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Novos caminhos para a Amazônia 23 de Junho de 2020 Pe. Paulo Venuto, CM
"Talvez nesta maneira ousada, desbravadora e missionária vislumbrada pelo Sínodo, residam a resistência e o medo do novo de alguns grupos de dentro da própria Igreja e de fora dela. O Espírito é maior que todos. "
A a     

Falar da Amazônia é como reler os versículos iniciais do livro do Gênesis, quando o Criador, ao organizar o universo, “um caos vazio”, deu a todas as coisas harmonia e dinamismo envolventes que fizeram o autor sagrado expressar: “E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo era bom”. A Amazônia é um dom da criação que nos comunica a bondade e a ternura do Deus da vida. Neste pedaço do Planeta, ele nos presenteou com um pedaço do Paraíso, fazendo de seus povos os guardiões desse jardim. Trata-se de um lugar teológico e fonte de revelação de Deus, como está expresso no Instrumentum Laboris (IL) do Sínodo para a Amazônia.

Sabemos que a Amazônia, como bioma, não se restringe somente ao território brasileiro e que se mostra “um enigma a ser decifrado”, com sua biodiversidade sem comparação no planeta. Por isso, não podemos abordá-la com um olhar simplista, folclórico, estereotipado, como espaço vazio e subutilizado, imenso celeiro de recursos hídricos e minerais para os quais todo o mundo se volta com olhos de interesse. E, agora mais ainda, com olhares de preocupação em relação ao futuro do planeta.

Nestes dias, enquanto escrevo, grande parte do território da Amazônia brasileira, nos Estados de Rondônia, Pará, Mato Grosso e Amazonas, arde em fogo com milhares de incêndios, frutos de técnica primitiva de agricultura ou, presumidamente, da má fé de criminosos, mesmo. E os efeitos danosos podem ser vistos e sentidos a quilômetros dali, escurecendo, em plena tarde, a cidade de São Paulo, e fazendo cair partículas das queimadas nas águas de chuva.

Por essas razões, podemos perceber a importância da tomada de consciência do jardim que nos foi confiado. Quem faz o jardim é o jardineiro com seu cuidado e a atenção com o que nele está plantado. Só assim é possível encontrar nas palavras do Gênesis a responsabilidade que o Criador colocou em nossas mãos: “...sejam fecundos, multipliquem-se, encham a terra e a submetam...” (Gn 1,8). Parece que tomamos muito a sério o “submetam”, a ponto de querer exaurir a qualquer custo as riquezas desse paraíso.

O cenário que envolve a Amazônia é complexo, na medida em que nos perguntamos pelos agentes, internos e externos, que atuam nela e por ela. Importa ver com clareza o grau de comprometimento e a maneira concreta como prezam ou desprezam o futuro e a cultura dessa região. Não se pode ingenuamente supor que todos atuam com igual lisura e desinteresse. Prevalecem, na maioria dos casos, os interesses e as paixões que dominam a vida econômica nacional e transnacional, na geopolítica que subsiste por baixo das reais intenções.

 A Amazônia brasileira apresenta características peculiares em relação às demais regiões do Brasil; internamente, no entanto, não é homogênea, o que faz alguns autores dizer que são muitas as “Amazônias”, tantas quantas se estendem pelos nove Estados brasileiros que compõem a Amazônia Legal, instituída por lei, embora apresentando diferenças de ecossistema. Todas elas irmanadas nas carências e desníveis sociais, heranças históricas de uma colonização predatória, no passado, e acentuadas, durante o regime militar, com os grandes projetos desenvolvimentistas que trouxeram um crescimento da população urbana com a precarização das condições de moradia, de saneamento básico, mazelas inerentes a esse fenômeno. Verdadeira “socialização da pobreza”. Exemplos concretos são as cidades de Manaus e Belém, maiores centros urbanos desse território.

Grande parte dessas “Amazônias”, no entanto, não foi atingida pela “modernização” dos grandes projetos. Pelo contrário, sofreu, com eles, perda enorme de seus habitantes, atraídos pelo sonho dourado das novas possibilidades de trabalho nos grandes centros.

No Médio Solimões, onde me encontro, Tefé é uma cidade que teve um crescimento notável, mas sem a capacidade de absorver o contingente de pessoas que atraiu. Os municípios do raio de sua influência permanecem no mesmo estágio de estagnação ou pior. A essas cidades se chega pelo rio, depois de horas de navegação. Dos barcos é possível contemplar uma paisagem cujo limite é o reencontro do horizonte em que o céu e as águas se abraçam, quer se olhe para um lado ou para o outro. A paisagem da cidade vai aos poucos aparecendo, preguiçosamente, sem pressa. Quase sempre o primeiro sinal é a torre da igreja, tão distante que dá a impressão de que nunca será alcançada.  Situadas às margens dos rios, são como uma pausa repousante na monótona paisagem em meio a tanta água. Suas ruas e caminhos vão dar, invariavelmente, no porto, onde canoas e casas flutuantes estão atracadas. A rua da frente ou a primeira delas, geralmente, é a mais importante com as melhores casas. As ruas de trás escondem aquelas em pior estado. Todas cobertas com telhas de flandres. Talvez para refletir os raios do sol escaldante da zona equatorial. A impressão que se tem é que foram construídas para se contemplar de longe, pois, de perto, a beleza do primeiro olhar se esvai no arranjo caótico das ruas e nas fachadas desbotadas e precocemente envelhecidas das casas. Talvez fosse melhor guardar, como numa fotografia, a primeira impressão. 

A vida do seu povo é governada ao ritmo das águas do rio. Convivem com a natureza de modo interativo e cooperativo, pois é dela que tiram seu sustento, “a comida de cada dia”, como diz a nossa colaboradora, ao sair para comprar o peixe ou outra iguaria para o almoço. Há uma relação de respeito, pois “a vida comanda o rio” e “o rio comanda a vida” com seus ciclos de enchente, cheia, vazante e seca, no que se convencionou chamar “o bem viver”.        

Assim se nos apresenta a Prelazia de Tefé, onde atuo, com o seu território de 264.675 km², abrangendo 10 municípios. A maioria da população se encontra nas cidades descritas acima, em centenas de comunidades ribeirinhas, com baixo índice de desenvolvimento, cuja sobrevivência está na agricultura de subsistência e no extrativismo. Uma parcela é indígena ou descendente de diversas etnias. É possível identificar, principalmente nas comunidades ribeirinhas, sua influência cultural na alimentação, nos instrumentos de pesca, na cestaria.

Tal como na história missionária do restante da Amazônia, a Prelazia de Tefé tem sido lugar de testemunho concreto de encarnação e de doação dos protagonistas de sua caminhada eclesial. Se, no passado, a evangelização caminhou junto de um projeto colonizador, a partir do Concílio Vaticano II (1965) e, especialmente, desde Medellín (1968), tem-se buscado no Regional Norte I da CNBB construir uma Igreja com “rosto amazônico”. “Rosto” que teve suas linhas colocadas no Encontro de Santarém, em 1972: encarnação na realidade e evangelização libertadora. Vinte e cinco anos depois, em Manaus, num encontro inter-regional, foi definido que a “Igreja se faz carne e arma sua tenda na Amazônia”. Diante de um cenário em que os problemas se avolumam e degradam a vida humana e o ambiente, a Igreja tem sido a portadora do anúncio da mensagem do Reino da vida. Para isso, as CEBs têm sido o instrumental importante de atuação junto dos mais pobres, através de projeto pastoral e evangelizador que articule esta caminhada. Com elas, a Igreja buscou uma presença de mais proximidade das populações e nova maneira de abordar os seus problemas, como o atraso econômico, a dependência e a exploração humana, passando progressivamente de atitudes paternalistas para atitudes mais críticas, estimulando a participação dos leigos nos movimentos sociais e na ação política. Daí, surgiram os militantes sindicalistas e organismos de representatividade, como o CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e a CPT (Comissão Pastoral da Terra).

  Ainda hoje, as CEBs se encontram atuantes em nossas comunidades, embora de maneira diferente de quando surgiram, mas pautando o seu dinamismo pastoral. Em julho último, aconteceu o 5º Encontro das CEBs da Prelazia de Tefé, na cidade de Jutaí, onde se reuniram mais de 900 delegados, representantes das comunidades urbanas, ribeirinhas e indígenas da Prelazia, numa manifestação alegre do seu vigor e da sua importância na caminhada.

Nas Diretrizes da Ação Evangelizadora da Prelazia, são ressaltadas as 5 urgências da ação evangelizadora para dinamizar a pastoral:  Igreja em estado permanente de missão, como casa da iniciação à vida cristã, lugar de animação bíblica da vida e da pastoral e como comunidade de comunidades, a serviço da vida plena para todos. 

Mesmo com essas orientações, numerosos desafios se colocam. Dentre eles, a forte penetração e presença, na Amazônia, das igrejas evangélicas e de outros movimentos, em particular dos pentecostais, que desestabilizaram as bases da Igreja católica, que não consegue dar conta da assistência catequética e sacramental nesse imenso território. Diante disso, a participação dos leigos/as é primordial para a identidade católica das comunidades.

Talvez tenha chegado a hora de buscar uma direção de fronteira, como algo novo, desbravador, missionário. É com esta expectativa que a Pan-Amazônia, presente nos nove países, aguarda o ponto culminante do Sínodo para a Amazônia, convocado pelo Papa Francisco, em 17 de outubro de 2017, para refletir sobre o tema “Amazônia: Novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”. Como está expresso no documento preparatório, “esses novos caminhos de evangelização devem ser elaborados para e com o povo de Deus que habita nessa região”.   

Às vésperas da sua realização, todos nós, como Igreja, estamos ansiosos, ou, no mínimo, curiosos, pelos resultados que dessa grande assembleia podem sair. Para nós que aqui vivemos e trabalhamos, prepará-la foi muito significativo, porque todos – povos originários, comunidades ribeirinhas e urbanas, grupos de leigos/as, de religiosos/as, de padres e bispos – puderam dizer sua palavra sobre como viver a fé neste jardim aqui plantado. Aí, já se mostrou um novo modo de fazer um Sínodo!

 

Como disse o Secretário Executivo da REPAM (Rede Eclesial da Pan-Amazônia), Mauricio López, ao falar dessa “escuta sinodal”, “sentimos que têm havido expressões da voz de Deus que não são nossas, que vêm de muito mais longe e muito mais profundas” 

E a CNBB (Conferência dos Bispos do Brasil), em nota sobre os últimos acontecimentos relativos à Amazônia brasileira, assim se expressou: “O Sínodo dos bispos sobre a Amazônia, em outubro próximo, em sintonia amorosa e profética com a convocação do Papa Francisco, no cumprimento da tarefa missionária e da evangelização, é sinal de esperança e fonte de indicações importantes no dever de preservar a vida, a partir do respeito ao meio ambiente”. 

Será a grande oportunidade de partilhar com toda a Igreja e com todos os povos os valores de um evangelho inculturado numa região tão importante para a vida no planeta. O esforço de uma presença missionária na Amazônia servirá de orientação para outras regiões do mundo. Nestas palavras do Instrumentum laboris encontramos a caminhada que a Igreja Amazônica poderá fazer como resultado do Sínodo: “A construção de uma Igreja missionária com rosto local significa progredir na edificação de uma Igreja inculturada, que sabe trabalhar e articular-se como os rios no Amazonas, com o que existe de culturalmente disponível em todos os campos de ação e presença...”(IL 114).

Pe. Paulo Venuto, CM

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