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“Tu és o Cristo” 01 de Dezembro de 2020 Em busca da identidade de Jesus e da ética dos discípulos, para o caminho formativo-catequético do Ano Litúrgico B Pe. Louis Francescon Costa Ferreira, CM
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1. Introdução e objetivo

Foi trilhando este caminho de justiça, que em vós sempre esperamos, ó Senhor. [Is 26,8]

Segundo nossa liturgia cristã, mais um ano se inicia em nossa Igreja: o Ano B, no qual realizaremos uma leitura corrente do Evangelho segundo Marcos. Portanto, é Ano Novo na comunidade eclesial. Esta é mais uma rica oportunidade de conhecer e aprofundar o mistério de Deus e integrar-se nele, gradual e progressivamente, de modo que possamos firmar os passos em nossa caminhada como discípulos-missionários de Jesus, e anunciadores da Boa-Notícia do Reino. Concluímos o Ano A, cujo objetivo foi apresentar os principais elementos da caminhada do NOVO POVO DE DEUS, o qual segue o programa de vida, segundo Mt 5-7 [Discurso inaugural]. Bebendo da fonte mateana, tivemos a chance de nutrir-nos de uma catequese que nos auxilia no agir cristão, conformando-nos à vontade de Deus. Todo o esforço de Jesus é formar discípulos e discípulas que estejam aptos para buscar sobretudo “o Reino dos Céus e sua justiça” [Mt 6,33]. Em Mateus, Jesus é identificado como o novo Moisés, personagem da história de fé de Israel, líder de extrema importância na caminhada do povo da Primitiva Aliança, rumo à terra prometida [Ex 15,22-18,27]. Na montanha, Moisés recebeu as Tábuas da Lei, uma norma de vida que plasma a identidade do povo de Deus, como povo eleito e propriedade de Javé [Ex 24,12-18]. Portanto, se Jesus é o Novo Moisés, então os seus discípulos são o Novo Israel que vive segundo os ensinamentos do Mestre, colhidos no seu autêntico testemunho como Filho amado do Pai que está nos céus; este é o “povo ainda em caminho” (2). Na montanha, Jesus toma a posição do Mestre e proclama as bem-aventuranças, normativa a ser seguida quando se adere ao projeto do Pai que se revela no Filho. Para tornar-se um verdadeiro discípulo de Jesus, é necessário corrigir concepções cristalizadas, as quais impedem ver em Jesus a força do Pai e a irrupção do Reino. Portanto, no discipulado cristão percebemos a prática da nova justiça, a qual foi deturpada pelos magistrados de Israel: “Com efeito, eu vos digo: se vossa justiça não superar a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus” [Mt 5,20] (3). Ademais, para ser considerado digno do Reino dos Céus, o critério será o que se dispensou aos mais pobres, com quem Jesus se identifica. Basta ler Mt 25,31-46 para perceber que toda ação feita aos pequeninos deste mundo, nada mais é que um gesto realizado ao próprio Jesus, cujo destino será a vida eterna para o discípulo que vive segundo os valores evangélicos: “Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo” [Mt 25,34]! Jesus é o modelo de homem que, desde o início de sua missão, busca colocar em prática a vontade do Pai e não o próprio querer: “Deixa por ora, é assim que nos convém cumprir toda justiça” [Mt 3,15]. Deste modo, aprendemos com Mateus que viver a justiça significa ter como o horizonte, meta e ideal de vida o querer de Deus mesmo, vivendo com autenticidade os valores e virtudes inerentes ao Reino: a bondade, a compaixão, a caridade, a fraternidade, a paciência, o perdão, o amor; em suma, “sede, portanto, perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” [Mt 5,48]: buscar a perfeição é caminhar ao encontro do Pai que está nos céus. Portanto, o Ano A esboça os principais elementos sobre o Deus de Jesus, cuja face está revelada na pessoa do Filho e cuja eleição está selada na Nova Aliança do sangue do cordeiro [cf. Hb 13,20]. Por isso, somos a “raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa, o povo de sua particular propriedade” [1Pd 2,9a]. Agora, com a catequese de Marcos é hora de encontrar elementos que nos permitam responder à questão “QUEM É JESUS?”. Eis a pergunta principal do Evangelho de Marcos para os seus ouvintes-leitores: mostrando a identidade de Jesus, o evangelista interpela a comunidade tornar-se discípula-missionária do Mestre. “A intenção fundamental de Marcos, com relação aos seus destinatários, é anunciar Jesus como verdadeiro Homem e verdadeiro Deus, através de um caminho que leve o ouvinte leitor, a comunidade cristã, à aceitação e à profissão de sua fé” [FERNANDES; GRENZER, 2012, p. 34] (4). Cada discípulo será uma centelha do Reino, como sinal da eficácia da Boa-Notícia, a qual o Senhor mesmo confirmará, no início da difusão do Evangelho pelo mundo inteiro [cf. Mc 16,20b]. Ao mesmo tempo que se busca responder sobre a identidade de Jesus, é importante colocar outra questão: “QUEM É O DISCÍPULO? QUEM É A DISCÍPULA?” Também com o Evangelista Mateus vimos que “para o discípulo basta ser como o mestre e o servo como seu senhor” [10,25]. Isso demostra uma relação estreita e profunda com a pessoa de Jesus, o qual “é motor da experiência que nos salva” [MENDONÇA, 2017, p. 134] (5). Portanto, qual a identidade de Jesus, segundo o catequista Marcos? E quais elementos para a formação no autêntico discipulado cristão? Nosso objetivo será apresentar alguns elementos para responder essas perguntas, e elencar quais os desdobramentos na ética cristã quando se diz: “Tu és o Cristo!” Optamos utilizar dois textos-eixos de Marcos, a saber: 7,22-26 e 8,27-30, o que não nos impede recorrer a outros textos bíblicos com ideias afins à catequese de Marcos. Nosso ponto de partida será a perícope do oitavo capítulo, para que, conhecendo a identidade de Jesus, possamos construir e refletir sobre a identidade e a missão do discípulo, com o qual Jesus utilizará uma pedagogia para reconhecê-lo como o Messias que provoca mudanças e novos paradigmas.

2. A profissão de fé comunitária: “Tu és o Cristo

Quando os vossos julgamentos se cumprirem, aprenderão todos os homens a justiça. [Is 26,9b]

A catequese de Marcos consta de dezesseis capítulos. Como dissemos, seu principal objetivo é resgatar a identidade de Jesus de Nazaré e fazer com que homens e mulheres sejam preparados para concretizar o seu projeto, anunciando a Boa-Notícia do Reino. O início da segunda parte do Evangelho de Marcos está na perícope 8,27-29 (6). Nesta secção, Jesus inicia o “Caminho do Filho do Homem” que parece não atender as expectativas de Israel que esperava ver o Messias triunfalista, conquistando territórios, por meio das armas de guerra e impondo-lhes autoridade. Com Jesus tudo é novo, inclusive sua própria identidade, missão e ensinamento. A multidão, espantada com seu primeiro milagre, questiona: “Que é isso? Um ensinamento novo e com autoridade” [Mc 1,27]; outra, admira-se com o que vê: “Jamais vimos coisa igual” [Mc 2,12b]. Ele fala com autoridade, ensina as multidões, realiza milagres e interpreta a Lei na liberdade, buscando o autêntico querer de Deus: vida e dignidade para todos, de modo especial para os mais pobres. Nesta breve perícope, vemos uma afirmação lapidar, cuja posição, no conjunto da obra, o catequista Marcos colocou com um propósito: “Tu és o Cristo” [v 29b]. Conforme o pronome usado [“Tu”], percebemos que a afirmação se refere a uma pessoa, proferida por outrem. O verbo também é importante, porque exprime a identidade de alguém. O verbo “ser” tem um caráter ontológico; ao passo que o verbo “estar” nos apresenta um sentido cronológico. Essa frase é pronunciada pelo discípulo Pedro, depois de Jesus perguntar para os seus quem ele é: “E vós, quem dizeis que eu sou”? [v 28b] Vejamos: a profissão de fé sai da boca de Pedro, mas tal convicção só pode ser vivida em comunidade. Em Mt 16,16, quando Pedro confessa “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”, Jesus lhes dá as chaves do Reino dos Céus, para administrar as primícias da comunidade eclesial. Aqui, está o fundamento da fé cristã, em cuja base Jesus construiu sua Igreja [cf. Mt 16,18]. Voltando a Marcos, após a solene profissão de Pedro, Jesus corrige a concepção que está vigente na mentalidade das pessoas, como “convicção de fé”. Esperava-se um Messias nacionalista, porém Jesus se identifica com o Filho do Homem padecente de Daniel 7,13-15 e com o servo sofredor de Isaías 52-53: “e [Jesus] começou a ensinar que o Filho do Homem deveria sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos escribas, ser morto e, ao terceiro dia, ressuscitar” [Mc 8,31; cf. Mc 2,10.27; 13,26; 14,21.41b.62]. A concepção de um Messias Nacionalista ou Triunfalista consiste na ideia de um eleito como “um guerreiro que expulse os estrangeiros, (e) levante a grandeza nacional de Israel” [KONINGS; GOMES, 2018, p. 44 (7); cf. Mc 8,16; 9,18b; 9,32; 9,38]. No entanto, a restauração de Israel não se dá por meio das armas de guerras e utilização da violência, como forma de conquista política e territorial. Os discípulos do Batista questionam: “És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?” Jesus lhes responde:

Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo: cegos recobram a vista, paralíticos andam, leprosos são purificados, surdos ouvem, mortos ressuscitam e aos pobres é anunciado o Evangelho. E bem aventurado quem não se escandaliza por causa de mim!” [Mt 11,3-4].

O Profeta Zacarias apresentou o estilo do restaurador de Judá: “[teu rei] é justo e salvador, humilde e montado num jumento, sobre um jumentinho, filho de uma jumenta [...]. será exterminado o arco de guerra e ele falará de paz às nações [9,9b-10b]; Isaías apresenta um programa de governo paradigmático à concepção vigente: “De suas espadas, forjarão arados e de suas lanças, podadeiras. Nação contra nação, não levantará espada, e não se adestrarão mais para a guerra. Ó casa de Jacó, vinde, caminhemos à luz do Senhor” [2,4b-5]. Portanto, Jesus, o manso e humilde [cf. Mt 11,29], cessa qualquer forma de violência, instaurando um novo tipo de messianismo que busca promover a vida dos pobres, permitindo-lhes ser protagonista de sua história; aos pobres se juntam também os estrangeiros que poderão aderir à proposta do Reino, porque Deus quer salvar a todos [Mt 15,21-28; Lc 7,11-17; Jo 4 etc]. Ademais, a viúva e o órfão são categorias da predileção de Deus [cf. Zc 7,10; Jr 7,6-7; Sl 10{9b},18; 146{145},9; Mc 10,21; 12,40], os quais sempre são injustiçados por sistemas que desfiguram a Boa-Notícia do Reino. Por três vezes, Jesus anuncia sua Paixão [cf. Mc 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34], com as quais Pedro não admite como desfecho da missão do Mestre! Porém, Jesus o corrige, pedindo-o para que tome a posição de discípulo, isto é, colocar-se atrás do Mestre, buscando uma mudança de mentalidade para pensar as coisas de Deus e não conceber os fatos vindouros, segundo os critérios humanos [cf. Mc 8,33b]. Aqui, podemos recordar Rm 12,2: “Não vos conformeis com o mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e de julgar, para que possais distinguir o que é da vontade de Deus, isto é, o que é bom, o que lhe agrada o que é perfeito”. Eis um desafio para Pedro e também para nós: renunciar a própria vida, os interesses pessoais, e carregar a cruz para tornar-se como o Mestre, buscando sempre colocar em prática o querer de Deus [cf. Mc 8,34b-37]! Por isso, dizer que “Jesus é o Cristo” é um ato de fé comunitário e pessoal, no qual está a base da fé cristã. Por meio desta solene profissão, precisamos encontrar qual o desdobramento ético para a vida e missão de quem se disponibiliza a colocar-se como seguidor de Jesus. A cada dia celebrado, cada homem e mulher, membros da comunidade eclesial, precisam progredir no caminho de fé, e, ao nutrir-se das catequeses evangélicas, descobrir a vontade de Deus e aprender a praticar a justiça, da qual Jesus é protótipo e exímia testemunha!

2.1 Quem é Jesus de Nazaré, segundo a concepção do Evangelista Marcos?

Na introdução do relato evangélico, Marcos nos diz: “Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” [1,1]. O título de um texto bíblico revela a intenção do autor, a qual se sustentará ao longo dos demais capítulos. Marcos é o primeiro catequista a utilizar o termo “evangelho” para descrever um relato de fé, o qual “em seu sentido mais popular e difundido [...] referia-se a qualquer tipo de ‘boa notícia’” e “era usado tanto entre os judeus como no mundo do Império” [OPORTO, 2015, p. 22] (8). Aqui, falamos de um texto que conta para o ouvinte-leitor uma mensagem sobre a vida de Jesus; portanto, trata-se de um texto sagrado. Como tal

evangelho é, então, o ‘anúncio de um acontecimento extraordinário’ nos lábios de quem o transmite e para os ouvidos de quem o escuta. Os primeiros cristãos assumiram e utilizaram o termo euangélion para definir o evento Jesus Cristo na sua totalidade. Euangélion é a mensagem salvífica, anunciada oralmente, e tem seu início na vida e obra de Jesus, pois ele é a boa notícia revelada aos homens. [FERNANDES; GRENZER, 2012, p. 8-9]

Em termos cronológicos, Marcos é o relato evangélico mais antigo, do qual Mateus e Lucas se serviram como fonte. Por isso, são conhecidos como “Evangelhos Sinópticos”, ou seja, “com a mesma óptica”. Assim, compreendemos o porquê de sua brevidade, como tempo da narração (9), o qual não deixa de apresentar-nos uma teologia sólida e consistente, que auxilie o discípulo progredir no conhecimento de Jesus e sentir-se interpelado ao seu seguimento. Se Mateus é profundamente eclesiológico, então Marcos tem um forte conteúdo cristológico. Portanto, neste Ano B, trilharemos um itinerário cristocêntrico, descobrindo a identidade de Jesus que se mescla à identidade e ética dos discípulos. Segundo a exegese bíblica, se atribui a João Marcos como autor, citado várias vezes em outros textos do Novo Testamento: At 12,12.25; 13,5-13; 15,37.39; Cl 4,10; Fm 24; 2Tm 4,11; 1Pd 5,13 [HARRINGTON, 2019, p. 453] (10). Em Mc 14,51-52, talvez estaria aí um dado sobre o autor implícito, pois, o autor real não é possível saber quem ele é. Ademais, Marcos teria escrito para uma comunidade que tinha o desejo de conhecer Jesus, pois não provinha do judaísmo, ou seja, os leitores implícitos são cristãos não-judeus. Assim, se explica as inúmeras expressões aramaicas e costumes judaicos, ao longo do texto: 3,17; 5,41; 7,11.34; 14,36; 15,22.34; 7,3s; 14,12; 15,42 [idem]. Jesus é este homem que passou pelo mundo fazendo o bem [cf. Mc 7,37]. Por isso, ele é o modelo autêntico de homem justo, isto é, aquele que pratica a justiça [recordar o termo, segundo o Ano A]. Consequentemente, Deus lhe tem profundo amor: “Tu és o meu Filho amado, em ti, eu me agrado” [Mc 1,11]. Em Jesus, encontra-se encarnado todo o projeto de Deus para a humanidade. Com sua encarnação e com seus gestos e palavras, Jesus inaugura o reinado de Deus na história dos homens. Percebamos como a liturgia é perfeita, e propõe um caminho gradual para a formação dos discípulos-missionários: no Ano A conhecemos o Deus de Jesus e qual é o seu projeto para o ser humano, de modo que o discípulo possa assimilá-lo em sua vida e colocá-lo em prática, a fim de alcançar o Reino dos Céus [ler Mt 5-7 || Mt 24-25]; no ano B, vemos o modelo perfeito de homem justo, realizando tudo o que Deus quer. No momento crucial, Jesus abre mão do seu próprio querer e não abandona o projeto do Pai, levando-o às últimas consequências: “E dizia: ‘Abá, Pai! Tudo te é possível. Afasta de mim este cálice. Contudo não seja o que eu quero, mas o que tu queres’” [Mc 14,36]. Esta forma de viver diz respeito ao reinado de Deus na história que se inaugura com a propagação da Boa-Notícia: “Depois que João foi preso, Jesus foi para a Galileia, pregando o Evangelho de Deus e dizendo: ‘Cumpriu-se o tempo, e está próximo o Reino de Deus. Arrependei-vos e crede no Evangelho’” [Mc 1,14-15]. Depois disso, o relato apresenta o chamado dos primeiros discípulos, Simão e André: “Vinde após mim, e eu vos farei pescadores de homens” [Mc 1,17]. Mas em que consiste o Reino de Deus?

O Reino de Deus é a verdadeira obsessão de Jesus. Para Jesus, o Reino é o senhorio efetivo e absoluto do Pai sobre todos e sobre tudo. Ademais quando Deus reina, tudo se modifica. É a revolução e a transfiguração absoluta, global e estrutural dessa realidade, do homem e do cosmos, plenificados de todos os males e cheios da realidade de Deus (1Cor 15,28). [NODARI; CESCON, 2017, 84] (11)

Segundo Marcos, “o Reino de Deus é como alguém que lança a semente sobre a terra. Quer esteja dormindo ou acordado, de dia e de noite, a semente germina e cresce, sem que ele saiba como. Por si mesma, a terra produz fruto [...]” [Mc 4,26-28a; cf. Mc 9,1.47b; 10,14.23.25; 14,25; 15,43]. Para entrar na dinâmica deste Reino, implica mudança de mentalidade, e deixar-se guiar pela providência de Deus [cf. Mc 1,15; Lc 12,22-32], cujos sinais encontram-se nas ações e gestos de Jesus! Como os ouvintes não conseguem compreendê-los, Jesus lhes fará algumas correções, o que pode desdobrar-se em adesão ou rejeição à sua mensagem. “Jesus pretende mostrar aos discípulos que a confissão Tu és o Cristo não era uma simples afirmação que brotara nos lábios de Pedro, mas consistia em uma revelação que exigia assumir, aderir e entender o plano divino para o Messias, isto é, a realização do Reino de Deus e sua vontade” [FERNANDES; GRENZER, 2012, p. 32].

a) Jesus e seus discípulos se deslocam para os povoados de Cesareia de Felipe, uma cidade que “se encontra na fronteira entre a região dos judeus e o mundo pagão” [KONINGS; GOMES, 2018, p. 44]. Uma geografia muito significativa para o que virá a seguir. Recordemos que com Mc 8,27, iniciamos o Caminho do Filho do Homem, no qual Jesus percorrerá acompanhado dos que estão com ele [cf. Mc 3,14]. No caminho, Jesus lhes faz uma pergunta. Primeiramente, Jesus pede dos discípulos o que eles têm ouvido dos “homens” sobre sua identidade; decerto, como a multidão o vê [Mc 6,14-15]: “Uns dizem João Batista; outros, Elias; outros um dos profetas”. Com efeito, a multidão sempre está próxima de Jesus, se admirando com o ensinamento que vem dele [cf. Mc 1,22; 2,2.13; 3,7.20; 4,1; 5,21; 6,34.45.56; 7,14; 8,1.34; 9,14.15; 10,16.46; 12,12.37]; a multidão se encontra fora do Grupo dos Doze, mas faz com que a fama de Jesus se espalhe por toda a região da Galileia [cf. Mc 1,28];

b) Se os discípulos estão com ele, então Jesus lhes pede seu parecer: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro diz: “Tu és o Cristo”. Com essa profissão de fé, chegamos ao ponto alto da catequese de Marcos, cuja introdução identifica Jesus como “Filho de Deus”; “Messias” ou “Cristo”, hebraico e grego respectivamente, que significam “o Ungido de Deus”; Jesus é o Eleito para salvar o povo de Deus, mas as autoridades políticas e religiosas de Israel não o reconhecerão como tal, porque estão apegados à tradição dos antigos [cf. Mc 7,13] e impossibilitados de verem a novidade que há na pregação de Jesus. Aqui, compreendemos o quão necessário é percorrer este caminho, na companhia do Mestre, para conhecê-lo com convicção. Sem percorrer o caminho com Jesus, estando próximo dele, qualquer definição sobre sua pessoa e má interpretação do que ele faz serão deturpadas, a ponto de querer eliminá-lo [“os fariseus imediatamente conspiraram com os herodianos contra Jesus, a fim de o matar” |Mc 3,6; 11,18; 14,1|];

c) Ao final, Jesus lhes faz um pedido: “E Jesus os advertiu para que a ninguém falassem a seu respeito”. Se chegamos ao ponto alto do relato bíblico e se a intenção do autor é revelar a identidade de Jesus, então por que manter segredo? Voltamos a um aspecto que só encontramos em Marcos, o chamado “Segredo Messiânico”. O mesmo pedido Jesus já o fizera em outros trechos do Evangelho [Mc 1,34.44; 3,12; 7,36; 8,26.29; 9,9]. Do que se trata? Consiste em um recurso literário bem significativo, cujo objetivo é fazer com que o ouvinte-leitor não tire conclusões antecipadas do caminho de Jesus, a via crucis, o que pode levar a incompreensões e ideias errôneas sobre sua pessoa e missão! É isso que Marcos está tentando reverter: focando na pessoa de Jesus, como o “Filho de Deus” [Mc 1,1], “Filho do Homem” [Dn 7,13] e “Servo sofredor” [Is 52-53], ele permite ao ouvinte-leitor perceber que o messianismo de Jesus caminha na contramão da lógica humana (“Tu [Pedro] não pensas de acordo com Deus, mas de acordo com os homens” |Mc 8,33b|). “Pelo segredo messiânico, Jesus revela o caminho assumido, capaz de manifestá-lo como Filho que verdadeiramente se entregou à vontade do Pai” [FERNANDES; GRENZER, 2012, p. 30]. Portanto, o Segredo Messiânico levará o leitor a ver Jesus como o homem que se coloca à serviço da causa do Reino, não o Messias nacionalista, com a fama de guerreiro lutador! Perceba a fineza teológica de Marcos e a reviravolta que propõe:

em Jesus, em suas ações e palavras se revela o tempo novo e definitivo de salvação. É esta uma realidade que explode e não pode ficar escondida. Contudo, esta explosão do reino de Deus realiza-se plenamente, mas de maneira paradoxal, através da morte e ressurreição. Então só a luz deste acontecimento pode ser entendido todo outro gesto e palavra de Jesus” [FABRIS; BARBAGLIO, 2014, p. 508] (12).

Sem uma teologia da cruz, o cristão não poderá ser um discípulo autêntico, porque, como comunidade eclesial, “nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios [...]. Cristo é o poder e sabedoria de Deus, pois o que é loucura de Deus é mais sábio que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte que os homens” [1Cor 1,23-24]. Jesus porta, como ferramenta de trabalho para o anúncio da Boa-Notícia, o amor de Deus e seu querer, o projeto para a prática da justiça, do qual Jesus é modelo perfeito. Feita a correção, tendo passado pelo crivo da cruz e vivendo com autenticidade os valores do Evangelho, o discípulo poderá dizer: nós vimos, e damos testemunho [cf. 1Jo 4,14].

2.1.1 Um cenário geográfico que revela uma predileção

Como cenário geográfico, por que Jesus inicia o anúncio da Boa-Notícia na Galileia? Qual a intenção de Marcos? A Galileia estava longe do Templo, de Jerusalém e da Judeia [cf. BALANCIN, 2018, p. 26] (13). Não era um lugar bem quisto: “Terra de Zabulon, terra de Neftali, caminho do mar, região do além Jordão, Galileia das Nações” [Mt 4,15; cf. Is 8,23; 1Mc 5,15]. “Nações”, aqui, tem o mesmo significado que “pagãos”, ou seja, os povos circunvizinhos de Israel que não professavam a fé judaica. Em João 4,9b, o mal-estar com os samaritanos, também pagãos, é explícito: “Os judeus, de fato, não se dão com os samaritanos”. Se se constata essa realidade, então por que iniciar um ministério ali? Longe do centro, a Galileia está na periferia, o lugar dos marginalizados [cf. BALANCIN, 2018, p. 26]. Logo, os pobres são os primeiros destinatários da Boa-Notícia do Reino. “Evangelho” é uma boa nova de libertação, integração, valorização da vida, porque o Deus de Jesus é o Deus da vida. O salmista diz “porque Altíssimo é o Senhor, mas olha os pobres” [Sl 138{137},6] como convicção de fé de que Deus está ao lado dos marginalizados, rejeitados pela classe dominante e política do tempo de Jesus. Deus quer mostrar sua força de transformação, a partir dos fracos. O Evangelista Lucas afirma que a unção do Senhor está sobre Jesus, para que ele anuncie a Boa-Notícia aos pobres [4,18]. Deste modo, compreendemos que as ações de Jesus, curas realizadas ao homem com espírito impuro, à sogra de Pedro, ao leproso, ao paralítico, entre outros, demostram a libertação do ser humano, cuja vocação é: “no espaço da autonomia que Deus lhe abre ao retirar-se, assumir sua responsabilidade diante do criado e ser criador de um mundo verdadeiramente humano pelo doce poder de sua palavra. É assim que o ser humano se torna o que é, imagem de Deus” [WÉNIN, 2006, p. 21] (14). Libertos de suas amarras e agruras, de todo mal que lhes impedem ser homem e mulher livres, Jesus faz de seus discípulos e discípulas autênticos testemunhos de sua mensagem. Temos um grande compromisso como continuadores da missão do Filho de Deus. Reconhecer Jesus como “o Cristo” tem suas implicações na vida do cristão. Quais seriam elas? A profissão “Tu és o Cristo” precisa ser assimilada diariamente, com atitudes que condizem com os discursos. A responsabilidade do discípulo é grande, e se trata de um projeto de felicidade: o Reino de Deus é para os pobres e, segundo o salmista, feliz de quem pensa no pobre e no fraco, porque o Senhor o libertará no dia do mal, guardará sua vida e irá torná-lo feliz sobre a terra [cf. Sl 41{40},2-3]. Portanto, vejamos a inclusão: Jesus inicia seu ministério na Galileia [cf. Mc 1,14]; o que isso implicará na missão dos discípulos? No sepulcro vazio, o jovem com vestes brancas dirá às mulheres: “Ide, porém, dizer a seus discípulos e a Pedro: ‘Ele vai à vossa frente para a Galileia; lá o vereis, como vos disse’” [Mc 16,7; cf. Mc 14,28]. A Galileia se torna o lugar de experiência com o crucificado-ressuscitado, na pessoa do pobre! Foi lá que Jesus deu início ao seu messianismo, será também lá o ponto de partida dos seus seguidores, cuja missão é proclamar a Boa-Notícia do Reino de Deus.

3. Quem é o discípulo (a) de Jesus?

Ó Senhor e nosso Deus, dai-nos a paz, pois agistes sempre em tudo que fizemos. [Is 26,12]

Quando Marcos se refere à João Batista, o relato nos diz que ele é o mensageiro a frente, cuja voz clama deserto, aplicando ao profeta um texto da profecia de Isaías [cf. Mc 1,2; Is 40,3]. Todos os elementos de um texto bíblico têm seu porquê e precisamos captar a mensagem, ora explícita ora implícita. Vimos que Jesus foi para a Galileia, pregar o Evangelho depois da prisão de João. O profeta sai de cena e dá lugar ao Filho do Homem. E já compreendemos o porquê da Galileia. No entanto, o que significa o deserto, em âmbito bíblico? No Antigo Testamento, o povo atravessou o deserto para chegar à terra prometida, da qual Moisés não tomou posse e elegeu como líder Josué para instruir o povo a caminho [Ex 15,22-18,27]. Foram quarenta anos de altos e baixos, segundo o Sl 95{94},10. No deserto, Jesus é tentado em um período de quarenta dias, logo após a cena do batismo no rio Jordão. João, o Batista, batizava no deserto instruindo o povo para a conversão, ou seja, a mudança de mentalidade e atitude [cf. Mc 1,4]. Ora, o deserto é o lugar da decisão ou rejeição pelo projeto de Deus.

Para Marcos, o deserto é lugar de encontro com Deus e de decisão. O deserto é lugar e momento de recuperar as forças. [...] No deserto prevalecem tons luminosos: comunhão com Deus, paz messiânica, harmonia com a natureza e bênção divina sobre a qual se deixa conduzir pelo Espírito de Deus, inclusive quando enfrentamos as tentações e as trevas. [NODARI; CESCON, 2017, p. 19].

Jesus, tentado no deserto, não se deixa subornar pelo diabo, mas se mantém convicto do querer de Deus para sua vida [cf. Mt 4,10; Lc 4,13]. “Do deserto, Jesus vem robustecido para seu caminho e sua obra radicalmente decidido por Deus e pelo anúncio do Reino” {idem} [cf. Lc 4,1]. O povo da primitiva aliança caminha entre erros e acertos, escutando a voz de Deus, sob a constante intervenção de Moisés e, em seguida, Josué. É um povo de cabeça dura, de coração transviado, que não conhece o caminho do Senhor [Sl 95{94},10-11], porém Deus é “compassivo e clemente, paciente e de grande misericórdia” [Sl 145{144},8]! Esta mesma realidade faz parte da vida dos discípulos. Jesus quer dar aos seus companheiros na missão, uma formação sólida e consistente, de modo que tomem consciência do que se trata o seu messianismo, porque a missão do discípulo se espelha na missão de Jesus, e eles não podem se desfalecerem pelo caminho [cf. Mc 8,3]. O próprio Jesus os preveniu de tudo [cf. Mc 13,23]. Logo, o discípulo-missionário é todo aquele que opta livremente ao seguimento a Jesus, assimilando os valores do Evangelho e contribuindo com a construção do reinado de Deus. É discípulo de Jesus quem consegue colocar em prática a vontade de Deus [cf. Mc 3,35]. A vida dos discípulos será um testemunho autêntico de disponibilidade para com a causa do Reino, defensores da justiça, do direito e da paz! À concepção de lutar com armas de guerra para conquistar o domínio territorial, Jesus corrige com uma proposta inerente à vida do discípulo: “Bem aventurados os mansos, pois eles herdarão a terra” [Mt 5,5], isto é, a justiça do Reino ensina que o discípulo não deve praticar violência nem ter-lhe sentimentos afins. Ademais, Jesus lhes adverte: “Sabeis que os que são considerados chefes das Nações, e os seus grandes impõem sua autoridade. Entre vós não seja assim. Quem quiser ser o maior, no meio de vós, seja aquele que vos serve e quem quiser ser o primeiro, no meio de vós, seja o servo de todos” [Mc 10,42-44]. Para que os discípulos tomem consciência disso, Jesus fará um gesto simples, tocando em um dos cincos sentidos do corpo humano: a visão! Mc 8,27-30 tem como texto precedente Mc 8,22-26: o cego de Betsaida. Esse relato conclui a primeira parte da catequese de Marcos. Portanto, nosso questionamento é: qual a intenção do autor em colocá-lo, aqui? Este milagre realizado por Jesus só se encontra em Marcos; logo, ele é relevante para o autor e sua comunidade, e o será também para nós. Até então, há muitos questionamentos sobre os gestos de Jesus e sua própria identidade: por que fazer milagres em dia de sábado [Mc 3,1-6]? Este homem não é um blasfemo com um espírito impuro [Mc 3,30]? “Quem é este que até o vento e o mar lhe obedecem” [Mc 4,41]? A própria família de Jesus diz que ele está louco, portanto, fora de si [cf. Mc 3,21]. Ora, quando Jesus restaura o povo de Deus chamando os Doze, Marcos relata: “Então constitui doze para estarem com ele e para enviá-los a anunciar” [3,14]. O chamado se dá na montanha, como lugar da experiência com Deus [cf. Ex 19-20]. Logo, trata-se de uma instituição divina, por meio de Jesus! Mc 8,22-26 diz que Jesus e os seus foram à Betsaida e lhe trouxeram um cego. Quem o trouxe, suplica a Jesus que toque nele; assim, ele tomou o cego pela mão e o levou para fora do povoado, aplicando em seus olhos saliva e lhe perguntou: “Vês alguma coisa?” O homem ergueu os olhos e disse a Jesus que via pessoas como se fossem árvores caminhando! Pela segunda vez, Jesus lhe impõe as mãos e ele vê perfeitamente, ou seja, ficara curado! Jesus lhe pede que ele não entre no povoado. Se este trecho se encontra em um lugar estratégico da catequese de Marcos, então qual seria a intensão do autor? Nele está personificado a incapacidade de os discípulos verem quem é Jesus. “A fé é uma experiência de exterioridade, uma saída das nossas visões repartidas, um romper com nossas perspectivas. [...] O Senhor nos conduz para fora dos círculos fechados das nossas interrogações e evidências” [MENDONÇA, 2017, p. 127]. A cegueira impede compreender o tipo de messianismo que Jesus instaura, a começar pela Galileia, longe do centro religioso e político; sem este passo, o coração dos discípulos continua endurecido [cf. Mc 6,52b; 8,17]. Por isso, o Mestre utilizará de uma pedagogia diferente para formar os seus mais próximos, com o intuito de terem condições de continuar o anúncio da Boa-Notícia, pelo mundo inteiro, cuja força de transformação se inicia com o amor ao próximo, o primeiro mandamento e o cumprimento perfeito da Lei [cf. Mc 12,33; Rm 13,8.10].

a] Jesus tomará os discípulos pela mão, para conduzi-los e instruí-los, a fim de compartilhar com eles a missão de anunciar e amar, chamando atenção para a renúncia da própria vida para seguirem o caminho da cruz [cf. NODARI; CESCON, 2017, p. 43]. Por tratar-se de uma formação precisa e direta, Jesus leva o cego para fora do povoado, longe da multidão. Com efeito, “a transformação só acontece quando aceitamos a deslocação de nosso ponto de vista habitual [...] para um lugar novo, que não é bem um lugar, mas uma relação uma companhia” [MENDONÇA, 2017, p. 134]. Recordamos o lugar que se inicia a catequese de Marcos: o deserto, lugar de decisão, que implica mudança de atitudes e hábitos, por isso, o chamado à conversão e arrependimento para o perdão dos pecados [cf. Mc 1,4], bem como o chamado dos primeiros para estarem com Jesus, os quais lhe fazem companhia para aprenderem os ensinamentos do Mestre e assimilá-los na vida;

b] A cegueira implica uma dupla dificuldade: impede ver e compreender, ou seja, não assimilam a proposta de Jesus, pois a visão dos discípulos está ofuscada. O cego não consegue separar coisas de homens [“Eu vejo as pessoas como se vissem árvores andando”]. Segundo Mendonça [2017, p. 134], “a medicina é o próprio Jesus, o que nos transforma é o dom que Jesus faz de si. Por isso, o gesto da saliva é acompanhado por um outro: o da imposição das mãos que representa igualmente uma transmissão vital”. Em nossa saliva há também componentes de nossa identidade. Jesus não só cura a cegueira do homem, mas transmite a ele elementos constituintes de seu próprio ser, restabelecendo integralmente a vida do cego, e restituindo todos os seus sentidos. “A saliva é um elemento simbolicamente forte, porque a saliva é uma seiva, é uma secreção que vem do próprio Jesus” [idem]. Se o cego personifica os discípulos, então eles precisarão assimilar o jeito de ser de Jesus, para compreenderem, de fato, o que o Mestre propõe como um caminho alternativo à lógica que sustenta a ideia de muitas pessoas;

c] Depois da cura, Jesus o mando para casa, com um pedido inusitado: “Não entres no povoado”. No início do texto, Marcos relata que “trouxeram um cego até Jesus”. O que fora cego agora está livre e pode caminhar para o lugar onde reside. Não se faz mais necessário que ninguém o conduza até ao lugar que Marcos privilegia como espaço do diálogo, discernimento, aprendizagem e escuta: a casa [cf. Mc 3,20; 4,10.34; 5,19; 7,17; 8,26; 9,28.33; 10,10]. Isso significa que, depois do encontro com Jesus, “há um novo horizonte, uma vida nova que começa, não é para voltar ao mesmo ponto de partida, ao mesmo lugar” [MENDONÇA, 2017, p. 134].

Portanto, para trilhar o caminho do Filho do Homem, do Messias rejeitado “pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos escribas”, é necessário estar com os olhos abertos; os magistrados de Israel não conseguiram dar este passo e permaneceram nas trevas, cegos na sua escuridão espiritual. De fato, Jesus, luz do mundo, “veio para o que era seu, mas os seus não a receberam” [Jo 1,11; Mc 2,.16.24; 3,2.22; 7,1; 8,11; 10,2; 12,12b.13.15.]! Se da parte dos liturgos e também parte da multidão não foi possível esta acolhida, conversão de mentalidade e atitude, então a figueira estéril representa a incredulidade daqueles que se fecharam ao projeto de Deus revelado em Jesus [cf. KONINGS; GOMES, 2018, p. 58; Mc 11,12-14]. Por meio da imposição das mãos, “Marcos representa a imagem da nova dinâmica do Reino, o processo de abrir totalmente os olhos dos discípulos, para que enxergassem com clareza a sua pessoa e sua missão. Jesus quer adesão consciente e livre, e não ingênua” [NODARI; CESCON, 2017, p. 44; cf. Mc 10,16]. No final desta trajetória, espera-se do discípulo uma maturidade humana e espiritual profunda, com a qual Marcos representa com cura do cego de Jericó que é salvo pelo fé e, quando começa ver, “foi seguindo Jesus pelo caminho” [Mc 10,46-52]; com este relato de cura, se conclui mais uma secção na catequese de Marcos (15). Por que terminar duas secções com relatos de cura, cujos personagens personificam os discípulos? Não poderíamos recordar o Apóstolo Paulo que completa a corrida e guarda a fé [cf. 2Tm 4,7-8]? Quem, porém, perseverar até o fim, Jesus não prometeu que será salvo [cf. Mc 13,13]? Com efeito, o seguimento a Jesus comporta uma formação permanente que só termina com a morte, através de uma trajetória livre, consciente e responsável [cf. NODARI; CESCON, 2017, p. 109]. De fato, Pedro questiona Jesus sobre o fato de ter deixado tudo para segui-lo [cf. Mc 10,28]. Na dinâmica do Reino, a salvação é dom e tarefa; é um caminho gradual e progressivo, com um empenho comunitário e pessoal para assimilar o querer de Deus na vida, na sociedade, na família, no trabalho, no matrimônio, na consagração etc. Segundo o Documento de Aparecida parágrafo 164 (16), “o discipulado e a missão sempre supõem a pertença a uma comunidade”. O processo de conversão, como inicia a catequese de Marcos, nos esclarece que

o compromisso do discípulo missionário é uma firme, decidida e transcendental resposta ao amor fiel de Deus, que exige dar um significado novo à própria existência. É uma resposta que provoca, por parte da pessoa que deve se comprometer, uma verdadeira mudança de vida, que afetará sua pessoa inteira, todas as suas decisões e seu futuro. [NODARI; CESCON, 2017, p. 103]

Eis a perspicácia de Marcos: iniciar seu evangelho no deserto, lugar da opção ou rejeição a um chamado de conversão, e também a Galileia como lugar dos marginalizados, os quais só podem contar com Deus. Como o deserto e a montanha, o pobre é Jesus na carne, no qual devemos depositar o amor e a justiça do Reino. Aqui se encontra um estilo de vida que já aprendemos com Mt 5-7, cujo desdobramento é a prática do amor-serviço! Portanto, o Ano B será este caminho formativo-catequético, no qual, a partir da leitura corrente da catequese marcana, poderemos colher os elementos essenciais para compreender a nossa identidade como discípulos-missionários, a partir do testemunho e vida de Jesus! Se Marcos centra sua catequese na pessoa de Jesus, então, ao final deste percurso, ouvimos da boca do centurião romano, já no desfecho cruel pela “justiça” humana: “Verdadeiramente, este homem era filho de Deus” [Mc 16,39]. “Ide pelo mundo inteiro e proclamai o evangelho a toda criatura” [Mc 16,15] será o imperativo categórico de todo homem que se dispõe trilhar o caminho da cruz, deixando de lado interesses próprios e concepções errôneas sobre o Reino instaurado por Jesus. O que Jesus fizera, agora será a vez dos discípulos: “expulsarão demônios em meu nome; falarão novas línguas; se pegarem e beberem veneno mortal, não lhes fará mal algum, e quando impuserem as mãos sobre os enfermos, estes ficarão curados” [Mc 16,17-18]. Na cura do cego, como também no envio, os discípulos são revestidos da força vital de Jesus, a qual lhes capacita para o trabalho missionário, partindo da Galileia. Como Deus é fiel, ele mesmo irá cooperar com a nossa missão, confirmando a palavra pelos sinais que acompanharão o anúncio da Boa-Notícia [cf. Mc 16,20]. Se Jesus passou pelo mundo fazendo o bem, colocando em prática o projeto de Deus, façamos deste versículo nossa oração para trilhar este caminho com coragem e determinação: “Eu quero cantar o amor e a justiça [...], desejo trilhar o caminho do bem” [Sl 100{101},1-2].

À Ana Angelina da Costa e Irmã Maria das Mercês Ribeiro Amorim, FC, pelo seu testemunho de vida coerente com a Boa-Notícia do Reino, exprimindo, em gestos e palavras, sua opção radical no seguimento a Jesus.


NOTAS

(1) Missionário lazarista [Congregação da Missão], graduado em Filosofia [ISTA] e Teologia [FAJE].

(2) Prefácio da Solenidade de Nossa Senhora da Assunção.

(3) Para as citações bíblicas, estamos utilizando a Bíblia Sagrada da Tradução oficial da CNBB, 2. ed., 2019, com duas exceções, a saber, o Sl 138{137},6 e Sl 100{101},1-2, os quais optamos a tradução da LITURGIA DAS HORAS.

(4) FERNANDES, Leonardo Agostini; GRENZER, Mathias. Evangelho segundo Marcos: eleição, partilha e amor. São Paulo: Paulinas, 2012.

(5) MENDONÇA, José Tolentino. A mística do instante: o tempo e a promessa. São Paulo: Paulinas, 3. reimp., 2017.

(6) Para a estrutura literário-teológica do Evangelho de Marcos, consultar a bíblia da CNBB, página 1390.

(7) KONINGS, Johan; GOMES, Rita Maria. Marcos: o evangelho do reinado de Deus. São Paulo: Loyola, 2018.

(8) OPORTO, Santiago Guijarro. Os Evangelhos: Memória, Biografia, Escritura. São Paulo: Loyola, 2015.

(9) “O tempo da narração (temps racontant)”. Corresponde ao tempo empregado para descrever as cenas. Conta-se pela quantidade de palavras, frases, parágrafos e páginas”. In VITÓRIO. Jaldemir. Análise narrativa da Bíblia: primeiros passos de um método. Bíblia como leitura, 8. São Paulo: Paulinas, 2016, p. 113.

(10) HARRINGTON. Wilfrid J. Chave de leitura para a Bíblia: a realização, a promessa, a realização. São Paulo: Paulus, 11. reimp., 2019.

(11) NODARI, Paulo César; CESCON, Everaldo. Aprendendo com o evangelho de Marcos. São Paulo: Paulus, 1. reimp., 2017.

(12) FABRIS, Rinaldo; BARBAGLIO, Giuseppe. Os Evangelhos I. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2014.

(13) BALANCIN. Euclides Martins. O Evangelho de Marcos: quem é Jesus? São Paulo: Paulus. 13. reimp., 2018.

(14) WÉNIN, André. O homem bíblico: leituras do Primeiro Testamento. São Paulo: Loyola, 2006.

(15) O Evangelista Mateus se utilizará de um recurso semelhante ao esquema de Marcos. Em Mt 20,29-34, temos o relato dos dois cegos de Jericó. Mateus geralmente duplica o que em Marcos é apenas um. Se este relato se encontra nesta secção e neste conjunto da obra, o autor também tem a intensão de chamar atenção do ouvinte-leitor para o que se seguirá com Jesus. E para compreender tudo que acontecerá com Jesus, é necessário curar a cegueira espiritual, a qual impede dar passos acertados no discipulado do Reino.

(16) Disponível em https://docs.google.com/file/d/176mt4s0Q_8xR9HLB6aaeOOceiqYgapg2AQphbbUUTloACyo9on4s0iOYkPUi/edit. Acesso em 13 de setembro de 2020.

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