Notícia
            Informações             Notícias      
Reflexão sobre o Plano de Ação Provincial 15 de Janeiro de 2021 “Conformar a vida ao núcleo identitário da consagração vicentina, voltar às fontes e centrar a vida em Cristo Evangelizador dos Pobres” Pe. Alexandre Nahass Franco
A a     

Falar em vocação nos remete diretamente à experiência de Jesus com seus discípulos. Sua palavra, proclamada à beira do mar da Galiléia, tocou profundamente o coração daqueles pescadores e exigiu-lhes claramente a retomada de suas vidas (cf. Mc 1, 16-20). O Evangelho não deixa dúvidas: A palavra de Jesus, seu jeito de viver e de se aproximar, tocava diretamente o coração das pessoas, levando-as a responder à sua provocação. Impossível era ficar indiferente diante do Senhor. Esta experiência de chamado e resposta continua nos dias atuais. O Senhor continua chamando e aguardando pessoas disponíveis e generosas que sejam capazes de responder positivamente. Diante dele, é preciso coragem e audácia, discernimento e sensatez, para que a resposta humana não seja imatura nem deslocada da realidade concreta, mas resposta fundamentada em processo pessoal e fecundo de convencimento e discernimento, feito à luz da Palavra de Jesus e em comunhão com a Igreja, que é seu Corpo Místico.

O Núcleo Identitário da Vida Consagrada (VC) que tem como referência fundante o seguimento de Jesus, sobretudo seu Evangelho, tem se tornado distante na vida de tantos consagrados. Há perda de credibilidade em nossa vida, perda do prestígio de nossas obras e relativização de costumes e normas. Vivemos uma palidez na vida espiritual; o enfraquecimento da vida fraterna, com muitas rupturas; a perda da vitalidade da vida apostólica e a falta do sentido de pertença.

Diante destes desafios, podemos rezar alguns pontos importantes em nossa Província para que o núcleo identitário da VC se concretize, pessoalmente e comunitariamente. Nosso Plano de Ação Provincial 2020-2024 traz várias iluminações:

2.1. Conformar a vida ao núcleo identitário da consagração vicentina.

3.1. Antes de tudo, é preciso ter em vista o nú cleo identitário da consagração vicentina, como fundamento, mediação e meta da vida missionária.

a) O núcleo identitário da vida dos consagrados na Igreja e no mundo é constitu?do pela: mística ou ? profunda experiência de Deus, de quem se origina e a quem se orienta toda consagração autêntica; missão de evangelização e serviço à vida, segundo a finalidade do Instituto ou Sociedade a que se pertence; vida fraterna em comunidade, modo como se estrutura e organiza nosso estilo de vida.

b) Estes três elementos estão presentes na experiência de São Vicente de Paulo: a experiência de encontro com Cristo no Pobre e da chamada gratuita para estar e viver com Jesus Cristo evangelizador dos Pobres; o ser chamado a viver em comunidade missionária; e o ser enviado em missão junto aos Pobres mais abandonados, no serviço de evangelização e da formação. O voto de estabilidade e, em vista deste, os votos de castidade, pobreza e obediência celebram, confirmam e ratificam a entrega total da vida para ser-em, ser-com, e ser-para Cristo evangelizador dos Pobres.

c) Faz-se necessário buscar o sentido e a vitalidade da vida missionária vicentina na conformação da vida neste ideal. O crescimento na conformação da vida nesses três aspectos acontece dentro de uma complementaridade e unidade circular: a missão alimenta a experiência de Deus e a estrutura da comunidade, assim como a comunidade qualifica a missão e a experiência de Deus, sem um antes e sem um depois. A solidez da vida espiritual, dos laços comunitários, do empenho apostólico e do sentido de pertença se constroem no assimilar e viver em profundidade esse núcleo identitário e não cair nas tentações citadas pelo Papa Francisco: o ‘mundanismo espiritual’(EG 93 -97), a ‘autorreferencialidade’ (EG 8.94.95) e a ‘missão como apêndice’ (EG 78.273).

Se olharmos agora o núcleo identitário da VC na perspectiva de um itinerário vocacional, vamos constatar o seguinte: Não basta um ideal religioso, social ou humanitário como motivação para a VC. Não basta somente o encanto inicial, mas também o reencanto consciente por Jesus Cristo e a proposta de seu discipulado, para conseguir manter a VC sempre apostólica, jovial e significativa. Muitas vezes nós nos deparamos com uma VC cansada, envelhecida e insignificante, sem vibração e isso não é apenas uma questão de faixa etária, mas sim de perda de identidade, de afastamento do núcleo identitário e do caminho do discipulado. Em outras situações, felizmente, nós nos deparamos também com um consagrado ancião sereno, feliz e transparecendo a simplicidade de quem encontrou sua identidade e sua razão de ser, fazer e amar. Estes nos contagiam!

Uma paixão autêntica é comunicativa e contagiante! Viver hoje o núcleo identitário da VC significa pensar com muito carinho como estamos nos ajudando mutuamente a alimentar esta paixão e como estamos passando, transmitindo esta paixão que não é nossa mas que passa por nós, para as novas gerações de consagrados.

Eis alguns questionamentos: Como viver a VC Missionária com paixão e contagiar com esta paixão as novas gerações? Como fazer o hoje da VC acontecer na formação não apenas inicial, mas também na formação permanente?

É necessário viver com paixão. É necessário abraçar de modo mais claro o tripé que sustenta a VC: Mística, comunidade e missão. São três elementos constitutivos do caminho do discipulado no evangelho. Se quisermos aprofundá-los mais ainda, percebemos que estes três elementos se referem à base antropológica da proposta: Ser-em, Sercom e Ser-para.

Somente a paixão dá o vigor necessário para integrar as três dimensões, para deixar que cada uma interaja com a outra: Sem mística, a VC fica anêmica, apenas mantém uma capela e práticas piedosas, quando as mantém. Sem comunidade de vida, ela se descaracteriza, perde boa parte da sua visibilidade, da sua razão de ser. Sem missão ela se fecha diante do novo e cada um se vira como pode, lançando mão do individualismo, da profissão e das competências, com o risco de se perder no ativismo e o perigo tão comum hoje em dia: a “Síndrome de Burnout”.

Neste sentido, acredito que a dimensão da valorização da vida fraterna em comunidade no momento tem sido o ponto mais delicado. A maioria das crises que ocorrem no itinerário das pessoas consagradas, pessoas que têm vocações autênticas, verdadeira experiência de Deus e gosto pela missão vêm das frustrações e dos conflitos na comunidade de vida, que neste caso torna-se comunidade geradora de doenças tanto físicas como psíquicas e espirituais. Uma comunidade que não humaniza.

Há comunidades de consagrados que mais se parecem uma central de atendimento ao cliente do que propriamente um lar. Há outras que funcionam como a torre de controle de um aeroporto, onde somente se pode falar o necessário para não provocar acidentes e onde só se acompanham aviões aterrissando e decolando.

Não se trata aqui só de construirmos uma vida em torno de horários, de esquemas de vida comunitária e sim de questões mais profundas como atitudes de confiança uns nos outros, atitudes e práticas de partilha afetiva, efetiva e espiritual.

Que qualidade tem os momentos que passamos juntos? Que qualidade tem nossos momentos de oração comunitária, de partilha, de lazer, de refeições, de atividades missionárias em equipe?

Estamos juntos para viver nossa fé e transmiti-la. Quando nós não conseguimos fazer esta experiência “em casa”, em nossa comunidade, então a decepção é tão grande que somos tentados a fugir nas redes sociais, compensando com outras conexões e com a falta de relações humanas gratificantes, ou nos encolhemos num intimismo estéril ou ainda mergulhamos de cabeça no sucesso da atividade apostólica, tornando-nos viciados em trabalho, eternos estressados, num ativismo desenfreado. E uma das consequências mais graves desta situação é que a nossa castidade consagrada perde seu significado com todos os riscos de desvios afetivos que isso supõe.

A missão, por sua vez, padece de situações complicadas. Ficamos na congregação, mas saímos da “firma” para nos tornarmos “autônomos”, impelidos pelas leis do marketing, da competição, da busca da imagem, do sucesso. Ter sucesso é uma triste compensação ao fato de não dar frutos! Que paixão temos então a transmitir?

Como transmitir a vivência e os valores senão através de um processo mistagógico fundado no Evangelho? Nossa formação deve recuperar sua dimensão mistagógica. Deve ser convite a entrar numa paixão, a entrar no mistério: “Venham ver”. É necessário voltar às fontes e centrar a vida em Cristo evangelizador dos Pobres:

Na abertura à ação do Espírito que renova a face da terra, que renova a Vida Consagrada, é preciso ‘voltar às fontes’ e, sem enclausurar-se no castelo do passado ou encantar-se com brilho fugaz da ‘modernidade líquida’, não perder de vista os elementos fundamentais do carisma, jamais esgotados por qualquer mediação histórica.

a) A fonte vicentina leva ao encontro com Jesus, o Verbo encarnado, remete para a proximidade solidária e criativa com os empobrecidos. Esta é a experiência fundante, Cristo evangelizador dos Pobres é o que anima, sustenta e renova a vocação vicentina. Se falta esta experiência espiritual, falta tudo e a vocação vicentina perde a sua vitalidade evangélica e missionária. Sem reavivar o dom de carisma e os elementos espirituais que configuram a identidade da vocação vicentina, a vida missionária perde seu sal evangélico.

b) Para despertar o mundo no amor de Cristo pelos Pobres, os missionários vicentinos devem viver a partir de motivações autênticas da fé, com maturidade humana e espiritual e sintonizar continuamente o coração, a mente e as mãos com os apelos de Deus na missão. Portanto, desde a Palavra de cada dia, a Eucaristia diária, a oração constante, a direção espiritual, a vida comunitária, o serviço, os estudos etc. é necessário buscar crescer no encontro com Cristo mestre, senhor e servo. A relação íntima com Deus em Cristo é essencial para o crescimento pessoal e o desenvolvimento fecundo da missão.

c) Os missionários são como “vasos de barro”, são afetados psicológica e espiritualmente pelos desafios e dificuldades da missão, precisam estar vigilantes e assumir os muitos riscos e cruzes para permanecer fiéis ao discipulado missionário. A necessidade da formação e do cuidado espiritual pessoal é indispensável para desenvolver a saúde e a maturidade humana, espiritual, missionária e vicentina. É essencial uma atitude responsável e conversão cont?nua, para perseverar com fidelidade e fecundidade.” ? (Plano de Ação Provincial 2020-2024).

Será que as comunidades de nossa Província provocam, no bom sentido, os jovens que estão chegando, para se sentirem mais identificados e com a coragem de fazer-lhes um convite a entrar na alegria do evangelho e a fazer as rupturas necessárias para viver como homens que têm suas vidas centradas no Cristo evangelizador dos Pobres?

Estes questionamentos não giram apenas em torno do como transmitir, ou de que valores transmitir, ou a quem transmitir, mas vão mais fundo, questionando o próprio ato de transmitir. É possível transmitir sem dominar, sem impor, sem ferir a liberdade do outro? Há um jeito de transmitir que não faz a cabeça do outro, que é percurso e não curso, que propõe um itinerário apaixonante de formação ao discipulado?

Poderíamos tomar como exemplo de paixão e transmissão da paixão fundante por Jesus na pessoa do apóstolo Paulo, confrontado com três culturas: A judaica, a grega e a romana. Paulo, numa sábia loucura, aprendendo por ensaios e erros, soube abrir um caminho novo neste mundo complexo, e ficou tão empolgado pela novidade do “acontecimento Jesus” e pelos valores do reino, que deu impulso à identidade cristã. Ele soube se libertar do jugo das tradições judaicas, confrontar a inteligência e a sabedoria acadêmica do mundo grego, questionar as leis e a jurisdição romana. Quando sonhamos uma VC mais próxima do evangelho, podemos nos inspirar na leveza institucional da comunidade de Antioquia, aberta, carismática, missionária, em contraste com a rigidez de Jerusalém, a soberba de Atenas e o rigorismo jurídico de Roma.

Diferentes de Paulo, muitos dos membros da vida consagrada sentem-se cansados, outros estacionados e outros ainda buscam uma autorrealização. Segundo o Teólogo Carlos Palácio,SJ “não faltam motivos para nos sentirmos cansados”, contudo, “a Vida Religiosa se fundamenta no Evangelho e, enquanto houver gente apaixonada por Jesus Cristo, haverá Vida Religiosa”. Na opinião do teólogo as congregações têm dificuldades em lidar com essa situação. Para enfrentar esse mal-estar é preciso olhar a história. “É por não saber quem somos que não temos a clareza dentro e fora das nossas comunidades”. E acrescentou: “gastamos a maior parte das nossas energias em administrar a nossa diminuição numérica, o envelhecimento e peso das instituições”. Ele insiste na necessidade de se resgatar o núcleo da identidade da VC: “Quem somos? A VC não é uma réplica da vida leiga cristã, nem da vida monástica, mas uma vida peculiar que capta elementos comuns da vida cristã e faz deles uma síntese. Disso surge uma espiritualidade”. Ele recorre ao Evangelho segundo Marcos (3,13-14), para elucidar a identidade da VC. Para ele, nesse texto, o evangelista reúne três elementos que revelam o núcleo identitário da VC, que são: A experiência do chamamento gratuito; a descoberta de ser chamado para estar com Jesus; e, o ser enviado em missão. Nesse sentido “o importante é captar os três aspectos que não podem ser tomados separados, mas intimamente unidos. A experiência do encontro e da relação pessoal com Jesus dá essa identidade. É uma percepção única de um modo de viver. Se faltar um desses aspectos, a nossa vida começa a desmoronar”, afirmou. Para ele, essa é a mística que alimenta a VC.

Por isso que a Missão não é fazer coisas, mas dar a vida. É impossível realizar uma missão que dê vida sem que esteja enraizada na experiência de amor a Jesus Cristo. É isso que será capaz de unificar a nossa vida. Para o teólogo jesuíta “a Missão não cabe dentro do recolhimento e da paz monástica; caso contrário, ela ficaria desfigurada”.

Portanto eis uma questão pertinente: Estamos verdadeiramente convencidos que um dos principais problemas da VC é de espírito, como também de administração? É possível resgatar a paixão e o entusiasmo pelo que há de novo e original no estilo de VC? Urge em cada um de nós, em nossas comunidades, o aprofundamento da Mística, encarando a vida com sentido espiritual; o estreitamento dos laços de comunhão fraterna; o cultivo da disponibilidade para a missão junto aos Pobres e o aprofundamento do sentido de pertença. A redescoberta da identidade está em nossas mãos. A tradição só é viva quando faz viver e nós, às vezes, estamos cheios de tradições mortas!

*Texto originalmente publicado no Informativo São Vicente ed. 313

Compartilhe esta notícia:
Nome:
E-mail:
E-mail do amigo:
Últimas Notícias