tal realidade, ainda não estava bastante claro, por mais que haja um esforço em mostrar que ser cristão é colocar-se a serviço (cf. Jo 13): a importância de viver em comunidade de fé. Vemos que muitas pessoas, por pouco motivo, deixam a liderança e animação de suas comunidades. Ora, a pandemia também não interpela a fé cristã? Já nos demos conta que quando celebramos a Eucaristia, recebemos, na bênção final da missa [4], o envio para anunciar a fé que professamos a todas as nações (cf. Mt 28,19)? Quantas vezes já não cantamos a canção: “Agora que a missa termina, começa então nossa missão” [5]?

Nas nossas Igrejas e celebrações, buscamos a força necessária, quando recebemos os Sacramentos, para continuar a missão de Jesus Cristo, o qual nos imbui de seu poder para evangelizar (cf. Mt 10,1). Ser cristão é um modo de vida, ética que perpassa todas as dimensões do ser humano batizado. Reunidos em nossas comunidades eclesiais, buscamos a ortopráxis para bem viver a fé, dentro e fora do Templo. A história mostrou-nos que homens e mulheres de fé estiveram impossibilitados de receber a Eucaristia e, mesmo assim, não deixaram de estabelecer uma profunda comunhão com o corpo místico de Cristo. Damos um exemplo. A experiência do cárcere do Cardeal Van Thuan, o fez reinventar sua comunhão com Deus de forma mais profunda, mesmo experimentando as dores da prisão. Ele pôde contar-nos essa experiência, por meio da obra “Cinco pães e dois peixes: do sofrimento do cárcere um alegre testemunho de fé”. Sem deixar-se abalar, experimentou a dor na perspectiva da cruz, a qual apresenta também elementos de ressurreição. Quando os comunistas lhe transportaram para o norte, no navio Hâi-Phòhg, com outros 1.500 prisioneiros, o cardeal, ouvindo a voz de Deus (“Escolhe a mim!”), disse: “Sem dúvida, Senhor, aqui é minha catedral, aqui é o povo de Deus que tu me deste para cuidar. Devo assegurar a presença de Deus no meio desses irmãos desesperados, miseráveis. E tua vontade portanto é a minha escolha” [6]. A impossibilidade de comungar, por ora, não priva nenhum fiel de estar em comunhão com o corpo de Cristo e, muito menos, em comunhão com seus irmãos. Interessante o paradoxo que vivemos, atualmente! Por isso, o momento presente deve interpelar-nos na fé, e precisamos compreendê-lo na dinâmica e na autenticidade do mistério que professamos. Israel, “em meio às instabilidades deste mundo” [7], alcançou profunda maturidade espiritual. O homem que confia em Deus “não teme receber notícias más”, pois “confiando nele, seu coração está seguro” e guarda a paz (Sl 111{112},7; cf. Is 26,3). Tal convicção, também a vemos na tradição apostólica: “confiem a Deus todas as suas preocupações, pois é ele quem cuida de vocês” (1Pd 5,7).

Em meio a este “vale de aridez” (Sl 83{84},7), causada pela pandemia da COVID-19, é possível progredir na fé, dar um passo a frente; afinal, não avançar nas coisas de Deus é o mesmo que retroceder (cf. Hb 10,38-39). O momento precisa gerar nos cristãos sentimentos de esperança, importante elemento de nossa fé. O Tempo Pascal, que concluímos a pouco, nos leva a ressuscitar-nos com o Cristo, que venceu o poder da morte, possibilitando, a cada batizado, “vida nova no amor” [8]. Por isso, não é tempo de deixar que o medo e a angústia assolem o coração humano, mas tempo de tornar firme nossa convicção de seguidores de Jesus, discípulos-missionários da Boa Notícia, porque, em qualquer tempo e lugar, precisamos estar prontos a dar razão da nossa esperança a todo aquele que a pedir (cf. 1Pd 3,15). Tendo em vista os aspectos observados, peçamos a Deus que dê ao ser humano, a sabedoria e o discernimento necessários para vencer as dificuldades deste tempo de pandemia, repetindo como o salmista: “dai-me de novo um espírito decidido” (Sl 50{51},12b). Por meio deste texto, mostraremos, em um primeiro momento, a experiência do povo da Antiga Aliança, o qual, em meio à opressão, encontrou alternativas para seu crescimento humano e espiritual. De inúmeras interrogações, queixas e lamentos surgiram belíssimos testemunhos de fé. “Feliz quem põe em vós sua esperança” (Sl 83{84},13b) é a convicção do fiel que tem como horizonte o mistério de Deus, seu único Senhor e soberano, no qual deposita sua confiança, em uma relação de amor. Como inspiração, teremos o Salmo 83{84}. Observando o seu contexto, perceberemos que uma grande tribulação impediu que os judeus peregrinassem ao Templo para oferecer seus sacrifícios e realizar outras atividades inerentes a ele, ou seja, ficaram privados da participação de seu aparato religioso principal. Não foi possível celebrar o culto. Onde encontrar Deus, em meio ao caos? Onde ele está? “Esperávamos a paz, e não chegou nada de bom” (Jr 14,19) e “será que Deus se esqueceu de ter piedade?” (Sl 76{77},10) são questionamentos que demonstram a angústia humana e a experiência do silêncio de Deus. Ora, não nos esqueçamos que, em meio à tempestade (por que não em meio à pandemia?), Deus abriu a boca (cf. Jó 38). Em seguida, iremos apresentar luzes, motivações e dicas para que você construa o Salmo de sua vida, a fim de que sua fé não esmoreça, e, assim, fazer desta pandemia um momento de autoquestionamento, tanto pessoal quanto comunitário, e tomar consciência do nosso papel de cristãos batizados, imbuídos dos dons do Espírito Santo. Assim acreditamos que, ao retornar às Igrejas, voltaremos maduros na fé e poderemos “caminhar com um ardor sempre crescente” (Sl 83{84},8), agradecendo a bondade de Deus que não desampara o seu povo, mas o guarda qual pastor protege seu rebanho (cf. Jr 31,10).

 

1. Salmo 83{84}: saudades do Templo

 A fé judaica é feita de memórias. Nossa Eucaristia, hoje, é um memorial (“Fazei isto em memória de mim!”). Nessa perspectiva, recordar o passado pode iluminar o presente. Não se trata de um saudosismo ou de um simples exercício para nossa memória, mas da firme convicção que “até aqui nos socorreu o Senhor” (1Sm 7,12). Devido à ação de um império opressor, Israel voltou sua lente para o seu passado, a fim de compreender e dar respostas às angústias do momento presente. Tal a perspicácia e precisão de sua atitude que, ainda hoje, podemos colher os benefícios de sua inquietação interior: os textos sagrados nasceram para responder crises de fé. Ora, não estamos buscando compreender o “por quê” e o “para quê”, desta pandemia? Como iluminar o momento presente, à luz da fé que professamos?

 

1.1- “Felizes os que em vós têm sua força, e se decidem a partir quais peregrinos!” (Sl 83{84},6)

“Saudades do templo”! Esse é o título do Sl 83{84} que lemos no breviário [9]: subsídio litúrgico para a oração das Horas canônicas. Por meio deste ofício, rezamos os Salmos e Hinos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento [em Laudes e Vésperas, respectivamente]. Não temos a pretensão de fazer a exegese desse texto bíblico, mas apresentar brevemente seu contexto e sua mensagem, por meio de um simples método. O que ele tem a dizer para a vivência da fé? Quais elementos explícitos e implícitos da tradição judaica? É possível captar também elementos históricos? O povo da primitiva Aliança recebeu, por meio da opressão babilônica, a experiência do exílio. Houve, segundo dados bíblicos e históricos, duas deportações: ano de 597 e 587 a.C. [10]. Os babilônicos, liderados pelo Rei Nabucodonosor, fizeram cativos as lideranças religiosas, escribas, comerciantes e funcionários, os quais poderiam contribuir para o progresso de suas respectivas comunidades. “Levou para o exílio toda Jerusalém, todos os comandantes e todos os valentes do exército, cerca de dez mil deportados. Levou também todos os ferreiros e artesãos; deixou somente o povo pobre da terra” (2Rs 24,14). Com a destruição do Templo e com os magistrados cativos, Israel é tomada por uma profunda crise de fé [11]. Alguns questionamentos bem a demonstram: onde está Deus? Qual a consistência de suas promessas? Marduk derrotou Javé, e a consequência disso é o exílio? Vale a pena aprofundar a tradição dos pais? Tal desolação não está explícita no Sl 137{136}?

 1À beira dos canais de Babilônia nos sentamos, e choramos com saudades de Sião; 2nos salgueiros que ali estavam penduramos nossas harpas. 3Lá, os que nos exilaram pediam canções, nossos raptores queriam alegria: "Cantai-nos um canto de Sião!" 4Como poderíamos cantar um canto de Iahweh numa terra estrangeira? 5Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, que me seque a mão direita! 6Que me cole a língua ao paladar, caso eu não me lembre de ti, caso eu não eleve Jerusalém ao topo da minha alegria! 7Iahweh, relembra o dia de Jerusalém aos filhos de Edom, quando diziam: "Arrasai-a! Arrasai-a até os alicerces!" 8Ó devastadora filha de Babel, feliz quem devolver a ti o mal que nos fizeste! [12]  

Ora, como sair desta situação, sem permitir que a fé esmoreça? A crise não seria uma chance para a fé [13]? A palavra Χρ?σης (transl. Khrýs?s), em grego, significa “o momento do discernimento”. Dizer que alguém está em crise, significa dizer que está discernindo, buscando respostas e alternativas para solucionar um determinado problema, p. ex. Não seria este o pedido implícito no Sl 90{89},12 : “Ensinai-nos a contar os nossos dias e dai ao nosso coração sabedoria”? Israel se coloca em posição de autoquestionamento para encontrar respostas consistentes, fundamentando-se em toda a tradição dos pais, a fim de compreender o momento de opressão babilônica, sem colocar o poder de Deus em cheque, porque “jurou o Senhor e manterá sua palavra” (Sl 109{110},4); logo, Deus não falhou em suas promessas (cf. Nm 23,19; Ml 6,3a; Js 21,45; 23,14; 1Rs 8,56b; Sl 89{88},34; 145{144},13b} etc). O problema a ser solucionado é teológico, não político-institucional. Neste momento, Israel começa a redigir as hagiografias: textos que contam a realidade concreta do povo, pessoal e comunitária, bem como as maravilhas operadas por Javé. Por meio dos textos, escritos e lidos na perspectiva da fé, Israel pôde aprofundar e rever seus conceitos. Em meio a tantos escritos, foram redigidos os Salmos, os quais, mais tarde, comporão o que chamamos, hoje, o “Saltério” ou “Livro dos Salmos” [14]. Segundo a exegese bíblica, há, pelo menos, três gêneros literários dos Salmos: hino de louvor, lamento/súplica e ação de graças [15]. Ora, se com a destruição do Templo (casa da habitação de Javé: cf. Sl 26{25},8), tornou-se impossível realizar o culto e os sacrifícios, então, sem o aparato religioso, Deus habita nos louvores de Israel (cf. Sl 22,4). Por isso, a oração, na vida diária, ganha um significado profundo e místico. A história é lida, a partir da fé. Os acontecimentos históricos ganham nova chave de leitura e uma nova compreensão, sem deixar-se perder a tradição dos pais. O Livro dos Salmos “conservava a memória, pois lembrava os fatos importantes da história do povo, reforçava a identidade do povo como povo de Deus; criava nas pessoas sentimento de pertença ao povo de Deus” [16]. Pode haver momento tão fecundo, em âmbito religioso, quanto esse? Israel ouviu a voz da sabedoria: “Meu filho, não perca de vista a inteligência e conserve o discernimento” (Pr 3,21). Ao escrever, Israel redige sua história, guiada com a mão poderosa e o braço estendido do Senhor (cf. Sl 136,12; cf. Sl 126{125}).

 

1.2- “Minha alma desfalece de saudades e anseia pelos átrios do Senhor” (Sl 83{84},3)

Essa é a queixa do salmista, personificando a comunidade, a qual está impossibilitada de peregrinar ao Templo! Não é esta a realidade pela qual passamos, devido à pandemia da COVID-19? Já frisamos que a história se repete; por isso, o momento não é tão inédito. Se Israel superou a crise, então nós também não podemos? Não bebemos da mesma fonte que a tradição judaica? Não confiamos no mesmo Deus? O Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó não é também o Deus de Jesus Cristo? Segundo Hb 4,12, “a palavra de Deus é viva, eficaz”, portanto, sua verdade continua nos apresentado elementos para alimentar a fé e nos interpela a aprimorá-la em qualquer circunstância da vida. Repetimos: ser cristão é um modo de vida. No trabalho, no lazer, na família, na missa, em quarentena todo batizado precisa dar sinais que professa Jesus como “o Senhor” (Jo 21,7). Este é um dos Salmos que expressa a realidade dos judeus, ao recordar saudosamente do Templo [17]:

 

– Quão amável, ó Senhor, é vossa casa, *

quanto a amo, Senhor Deus do universo!

– Minha alma desfalece de saudades *

e anseia pelos átrios do Senhor!

– Meu coração e minha carne rejubilam

e exultam de alegria no Deus vivo!

= Mesmo o pardal encontra abrigo em vossa casa, †

e a andorinha aí prepara o seu ninho, *

para nele seus filhotes colocar:

– vossos altares, ó Senhor Deus do universo!

vossos altares, ó meu Rei e meu Senhor!

– Felizes os que habitam vossa casa; *

para sempre haverão de vos louvar!

– Felizes os que em vós têm sua força,

e se decidem a partir quais peregrinos!

= Quando passam pelo vale da aridez, †

o transformam numa fonte borbulhante,

pois a chuva o vestirá com suas bênçãos.

– Caminharão com ardor sempre crescente *

e hão de ver o Deus dos deuses em Sião.

– Deus do universo, escutai minha oração! *

Inclinai, Deus de Jacó, o vosso ouvido!

– Olhai, ó Deus, que sois a nossa proteção, *

vede a face do eleito, vosso Ungido!

– Na verdade, um só dia em vosso templo *

vale mais do que milhares fora dele!

– Prefiro estar no limiar de vossa casa, *

a hospedar-me na mansão dos pecadores!

– O Senhor Deus é como um sol, é um escudo, *

e largamente distribui a graça e a glória.

– O Senhor nunca recusa bem algum *

àqueles que caminham na justiça.

–Ó Senhor, Deus poderoso do universo, *

feliz quem põe em vós sua esperança!

 

 

O Salmo encontra-se no Saltério Messiânico (Sl 3-89), dentro do Livro III (73-89), o qual podemos intitulá-lo de “transição de Governo”. Se o Livro II (42-72) mostra um programa de governo, então, aqui, vemos o fracasso da monarquia – por isso, o momento de transição. Um desdobramento deste fracasso é, justamente, a destruição do Templo pelo poder babilônico. Basta ler 2Rs 24 e perceber que também o rei foi levado para o cativeiro (consultar nota [10]). Ora, a idolatria denota uma infidelidade à Aliança (cf. Ex 32,1-6; Sl 81{80},9-14). Servir a outros deuses é um grande problema, pois gera a perda da identidade e descrença em um só Deus (cf. Dt 4,35; 6,4; 2Sm 7,22; Os 13,4b etc). “Eu os tomarei para mim como meu povo, e serei Deus para vocês” (Ex 6,7; cf. Jr 32,38). Infelizmente, Israel se deixou levar pela ideologia de povos vizinhos, cultuando outros deuses, não escutando a voz de Deus nas intervenções proféticas e sapienciais (cf. 2Rs 17,13). Se Deus é fiel, então cabe culpá-lo pela desgraça do exílio? As deportações ao cativeiro não seriam fruto de uma infidelidade à Aliança [18] e até mesmo ação de Javé, “Senhor Deus do Universo”, o qual fará ver “o Deus dos deuses em Sião” (Sl 83{84},8b)? Mais uma vez podemos recorrer à sapiência bíblica [19]: “Meu filho, não despreza a disciplina de Javé, nem se canse de suas advertências; porque Javé corrige aqueles a quem ele ama, como o pai corrige o filho preferido” (Pr 3,11-12). O Salmo 83{84} recorda a importância de uma fidelidade autêntica, tendo como horizonte a Lei de Javé, inscrita no coração, porque o homem justo, praticante da justiça, recita sabedoria e anuncia o direito (cf. Sl 37{36},29-31). A alma sedenta encontra Deus na oração pessoal e comunitária. Segundo Ez 10, a glória de Javé parou junto à porta oriental do Templo. Ora, o que se encontrava ao Oriente? O povo de Deus exilado! Deus é solidário com o seu povo que sofre. Qual mensagem podemos colher deste Salmo? Quais elementos podem alimentar a fé, neste contexto atípico? Para responder essas questões, aplicaremos o método proposto por Mesters [20].

  1. Qual situação levou o salmista a rezar? Como vimos, o Templo fora destruído, com a intervenção babilônica, a qual fizera cativos os magistrados de Israel. Sobrara, apenas, o povo pobre da terra, conforme 2Rs 24,14; a intenção, vem acompanhada de uma prece: “Deus do universo escutai minha oração! Inclinai, Deus de Jacó, o vosso ouvido”. Tal convicção leva o romeiro a encontrar sua proteção no Senhor dos Exércitos, e olhar para a face de cada um de seus eleitos, o povo que ele separou para si (v. 9-10). A situação é fatídica, mas de esperança na intervenção divina;
  2. Qual o objetivo do salmista? Recordar eventos históricos e encontrar neles a ação de Javé, em favor do seu povo. Mesmo que a alma desfaleça de saudades e anseie pelos átrios do Senhor, o coração e a carne precisam alegrar-se no Deus vivo (v. 2-3), porque da vitalidade divina brota toda a força que impulsiona o romeiro ir ao encontro de Javé (v. 5-6), em qualquer situação e lugar. Infidelidade e injustiça podem causa grandes danos (idolatria, p. ex.). A Lei expressa também o carinho de Deus com seus eleitos. Passar pelo vale da aridez não significa distanciar-se de Javé; mas, confiante em seu poder, transformar esta difícil situação “numa fonte borbulhante”, porque as bênçãos de Deus cairão sobre cada peregrino, como a chuva cai sobre a terra; judeus e pagãos (babilônicos) “hão de ver o Deus dos deuses em Sião” (v. 7-8). O poder do mal não prevalecerá;
  3. Quais imagens o salmista utiliza para expressar a oração? Ao recordar o Templo, o salmista afirma que os pardais e a andorinha encontram abrigo e lugar para preparar os seus ninhos e cuidar de seus filhotes. Ora, se até as aves podem encontrar lugar de habitação, então o peregrino não encontraria ali sua segurança e proteção? Não foi Deus quem construiu para o seu povo uma casa de habitação (cf. 1Rs 8,13; Ex 15,17)? Ademais, o Senhor é um sol e um escudo (objeto que protege): ilumina seu povo e lhes dá segurança, mostrando sua graça e glória, a qual se expande largamente, inclusive em meio à opressão e à dor (v. 12);
  4. Que fé o salmista transparece? A situação fatídica não pode abalar a fé. Por isso, é necessário caminhar “com um ardor sempre crescente”, pois o Senhor não recusa nenhum bem para o homem justo, ou seja, aquele que pratica a justiça. O que é a justiça? “É a vontade de Deus, o seu projeto eterno. Somos justos e praticamos a justiça quando deixamos que Deus realize a sua vontade sobre nós [...]” [21]. O Salmo termina com um caro elemento da fé judaica e cristã: “Feliz quem põe em vós sua esperança” (v 8.12-13);
  5. Quais os traços do rosto de Deus, aqui? O Senhor Deus não foi derrotado pelo deus dos babilônios. Ele é o “Deus de Jacó”, “Deus de Sião”, “Senhor do Universo”, “Deus poderoso do Universo” e “Rei”, ou seja, é ele quem governa (v. 2.4.9); por isso, como povo eleito, o peregrino diz “meu Senhor” (v. 4), porque Deus disse “meu povo” (Ex 6,7). É dele que provém todo o bem a quem observar a justiça e o direito, indo na contramão da lógica do homem ímpio e injusto (v. 12b).

 

2. “Deus do universo, escutai minha oração. Inclinai, Deus de Jacó, o vosso ouvido!” (Sl 83{84},9)

Os Salmos apresentam as situações da vida do ser humano, em particular, do povo eleito de Deus, cuja identidade encontra-se na Lei Mosaica. Todo homem experimenta momentos de alegria e tristeza, vitórias e derrotas. Enfrenta crises pessoais, mas também comunitárias. No âmbito da fé, não podemos ver as situações difíceis da vida como castigo, porque “desafios não são maldições” [22]. Segundo Pr 17,3, “como a prata é testada ao fogo e o ouro, no crisol, assim o Senhor prova os corações” (Sr 2,5-6). O justo é posto à prova, para que nele se manifeste o poder de Deus, pois “quem espera no Senhor, esse é feliz” (Pr 16,20). Que tal recordar a história de Abraão (Gn 12-25)? Portanto, sabedoria ou sapiência, mais que aprimoramento intelectual, é relação. Cabe a pergunta: “relação com o quê?” Relação com Deus, relação com a Lei (fruto da Aliança no Monte Sinai), relação consigo mesmo, relação com as outras pessoas, relação com os bens materiais e relação com a história. Como dissemos, interpelado em seu bem mais precioso, a fé, Israel se questiona sobre seu proceder ético. Reconheceu ter falhado, sem estagnar-se na culpa: “Dai-me de novo a alegria de ser salvo e confirmai-me com espírito generoso” (Sl 50{51},14). Vale a pena recordar o trecho de um grande poeta: “o mais importante e bonito do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão” (Guimarães Rosa [23]). Os Salmos revelam muitos questionamentos e situações vitais que nada divergem do homem do século XXI: o que é o ser humano? Sl 8; se somos povo da Aliança, então qual caminho devemos seguir? Sl 1; por que assimilar o conteúdo da Lei? Sl 19{18}; Por que o justo sofre? Sl 35{34}. Há momentos de muita alegria e exultação (Sl 34{33}); há momentos de total desolação, em que se ouve somente o silêncio de Deus (Sl 13{12}). Às vezes, o diálogo ganha um tom de súplica (Sl 17{16}), mas também de ação de graças (Sl 18{17}). Já outros ajudam o homem a reconhece suas faltas, alegrando-se pela graça do perdão (Sl 32{31}) [24]. Neste momento histórico, precisamos reconhecer também o poder de Deus. Onde ele está? “Ele está no meio de nós”, e espera que cada cristão alimente sua vida espiritual com criatividade e ousadia. Em todo tempo e lugar, discernir as situações na perspectiva da fé, pedindo sabedoria ao Espírito Santo, a fim de encontram respostas que convergem para os critérios do Evangelho. Por ora, deixamos a proposta do teólogo biblista Carlos Mesters [25], para que você possa, neste momento de preocupação, aridez, dúvidas, mas também de esperança, construir o salmo de sua vida. Agradeça, lamente, suplique, peça, mas, sobretudo, louve.

 

  1. Procure dar uma resposta a esta pergunta: Quais os elementos que não podem faltar no salmo da minha vida? Os elementos que você vai juntando serão os tijolos para a construção do seu salmo;
  2. Comece a construir a casa do seu salmo, organizando os tijolos de tal maneira que expressem o que você é e vive;
  3. Tente encontrar um refrão a ser repetido após cada parte do salmo.

 

Muito simples! Tenha a ousadia de contar sua história, em uma profunda intimidade com Deus. Escreva ou apenas medite! Recorde fatos de sua vida: trabalho, família, conquistas, dificuldades, superações, experiências marcantes... mas, também, silencie e ouça os apelos de Deus para você. Renove sua esperança, caminhe com um ardor crescente, transforme a aridez em fonte borbulhante, sem deixar-se abalar pelo medo, porque é feliz o homem que no Senhor colocou sua esperança!

 

Ao meu coirmão, Pe. Francisco Ermelindo Gomes, CM, missionário lazarista e meu diretor espiritual, o qual cultiva intensa vida de oração.

 

NOTAS

Para a consulta dos números que se encontram entre [ ].

1. Missionário lazarista (Congregação da Missão – CM), graduado em Filosofia, pelo Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA), e graduado em Teologia, pela Faculdade Jesuíta (FAJE).

2. O mundo já sofreu com este tipo de situação. P. ex.: peste negra (séc. XIV), gripe espanhola (séc. XX) etc. Como relata Ecl 1,9-10: “o que aconteceu, acontecerá de novo; o que se fez, vai se fazer de novo; não existe nada de novo debaixo do sol! Ainda que alguém diga: ‘Olhe, isto é novo’, já aconteceu em outros tempos, muito antes de nós.”

3. Disponível em <<https://diocesedivinopolis.org.br/c/noticias/pensando-nas-pessoas-dos-grupos-de-risco-artigo-com-notas#_ftnref1>>. Acesso em 27 de junho de 2020.

4. Do latim, a palavra “missa” significa “enviada”, “envio”, podendo soar um tom de despedida também. Ao término de cada celebração, o presidente dizia: “Ite, missa est.”, ou seja, “Ide, o envio está feito”. Você pode aprofundar o tema em << https://pt.aleteia.org/2017/08/25/por-que-a-missa-se-chama-missa/>>. Acesso em 27 de junho de 2020.

5. Disponível em <<https://www.youtube.com/watch?v=UAKFHq_kZXA>>. Acesso em 19 de junho de 2020.

6. VAN THUAN, François-Xavier Nguyen. Cinco pães e dois peixes: do sofrimento do cárcere um alegre testemunho de fé. 21. imp. São Paulo: Santuário, 2017, p. 25.

7. Oração conclusiva do Ofício de Vésperas da terça-feira da 5ª semana do Tempo Pascal.

8. Trecho da música “Manhã de luz”. Disponível em <<https://www.youtube.com/watch?v=-bjlVhAgu5s>>. Acesso em 19 de junho de 2020.

9. Geralmente, o breviário fornece o título do Salmo, o qual funciona como uma chave de leitura para interpretá-lo. Na Bíblia, os títulos “informam sobre a origem, o autor, o tipo e o uso do salmo. [...] Eles dão uma ideia de como os Salmos eram rezados naquele tempo.” (MESTERS, Carlos; OROFINO, Francisco. Lendo o Livro dos Salmos: a leitura orante do povo de Deus. São Paulo: Paulus, 2018, p. 19).

10. “Em 598/579, o rei babilônico, Nabucodonosor, toma Jerusalém e conduz Joaquin (Jeconias) à Babilônia, substituindo-o no trono por Sedecias (2Rs 24,10-17).Nesta primeira leva de exilados, encontra-se o profeta Ezequiel. O novo rei de Judá, Sedecias, deixa-se seduzir por uma ideologia nacionalista míope e, contrariando os conselhos do profeta Jeremias, trama uma revolta contra Nabucodonosor, resultando em novo assédio e destruição completa de Jerusalém e do Templo, em 586 a.C. Desta vez, Nabucodonosor manda para Babilônia, sob a guarda de Nebuzardã, uma segunda leva de cativos, a saber, grande parte da elite política e militar (1Rs 25,1-21; Jr 52,4-27). Assim inicia-se o ‘exílio babilônico’, que vai durar meio século.” (KONINGS, Johan. A Bíblia, sua origem e sua leitura. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 60).

11. Sobre as duas deportações, ver 2Rs 24,1-25,30.

12. Tradução da BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova ed. rev. e ampl. 2. impr. São Paulo: Paulus, 2003.

13. Traduzimos o nome de uma obra intitulada “La crise: une chance pour la foi”.

14.“Salmo é uma palavra grega (psallein) que significa cantar hino acompanhado de instrumentos de cordas, que se chama psaltérion. Hoje, a palavra saltério é aplicada a coleção de 150 salmos de nossas Bíblias. [...] Os salmos eram usados para celebrar e para manifestar o estado de espírito do fiel judeu, em diversos momentos e circunstâncias. Revelam estado de ânimo, desolação, adoração, louvor, perseguição, confiança, saudades do Templo, confissão dos pecados, alegria e tristeza. Eram cantados quer em movimentos individuais de oração, quem em momentos comuns e diários (refeições, casamentos), ou comunitários e festivos.” (ROSA, Dirlei Abercio da. Projeto do Pai: roteiro para estudo do Antigo Testamento. 11. reed. São Paulo: Paulinas, 2014, p. 141-142). Ler os Sl 32{33},2; Sl 46{47},7.

15. Podemos encontrar os três gêneros literários, em apenas um Salmo. Lamentar uma situação, suplicar ajuda e bendizer a Deus pelo benefício/socorro recebido. Tamanha riqueza em um só texto. A fim de aprofundar os Salmos, consultar: 1) HARRINGTON, Wilfrid J. Chave de leitura para a bíblia: a revelação, a promessa, a realização. reimp. São Paulo: Paulus, 2019, p. 349-366; 2) ROSA, Dirlei Abercio da. Projeto do Pai: roteiro para estudo do Antigo Testamento. 11. reed. São Paulo: Paulinas, 2014, p. 141-143.

16. MESTERS, Carlos; OROFINO, Francisco. Lendo o Livro dos Salmos: a leitura orante do povo de Deus. São Paulo: Paulus, 2018, p. 17.

17. Nós o apresentamos, aqui, tal qual se encontra na Liturgia das Horas, Laudes, III Semana, segunda-feira. Disponível em <<https://www.paulus.com.br/portal/liturgia-diaria-das-horas/dia-20-segunda-feira-5/#.XrwBzURKh0w>>. Acesso em 20 de abril de 2020.

18. Na tentativa de encontrar respostas para o exílio, as Tradições Sacerdotal e Deuteronômica trabalharam nesta perspectiva: nós, como povo eleito, fomos infiéis ao culto e ao pacto que Javé estabeleceu na Aliança (cf. HARRINGTON, Wilfrid J. Chave de leitura para a bíblia: a revelação, a promessa, a realização. reimp. São Paulo: Paulus, 2019, p. 221).

19. Correspondem aos Livros Salmos, Provérbios, Jó, Cântico dos Cânticos, Coélet (Eclesiastes), Sirácida (Eclesiástico) e Sabedoria. “A coleção de livros sapienciais tem como objetivo mostrar a sabedoria do povo judeu. Por sabedoria, entendia-se muito mais um conjunto de normas e princípios práticos de vida do que o conjunto de ideias e conhecimento científico [...]. Os ditos sapienciais serviam para orientar os mais jovens sobre como se comportar em diversas situações: em casa e na sociedade, durantes as refeições, em lugares públicos, nos tribunais, no comércio (cf. Pr 1,2-6; 10,1.5.16; 11,1; 12,4.11.28; Eclo 10,1-5; 11,7-9.29-34; 13,1-3 etc.). Como a vida do judeu está profundamente marcada pela sua fé, tais provérbios e ditos sapienciais foram associados ao temos de Deus e à vivência dos mandamentos (cf. Pr 1,7; 6,16; Jó 28,28; 32,8; Eclo 1,11-21; 2,6s; 2,26; Sb 7,27 etc.)” (ROSA, Dirlei Abercio da. Projeto do Pai: roteiro para estudo do Antigo Testamento. 11. reed. São Paulo: Paulinas, 2014, p. 137-138).

20. Para cada Salmo, poder-se-á aplicar este método. Utilizaremos, aqui, os pontos 2-6, conforme encontram-se enumerados na obra. Completamos a proposta de leitura com os itens 1 e 7, a saber: 1. Descobrir as divisões dentro do Salmo; 7. Verbalizar os sentimentos que você teve ao rezar o Salmo. Consultar a obra: MESTERS, Carlos; OROFINO, Francisco. Lendo o Livro dos Salmos: a leitura orante do povo de Deus. São Paulo: Paulus: 2018, p. 91-92. A partir de sua leitura pessoal [ou em família], você pode enriquecer com outros elementos do texto.

21. STORNIOLO, Ivo. O Evangelho de Mateus: o caminho da justiça. 14. reimp. São Paulo: Paulus, 2018, p. 14.

22. Frase no filme “Queen of Katwe” [“Rainha do Katwe”].

23. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. 38. imp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 15.

24. Como já apresentamos a chave de leitura para o Livro III [73-89: transição de governo], optamos em dar exemplos com o Livro I [3-41: ascensão de Davi]. Lendo-o nessa perspectiva, compreender-se-á o porquê das muitas referências ao Rei. A numeração dos Salmos encontra-se na nova edição da BÍBLIA SAGRADA. 2. ed. Brasília: CNBB, 2019.

25. MESTERS, Carlos; OROFINO, Francisco. Lendo o Livro dos Salmos: a leitura orante do povo de Deus. São Paulo: Paulus: 2018, p. 92.

 

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