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O impacto da Fratelli Tutti na formação dos nossos missionários 27 de Abril de 2021 Como a encíclica do Papa Francisco nos convida à ousadia na formação, em tempos de efervescência do conservadorismo na Igreja Pe. Wander ferreira, CM
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A encíclica “Fratelli Tutti”, do Papa Francisco, é um verdadeiro apelo profético para a sociedade mundial não perder de vista os valores que mais nos aproximam: a sensibilidade, a fraternidade e o amor mútuo, nesses tempos, em que inúmeros fatores provocam divisões. Segundo o Papa, vivemos num mundo altamente seletivo e excludente, onde “as pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar e cuidar, especialmente se são pobres, deficientes e idosos” (FT, 18). O que impera no mundo é uma mentalidade de mercado, em que explorar, descartar e até matar vidas humanas, em vista do lucro obsessivo, é um fato sem o mínimo de pudor ou escrúpulos. Como consequência disso, em muitas localidades, há rastros de guerras, de atentados, de conflitos raciais e religiosos que não só afrontam a dignidade humana, mas também são motivados por ideias homofóbicas e por políticas narcisistas.

Em muitas partes do mundo, o relacionamento e a convivência com o outro está totalmente ameaçado, pois uma cultura do medo e da desconfiança é disseminada na sociedade. Assim, “reaparece a tentação de fazer uma cultura dos muros, de erguer muros, muros no coração, muros na terra, para impedir este encontro com outras culturas, com outras pessoas” (FT, 27). É duro dizer que, em muitos casos, esses muros criam uma separação tão radical, que, dificilmente, será desfeita. Contra tal mentalidade, o Papa afirma que a busca do fechamento e do isolamento não é caminho para uma vida autêntica e, ao mesmo tempo, não nos faz voltar à esperança: é pura ilusão e falsa segurança. O que real- mente nos traz esperança e nos humaniza é a proximidade e a cultura do encontro: “porque uma coisa é sentir-se obrigado a viver junto, outra coisa é apreciar a riqueza e a beleza das sementes de vida em comum que devem ser procuradas e cultivadas em conjunto” (FT, 31). Neste sentido, o Papa afirma que a pandemia que atualmente atinge praticamente o mundo inteiro nos permitiu reconhecer e valo- rizar muitas pessoas que, em suas lutas diárias, deram suas vidas para salvar muitas vidas. São vários os profissionais e os religiosos que “compreenderam que ninguém se salva sozinho” (FT, 54).

O ser humano, em seu processo de desenvolvimento, de realização e de plenitude, está num sincero encontro consigo mesmo e com os outros. Por outro lado, uma autêntica comunicação consigo mesmo só será possível a partir do momento em que houver comunicação com os outros. É muito positiva e saudável a relação mais ampla, que vai além da família e de pequenos grupos, pois, além de nos enriquecer culturalmente, permite que nos conheçamos melhor e nos projetemos. “...o amor cria vínculos e amplia a existência, quando arranca a pessoa de si mesma para o outro.” “A hospitalidade é uma maneira concreta de não se privar desse desafio e desse dom que é o encontro com a humanidade mais além do próprio grupo” (FT, 88/90). Só poderemos acolher quem é diferente de nós a partir do momento em que nos sentirmos seguros e convictos das nossas raízes culturais. O amor, a terra natal e a cultura de origem são elementos fundamentais para um encontro sadio e fecundo. Esta ideia, o Papa fundamenta dizendo que: “não me encontro com o outro se não possuo um substrato no qual estou firme e enraizado, pois é a partir dele que posso acolher o dom do outro e oferecer-lhe algo de autêntico” (FT, 143).

Progredindo no objetivo fundamental da encíclica, o Papa aborda uma dimensão fundamental do ser humano, o diálogo. Segundo o pensamento do Sumo Pontífice a respeito do diálogo, “não é necessário dizer para que serve; é suficiente pensar como seria o mundo sem o diálogo paciente de tantas pessoas generosas, que mantiveram unidas famílias e comunidades” (FT, 198). A autenticidade do diálogo está, sobretudo, em se respeitar o ponto de vista do semelhante, possibilitando maior abertura e a inclusão de convicções e interesses legítimos. O diálogo permite que sejamos fiéis aos nossos princípios e, ao mesmo tempo, que também o outro se mantenha fiel aos seus propósitos. Nesse contexto, o exercício do diálogo exige muita maturidade. Que seja sempre sustentado e apoiado por boas intenções, defensoras de verdades básicas, que garantam uma boa convivência e o esforço de se colocar em prática a amabilidade, característica e responsável por uma verdadeira fraternidade.

Fratelli Tutti, percebemos que a encíclica não só reforça e atualiza o nosso carisma, mas também nos convida ser ousados no serviço aos nossos “Senhores e Mestres”, os pobres. Eles são, como disse o Papa, descartados, por causa dos interesses comerciais e econômicos; concomitante- mente, são o motivo da nossa existência. Nunca é demais revermos, contemplarmos e atualizarmos o fim ou o objetivo primeiro de nossa Congregação no mundo: “...seguir Jesus Cristo evangelizador dos pobres” (CC, 1). Portanto, devemos sentir-nos motivados e provocados a não per- dermos de vista o que é fundamental e essencial em nosso ser missionário: servir aos pobres. Por mais que tenhamos habilidades para outras realidades importantes na Igreja, como a formação do clero, a formação dos leigos, a direção espiritual, entre outras, o que realmente nos define como missionários da CM é o serviço aos pobres. "Ora, trabalhar na salvação dos pobres habitantes do campo é o principal de nossa vocação e tudo mais é apenas acessório” (Coste XI, 137). No percurso da história da humanidade, os pobres sempre foram descartados, privados de pertencerem à história e de fazerem história. Foram taxados de lixo social, estorvo e de repugnantes.

São Vicente só conseguiu enxergar os pobres estando no meio deles. Enquanto esteve nos palácios, envolvido com os nobres, a iluminação carismática não lhe foi dada. Mas, convivendo com os pobres, em suas dores e em suas alegrias, não só recebeu do Senhor o Carisma da CM, mas também passou a transitar nos palácios e no meio dos nobres como servidor dos pobres. Aqui, muda-se todo o enfoque de interesses e de percepção da Igreja, na vida de São Vicente. Ele dirá: “Mas não se encontra na Igreja de Deus Companhia alguma que tenha por partilha os pobres e se dê, totalmente, aos pobres, a ponto de não pregar nunca nas grandes cidades. É disso que fazem profissão os missionários. Têm isso de particular, ser, como Jesus Cristo, aplicados ao serviço dos pobres” (Coste XII,81-82).

No processo formativo, além de nos empenharmos em deixar bem claro aos nossos seminaristas o carisma da Congregação, estamos insistindo muito no cultivo das relações interpessoais. No mundo de hoje, é inviável um missionário que, além de ter dificuldades de conviver com seus coirmãos, não consiga se aproximar dos pobres e interagir com eles. Pode-se dizer que passou o tempo todo da formação fechando-se em si mesmo e, não sendo confrontado, enveredou-se neste contra-valor e se tornou um problema. Uma coisa é ser tímido, outra coisa é ser fecha- do. Na Fratelli Tutti, o Papa Francisco nos dá dicas muito importantes sobre essa cultura do encontro, da proximidade e do diálogo. Deste modo, não basta aos nossos seminaristas se sentirem bem em nossas casas e terem uma boa bagagem intelectual, se não abrirem a mente e o co- ração para uma sincera convivência e um salutar relacionamento com o semelhante. Seu ministério, certamente, estará comprometido. Este requisito da dimensão humana é fundamental; caso contrário, todas as outras dimensões da formação ficarão comprometidas.

São Vicente, ao escrever a primeira regra da Congregação, expôs os atos de caridade em relação ao próximo que jamais poderemos perder de vista. São eles: “1. Fazer aos outros o que razoavelmente gostaríamos que eles nos fizessem; 2. acatar suas opiniões e aprová-las diante do Senhor; 3. antecipar-nos em demonstrações de cortesia e respeito; 4. aceitar-nos mutuamente sem murmurar; 5. alegrar-nos com os que se alegram; 6. chorar com os que choram; 7. mostrar-nos amáveis e atenciosos para com os outros; 8. enfim, fazer-nos tudo para todos para ganhar todos para Cristo” (RC II, 12).

Por fim, uma grande riqueza presente em nossas casas de formação, que não podemos perder de vista, são as raízes culturais. Cada seminarista que chega a nossas casas de formação traz uma bagagem cultural riquíssima que enobrece e dinamiza muito a nossa realidade. Deve- mos fomentá-los e incentivá-los a terem orgulho e a não perderem jamais o que é específico de suas origens. Como dizem nossas diretrizes, nosso processo formativo é “existencial e progressivo: leva em conta a história e a situação concreta das pessoas, respeita as diferentes idades, as etapas e a caminhada de cada um” (PFPBCM, P. 10). 

 Artigo originalmente publicado no Informativo São Vicente ed. 314

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