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Como revitalizar a nossa vida comunitária 05 de Agosto de 2021 Reflexões sobre a premissa de Voltaire pelo prisma vicentino Pe. Rolando Gutiérrez Zúñiga, CM
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O ditado de Voltaire sobre a vida consagrada é bem conhecido: "Eles se juntam sem se conhecerem, vivem sem se amarem e morrem sem chorar". Embora o pensador francês se refira diretamente aos monges (1), a crítica subjacente faz alusão à sua percepção referente às comunidades de homens eclesiásticos. Será que esta máxima volteriana teria alguma verdade?

À primeira vista, poderíamos ter a reação defensiva de sacudir o pó dos nossos pés diante de tal insulto, por parte de um crítico ferrenho da Igreja. No entanto, no contexto de uma Assembleia Geral, convida-nos a revitalizar a nossa identidade em todas as suas dimensões. Seria bastante oportuno avaliarmos a nossa dimensão comunitária (2) e colocar sobre a mesa se, poderíamos dizer que na Congregação da Missão vivemos realmente em um ambiente onde nós, coirmãos, temos "sincero afeto "como amigos que se querem bem"" (C.25).

A fim de fazer uma abordagem saudável sobre este tema, devemos considerar a particularidade bem notada pelo Instrumentum Laboris relativamente à vida comunitária como um meio importante para a Congregação da Missão, mas não um fim em si mesmo, como pode ser interpretado na teologia da vida religiosa. Além disso, é desejável assinalar muito claramente o papel da comunidade nas Sociedades de Vida Apostólica e a sua distinção dos Institutos Religiosos:

"Mesmo que os institutos religiosos se assemelhem à vida comum, existem elementos diferenciadores. A própria natureza da sua vida apostólica (mobilidade, dedicação...) faz com que a sua vida em comunidade tenha características particulares. Nos institutos religiosos, a vida fraterna é, acima de tudo, "a vitalidade da comunhão que funda a Igreja e, ao mesmo tempo, profetiza o que tende como seu objetivo final". Em uma Sociedade de Vida Apostólica, por outro lado, é a missão apostólica que exige a vida fraterna e determina a sua forma. Nos institutos religiosos, a vida fraterna em comum é mais rigorosa na medida em que menos se dedicam às obras do apostolado; nas Sociedades de vida apostólica, o inverso é verdadeiro. A vida comum é uma testemunha da nova vida, da nova fraternidade que é vivida na filiação divina, da vocação comum. No SVA, por outro lado, para enfatizar mais a unidade que deve reinar entre os apóstolos como participantes na mesma missão " (3).

Desafios atuais da vida comunitária

Sem foi mais fácil culpar os mortos. Digamos, então, que foram personalidades como Descartes (1596-1650), pai do racionalismo moderno, ou os empiristas ingleses como John Locke (1632-1704) e Francis Bacon (1561-1626), ou talvez qualquer um dos idealistas alemães (4), a quem poderíamos responsabilizar pelas desgraças de uma cultura cheia de individualismo, que cria pessoas incapazes de viver o estilo comunitário das sociedades de outrora, que tinham como modelo a organização camponesa, tão valorizada por São Vicente (5).

De fato, sabemos que a setorização excessiva de certos aspectos do ser humano, como objetos de estudo nos quais se concentraram as ciências humanas, e mais tarde, as ciências exatas, gerou grande número de antropologias parciais, todas elas defensoras de certos princípios humanos, mas incapazes de compreender a pessoa em sua integralidade. Assim, originou-se um sentido cada vez mais parcial, mais individual da pessoa, um sujeito que parecia cada vez mais um objeto sem rosto, impactado pelos efeitos da Revolução Industrial, que começou na segunda metade do século XVII, e que levou à cultura do consumo e do descarte, a qual o capitalismo conseguiu coroar, sob o sistema da globalização.

Assim sendo, embora em muitos círculos eclesiais tenham tentado promover uma antropologia mais personalista (que tem muitas coincidências com a antropologia cristã), precisamos reconhecer que nós, missionários da Congregação da Missão, aparecemos no cenário do século XXI com fortes traços de individualismo, muitas vezes protegidos por uma suposta novidade trazida pelo Concílio Vaticano II, no que se refere à mudança que tirou do centro a hierarquia como garantia de fidelidade vocacional e colocou as pessoas no seu lugar. E então, com tal invocação, as iniciativas missionárias mais nobres podem ser justificadas, bem como as mais absurdas contradições com a vocação daqueles que escolheram viver numa comunidade para uma missão.

Um reflexo disto são os problemas de estabilidade de um número significativo de missionários, muitos dos quais culpam as circunstâncias comunitárias como a causa da de tais dificuldades. Por exemplo, entre 2010 e 2016, quarenta e três coirmãos deixaram a Congregação e foram incardinados numa diocese.

O problema não é novo e foi salientado pelos mais de 600 padres (6) que deixaram a Congregação nos anos imediatamente após o Concílio Vaticano II.

"Em 1985, o P. McCullen, Superior Geral, enviou um questionário aos visitadores e aos seus respectivos Conselhos Provinciais. Entre as questões, contavam-se as seguintes: Quais são as razões para deixar a Congregação da Missão e ir para uma diocese? As respostas que chegaram indicaram como principal motivo as dificuldades de exercício dos ministérios dentro da comunidade" (7).

Mais de 35 anos depois, dizer que o grande desafio da revitalização da comunidade vicentina, está em esclarecer a identidade de nossa comunidade para a missão, sem nos acomodarmos a reducionismos, em nome de supostas atualizações, que deformam a vocação, ou falsas fidelidades ao nosso fundador, que parecem querer embalsamar uma múmia. Seria o caso de irmos à essência do nosso ser e nos interrogarmos sobre o significado de comunidade em uma sociedade apostólica como a nossa, entendida a partir de uma antropologia que nos humaniza, como faz Cristo nos Evangelhos, e ao mesmo tempo nos faz viver o autêntico sentido de koinonia, como acontece naqueles que decidiram segui-lo, como nos dizem os Atos dos Apóstolos (cf. Atos 2, 42-47).

Portanto, a fim de aprofundar o desafio da vida comunitária, devemos ir à "mente, coração e estômago" (8) das pessoas chamadas a seguir Jesus Cristo, evangelizador dos pobres. Isto porque é na comunidade que se tornam evidentes as consistências vocacionais (9) que permitem uma vida plena de homens que se dedicam comunitariamente, à missão. Ou, pelo contrário, onde as inconsistências geram grupos de pessoas frustradas, com muito trabalho, talvez, mas vazios de vida, paixão e amor, como Voltaire acusa.

Comunidade para a Missão 

São Vicente soube definir o espírito comunitário da Pequena Companhia com especial genialidade no Capítulo VIII das Regras Comuns, onde parte da inspiração na comunidade apostólica, para descer a uma série de recomendações úteis para uma Sociedade que, naquela altura, contava apenas três décadas de caminhada (10).

Mas desde muitos anos antes, Vicente era claro quanto à valorização da comunidade e, ao mesmo tempo, o primeiro destinatário da missão para a qual fomos chamados. A comunidade não deve ser apenas um apoio à missão, mas sim uma imagem da Trindade que evangeliza pelo seu modo de vida:

"Gostaria de ver esta prática sagrada espalhada entre nós: ver tudo bem; dizer que na Igreja de Deus existe uma companhia que professa estar muito unida, nunca falar mal dos que estão ausentes, dizer da Missão que é uma comunidade que nunca encontra nada a criticar nos seus irmãos. A verdade é que eu apreciaria isto mais do que todas as missões, a pregação, as ocupações com os ordenados e todas as outras bênçãos que Deus deu à companhia, tanto mais que ficaríamos então mais impressionados com a imagem do Santíssima Trindade" (SVP. XI, 45-46) (11). 

Cinco anos depois, numa carta a Stephen Blatiron, ele dá a sua bela perspectiva sobre a vida comunitária: não somos simplesmente vizinhos que vivem na mesma casa e são obrigados a partilhar certos espaços, somos uma família que constrói uma grande história missionária ao ritmo das nossas histórias pessoais, onde cada um de nós tem muito a contribuir para o projeto de Cristo de evangelizar os pobres e tornamo-nos complementares na missão:

"Divina bondade, une desta forma também os corações desta pequena Companhia da Missão, e pergunta-lhe o que quiseres! A fadiga será doce e todo o trabalho será fácil, o forte aliviará o fraco e o fraco amará o forte e obterá maior força de Deus; e assim, Senhor, o teu trabalho será feito ao teu gosto e para a edificação da Igreja, e os trabalhadores multiplicar-se-ão, atraídos pelo cheiro de tanta caridade" (SVP. III, 234) (12).

Esta bela teologia vicentina deve ser compreendida quando dizemos que somos uma comunidade para a missão, especialmente quando, no início do V Centenário da nossa história, nos encontramos na necessidade de revitalizar a nossa identidade.

Formação permanente para a vida em comum

Amedeo Cencini identifica três níveis que progressivamente produzem um itinerário de formação em comunhão fraterna, nomeadamente: o material, o afetivo e o espiritual (13). É um movimento ascendente em que um grupo começa por partilhar espaço e recursos materiais, continua com a partilha afetiva entre eles, para concluir com a partilha da espiritualidade que identifica o projeto de vida mais profundo das pessoas.

No dia em que tomámos a decisão de entrar numa casa de formação, assumimos um novo modo de vida. O nosso tempo e espaço pessoal foram invadidos por outros assuntos que partilham o mesmo ideal: seguir Cristo, evangelizador dos pobres. Esta chamada faz-nos olhar para além da cultura materialista que nos propõe como ideal de vida a metáfora consumista de um centro comercial. Este é o além que São Vicente exige como parte das condições para um missionário: "ninguém deve usar nada como se fosse seu" (RC III,5).

Certamente, a Congregação da Missão tem o seu próprio Estatuto sobre o seu voto de pobreza, com importantes diferenças no que diz respeito a possibilidades que não se encontram na vida religiosa, no entanto, para além dos mínimos jurídicos que poderíamos defender com direito próprio, há uma necessidade profunda para aqueles que foram chamados à missão vicentina: "não é bom que um homem esteja só" (Gn 2,18), e o missionário não é um homem que permanece num estado de singeleza, mas que abraçou um casamento com uma missão que é vivida em comunidade. É por isso que somos obrigados a partilhar a vida quotidiana numa casa comum, onde as refeições, a recreação, os frutos do nosso trabalho, as finanças, as limitações, e todo o resto são compartilhados. Quando nos abstemos deste primeiro nível, coberto por mil e uma justificações, acabamos por nos fazer concessões incompatíveis com a nossa vocação e que podem facilmente levar-nos a cair numa inclinação escorregadia que nos leva a duplos, mediocridade e frustração e por vezes até escândalos dolorosos.

O segundo nível é bem identificado pela expressão de Vicente: "como amigos que se querem bem" (RC VII, 2). De fato, o estilo de vida comunitário da Congregação da Missão não é apenas um meio que torna a missão possível, mas também, em grande medida, é o suporte da vida do missionário, tão vivo nos seus afetos como qualquer outro mortal, tão necessitado de dar e receber afeto que, se não levar uma vida familiar em sua comunidade, ele o fará fora dela. Aqueles de nós que são chamados à castidade não são homens livres de compromisso, pelo contrário, pertencemos a Deus, e este sentimento de pertença é manifestado em uma vida comunitária alegre, onde o tempo é partilhado, o descanso é partilhado, a vida é celebrada, momentos de dor são sofridos com os coirmãos, e passamos a amar-nos realmente uns aos outros.

Na experiência de acompanhar muitos jovens em seu discernimento vocacional, é muito significativo que esta seja uma das razões que mais fortemente atraiam as vocações ou as afastem. No século XXI, ninguém está disposto a levar uma vida de heroísmo missionário pago com o preço da solidão, em uma instituição fria e dividida. Essa é uma mentira que hoje está em evidência, mas, de fato sempre foi uma questão controversa.

Se os níveis material e afetivo forem assimilados de forma correta, sem dúvida o terceiro nível não será entendido como uma questão de simples partilha dos tempos de oração.

"Podemos dizer que uma comunidade reza de verdade quando, em sua oração, cada um traz os outros perante Deus. E quando, para além disso, se deixa conduzir por ele perante o Pai comum. Não é simplesmente rezar juntos... mas sim fazermos com que as outras pessoas participem no nosso relacionamento com Deus de forma a perceberem, claramente, que formam parte desta relação. Eu não o amo só porque amo a Deus, mas sim porque ele faz parte da minha relação pessoal com Deus: eu amo o outro em Deus." (14).

Em conclusão, a vocação para seguir Jesus Cristo, evangelizador dos pobres, não pode ser lida de um ponto de vista individualista, a ponto de reduzir a força missionária da Pequena Companhia. No entanto, a realidade de uma comunidade para a missão, só será um ideal se não formos capazes de construir itinerários de formação permanente que começam com o material para nos levar a ser não apenas companheiros de trabalho mas amigos que se querem bem, finalmente, irmãos e irmãs de uma família que proclama o Deus dos pobres com a pregação do seu modo de vida, caracterizado pelas práticas que o Instrumentum Laboris recolheu, com base nos números 19 a 27 das nossas constituições: trabalho em equipe, serviço de autoridade, projetos comunitários, diálogo e comunicação, discernimento comunitário, testemunho, sobriedade da vida comunitária, valorização da corresponsabilidade, correção fraterna, vida de oração e espaços de intimidade comunitária.

Há quatro séculos que esta tem sido a vida da Congregação da Missão. Missionários são lembrados, com devoção, em muitas partes do mundo. Tantas belas histórias de companheiros no caminho que só conhecem "o Pai que se vê em segredo" (Mt 6, 6). Mas nós somos testemunhas, e portanto, "o que vimos e ouvimos é o que proclamamos" (1Jo 6,6). Portanto, sem medo, podemos dizer: Voltaire estava errado!


Notas 

(1) No francês original a frase completa diz: "A vida monástica, seja o que for que se diga, não é nada invejável. É uma máxima conhecida que monges são pessoas que se reúnem sem se conhecer, vivem sem amar e morrem sem se arrepender. "VOLTAIRE. O homem das quarenta coroas. Versão PDF.

(2) A terceira das três dimensões que sustentam a nossa identidade: misticismo (chamado "espiritualidade" pelo Instrumentum Laboris), missão (com o Instrumentum Laboris), missão (com o Instrumentum Laboris), e finalmente comunidade, que caracteriza o nosso "modo de vida", que é o tema deste artigo.

(3) BAHILLO RUÍZ, Teodoro. Significado das Sociedades de Vida Apostólica na Igreja. Publicado em O Vicencianismo e a Vida Consagrada. 39ª Semana de Estudos Vicentinos. Editorial CEME. Salamanca 2015. pp. 122-123.

(4) Immanuel Kant (1724-1804), Friedrich Schelling (1775-1854), Johann Gottlieb Fichte (1762 -1814) entre outros.

(5) "É entre eles, entre estas pobres pessoas, que a verdadeira religião, a fé viva, é preservada; eles acreditam simplesmente, sem se intrometerem; submissão às ordens, paciência nas misérias, que devem ser sofridas, enquanto Deus quiser, uns por guerras, outros por labuta o dia todo sob o sol ardente; pobres vinhateiros, que nos dão o seu trabalho; que esperam que rezemos por eles, enquanto eles labutam para nos alimentar" (SVP. XI, 120).

(6) "Entre 1968 e 1986, 632 padres, 42 irmãos e 205 estudantes deixaram a Congregação de forma legal. Ilegalmente, 199 à esquerda, dos quais 5 são irmãos". PEREZ FLORES, Miguel. Veste-te com o Espírito de Cristo. Expressão da Identidade Vicentina. Editorial CEME. Salamanca 1996. p. 404.

(7) PEREZ FLORES, Miguel. Revestirse of the Spirit of Christ. p. 405.

(8) "Cabeça, coração e estômago são as três faculdades da alma a que outros chamam inteligência, sentimento e vontade. Pensa-se com a cabeça, sente-se com o coração e quer-se com o estômago. Isto é evidente"! UNAMUNO, Miguel. Niebla. Capítulo XXIV. Versão PDF.

(9) "Entre a dialéctica que parece ser fundamental numa antropologia psico-social da vocação, há as que foram definidas como consistências ou inconsistências. Como veremos a seguir, são constituídos ou pelo acordo (consistências) ou pela oposição (inconsistências) entre o eu ideal e o eu real para um aspecto específico da pessoa". RULLA, Luigi M. - IMODA, Franco - RIDICK, Jocie. Antropologia da Vocação Cristã. Confirmações Existenciais. Sociedade de Educadores de Atenas. Salamanca 1994. p. 26

(10) Apesar de as Regras Comuns terem sido transmitidas pelo fundador em 1658, sabemos pela descoberta do Codex Sarzana encontrado pelo Pe. Codex Sarzana encontrado pelo Padre Angelo Coppo que publicou o seu estudo em 1957 (La prima stesura delle Regole e Constituzioni della Congregatione della Missione) que, pelo menos já em 1653, a primeira estrutura das Regras Comuns na mente de São Vicente, já incluía o tema da comunidade sob o título: "De mutua nostrorum conversatione".

(11) Conferência de 27 de Junho de 1642, sobre a união entre as casas da Companhia.

(12) Carta a Stephen Blatiron, Superior de Génova. Datado de 13 de Dezembro de 1647

(13) Cf. CENCINI, Amedeo. Vida Fraterna. Desafio e Maravilha. Vida Fraterna e Nova Evangelização. Edições Ediciones Sígueme. Salamanca 2011. pp. 219-261.

(14) CENCINI, Amedeo. La Vida Fraterna. p. 241.

*Artigo originalmente publicado por cmglobal.org, em língua espanhola. Livre tradução para o português brasileiro por Sacha Leite e Stephany Oliveira.
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