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O centenário de Paulo Freire 23 de Julho de 2021 A transformação por meio do processo educativo, à luz da dignidade dos pobres Pe. Lauro Palú, CM
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I – O centenário de Paulo Freire

Paulo Freire nasceu em Recife, Pernambuco, dia 19 de setembro de 1921. E faleceu em São Paulo, Capital, dia 2 de maio de 1997. Formou-se em Direito mas ampliou sua cultura, especialmente com os trabalhos de educação popular. Escreveu muitos livros, deu muitos cursos, publicou séries de documentários sobre as obras de educação que realizou em vários países da América Latina e da África. 

Sua obra mais conhecida é Pedagogia do Oprimido. Tal livro foi proibido pelos governos militares, até que perceberam que a proibição tinha sido a melhor propaganda: alguém explicitou o pensamento assim: “Podem vender, expor à vontade. Esse livro é mais perigoso sendo proibido, copiado à mão, circulando em cópias mimeografadas (que foi como eu o li, em 1968), etc., é mais perigoso do que em pilhas de exemplares expostos numa livraria...”

A prática mais conhecida de Paulo Freire é a educação libertadora. Seu método, que amadureceu e aperfeiçoou-se na educação de adultos, visa ajudar o adulto a ser sujeito do aprendizado que faz, na vida e na escola. Quando o Papa São João Paulo II foi baleado, na primeira tomada de consciência que teve, quando despertava de uma anestesia e ouviu os médicos cochichando o que fazer com ele, disse aos doutores “Quero ser, preciso ser sujeito de minha doença ou de minha enfermidade, e não objeto da medicina dos senhores”. E eu, quando terminei meus períodos de Assistente Geral em Roma, falei com o Visitador, que estava pensando no que fazer comigo: Quero ser sujeito de minha obediência e não objeto de sua autoridade...

Para isso, o ensino deve começar da situação concreta de vida dos alunos adultos que estão no processo. Partir dos problemas que vivem, usando, sempre que possível, o vocabulário deles, mas tentando descobrir, desvelar, neutralizar as forças negativas que existem na maneira de encaminhar os assuntos, quando se faz o que ele caracterizou muito criticamente como educação bancária (o professor que sabe ensina ao analfabeto que não sabe: por isso, o professor pode “cobrar” nos exames o que ensinou e o aluno tem obrigação de saber...).

Para interessar os Alunos, engajá-los no aprendizado, partia-se da experiência deles, que é original, diversa da dos Professores e dos Colegas. Usa-se a linguagem deles, com o que revela de sua personalidade. 

Começando no Instituto Bom Jesus, em Aparecida, em 1969, fui tentando realizar o que lia, o que conversava com os outros professores, especialmente do nosso Colégio São Vicente, onde se estudava e discutia Paulo Freire habitualmente, no processo de educação de adultos, no curso Supletivo. Com outros formadores da Província, participei algumas vezes, de encontros, seminários, etc., sobre educação libertadora. Quando fui nomeado diretor do Colégio, participava dos encontros semanais e animei um grupo de professores que lia e discutia Paulo Freire.

 

II – A formação no Colégio São Vicente

Um dos cuidados a tomar, quando se trabalham as intuições e as riquezas do método de Paulo Freire é a coerência entre o discurso e a prática. Uma vez aprendidas certas palavras, com o que significam no quefazer de cada dia, é preciso evitar que se usem as palavras por serem bonitas, vistosas, respeitadoras, estimuladoras. A consciência crítica vá aos poucos modificando os enfoques, levando a tratar sempre de modo muito adulto as pessoas, em suas necessidades e suas reações. A maior alegria dos educadores é ver aos poucos o surgimento da individualidade, a afirmação da identidade de cada um.  Como exemplo, se na primeira reunião dos Alunos novos do Supletivo de cada ano, ao perguntarmos quem era paraíba, nordestino, levantavam-se muitas mãos. Alguns meses depois, ao perguntarmos quem é paraíba, aparecia um ou outro, assim mesmo, dizendo: “não sou paraíba, sou paraibano”. Outros vão dizer: Sou de Alagoas, do Maranhão, de Sergipe. É inestimável essa riqueza da consciência do ser indivíduo e ter uma identidade. É nessas condições que começam a trazer suas ideias próprias, suas sugestões para as festas, a proposta de temas e problemas para o trabalho de cada dia. Nos Conselhos de Classe, os Representantes de Turmas são muito criteriosos e tentam ser absolutamente fiéis ao que a Turma falou, apresenta, reivindica, sugere, reclama, etc. 

Como colégio católico, mantido por Padres e Irmãos vicentinos, é natural, de se esperar, que as práticas partam de uma inspiração já conhecida nos quatro séculos de história da Congregação fundada por são Vicente de Paulo. O caráter profético do agente pastoral vicentino nos leva a denunciar o que vai contra os desígnios de Deus, a anunciar as transformações que o Espírito Santo suscita nos que agem evangelicamente. E é o momento das ações transformadoras: Não sou paraíba, sou paraibano. A pedra de toque no trato com as pessoas se concretiza numa frase lapidar de São Vicente: Os Pobres são nossos mestres, nossos senhores. Não temos que rebaixar-nos para pôr-nos ao nível deles; pelo contrário, temos que subir para estar onde estão os Pobres, na sua eminente dignidade na Igreja, segundo a bela expressão que Jacques-Benigne Bossuet aprendeu nas conferências das terças-feiras animadas por São Vicente. Isto deve ser algo absolutamente adulto, livre de demagogias, mas fruto da fé. E assim entra em cena a transformação do processo educativo, à luz da missão. Resumindo essa missão, em palavras imensas, podemos dizer que a) o Professor trabalha com conteúdos; b) o Educador trabalha com atitudes e c) o Formador trabalha com valores, aprontando o campo para que d) o AGENTE PASTORAL TRABALHE PELO REINO DE DEUS.

Algumas práticas se tornam necessárias:  À luz da dignidade dos Pobres, não podemos nunca pensar que a educação se faz impondo-se limites. Mas, ao contrário, de fato estamos educando quando toda a prática docente for conscientemente o esforço de estimular o crescimento das pessoas, em vez de lhes impor limites, seja do tipo que for. 

Estes são alguns exemplos do que fica sendo a educação nas linhas sugeridas por Paulo Freire e cultivadas no espírito vicentino. Outras práticas são o falar com as pessoas, o diálogo, com o respeito absoluto ao direito de falar e expor-se, tratando-nos construtivamente.

As Campanhas da Fraternidade cada ano fornecem um tema muito rico que deve desdobrar-se em conteúdos e práticas em cada disciplina.

 

III – Linhas vicentinas na formação dos Nossos

As linhas de formação numa comunidade educativa, num seminário, foram explicitadas assim, as atitudes dos Formadores e de cada um: estima pessoal (não se trata de ser amigo de todo mundo, mas de ser amigo de cada  um), presença amiga (trata-se de estar presente junto às pessoas, com amizade, afeição, bem querer, não de estar junto aos outros como vigia, como controlador) e confiança absoluta entre todos nós (lembrando-nos de que a confiança somos nós que oferecemos, não são os outros que conquistam ou merecem).  As qualidades exigidas de cada um, quer já as tivessem, quer fossem ajudados a adquiri-las progressivamente, eram responsabilidade, liderança, bom senso, iniciativa, lealdade, abertura de coração.

O processo formativo tinha duas instâncias independentes, mas fortemente correlacionadas de a) orientação de todo o grupo, nas meditações diárias, nas homilias, nas reuniões semanais para preparar os conteúdos das liturgias dominicais e os assuntos gerais, como a fé, a vocação, a sexualidade, a amizade, etc., e b) o trabalho particular, o atendimento de cada seminarista, nos encontros pessoais de formação.

A dinâmica das reuniões comunitárias era fortemente ajudada por algumas técnicas, como falar com os colegas, em vez de falar dos colegas, o falar levando em conta o que os colegas acabaram de falar. Também o esforço para buscar o consenso, nos nossos interesses comunitários, sem nos permitirmos decidir as coisas por maioria de votos... A responsabilidade de cada um, na medida do seu crescimento, aparecia no modo de pedir as licenças: “posso ir à Rodoviária?” Sempre achei que não deveria tratar um adulto nessa base, se pode ou não pode fazer isso ou aquilo. Nosso esforço era o fato de o Seminarista ver o que tinha de fazer e me avisar ou avisar à Comunidade: “Estou indo à Rodoviária”.

Muitas destas frases estão com os verbos no passado, porque estão datadas, dos anos que vivi em Aparecida, no Instituto Bom Jesus (1969-1976), e depois no Rio de Janeiro, como Diretor do Colégio São Vicente (1980-1986; 1999-2013).

Sintetizando estas ideias, sei que as expressões e as intuições de Paulo Freire nos ajudaram imensamente, na medida em que passaram a fazer parte do nosso comportamento pessoal e comunitário. Por exemplo, passei uns vinte e tantos anos tentando evitar uma frase assim: você deve estudar ou você tem que estudar. Isso nunca adiantou a ninguém, penso que nunca moveu ninguém. Mas, se digo a meu filho: “Rapaz, você é inteligente, já provou que dá conta das coisas no estudo. Você não se sente bem quando consegue fazer uma coisa com empenho, esforço e bons resultados? Não gostaria de fazer isso mais vezes? E se eu ajudar, não topa se esforçar nessa linha?”

Não me limitei a censurar e criticar o rapaz por não estudar. Lembrei que tem as condições. Recordei as experiências de realização que já viveu. E o desafiei a repetir essas experiências realizadoras mais vezes. E, especialmente, propus-me ajudá-lo para que consiga. Em vez de 3 ou 4 palavras, desenvolvi um processo de tomar consciência de suas capacidades, de lembrar que já fizemos coisas boas, e, sobretudo, ofereci a ajuda do adulto que estimule esse comportamento. Usei 40 palavras e ativei meu coração de educador, desafiando o adolescente a ser alguém. Isso é um resumo do modo de ser e educar que nos deixou Paulo Freire. Mas não foi só a frase que ficou     maior: agora se vê que instauramos um processo que nos levará aos bons resultados esperados e necessários, se formos coerentes, lúcidos, corajosos em nossa missão.



*Publicado orginalmente no Informativo São Vicente ed. 315
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